80 milhões de anos sem sexo e passando muito bem!
Por incrível que pareça ainda não sabemos muito bem por que o sexo existe, em primeiro lugar, e estamos apenas começando a compreender como esta estratégia teria evoluído inicialmente, uma vez que implica em custos adicionais ao diluir a contribuição genética de cada indivíduo. Porém, a manutenção da reprodução sexuada parece ser bem explicada pelas vantagens que a recombinação genética traz em corridas armamentistas coevolutivas entre parasitas e hospedeiros, sugerindo que linhagens que se reproduzem sexuadamente teriam vantagens de longo prazo comparadas com linhagens assexuadas especialmente em ambientes onde existam parasitas. Várias evidências tendem a suportar esta ideia, inclusive o fato da maioria das linhagens assexuadas de animais terem se originado de linhagens sexuadas e terem do ponto de vista geológico vida mais curta em relação as linhagens irmãs que mantém a reprodução sexuada. No entanto, um grupo particular de invertebrados que pertence ao grupo dos rotíferos não parecem se ajustar bem a este modelo.
Os rotíferos são um filo (Rotifera) de animais invertebrados aquáticos microscópicos ou quase microscópicos normalmente considerados pseudocelomados, mas, mais recentemente (dado o próprio questionamento da ideia de pseudocelomados), estes animais tem sido considerados mais próximos aos Lophotrochozoa.
Estas minúsculas criaturas são notáveis em muitos aspectos, como por serem capazes de suportar formas extremas de estresse ambiental, sobrevivendo a dessecação e tolerando níveis altíssimos de radiação ionizante que facilmente matariam outros animais. Mas estas impressionantes façanhas não são o fato mais interessante sobre estes pequeninos animais. Uma classe em especial do filo dos rotíferos, conhecida como Bdelloidea, e que conta com mais de 300 espécies, ‘abandonou’ o sexo há milhões de anos por completo e seus membros continuam vivendo 'muito bem, obrigado!’, tornando-se um caso particular, interessantíssimo, de estudo para os pesquisadores que buscam compreender a evolução da reprodução sexuada, mostrando as limitações das teorias mais tradicionais, como a apresentada anteriormente.
Um novo estudo sugere uma possível explicação para este triunfo de longo prazo desta linhagem particular de invertebrados [1]. Pesquisadores da Universidade Cambridge e do Imperial College, ambos na Inglaterra, e do National Institute of Oceanography, em Haifa, Israel, apresentaram evidências que pelo menos 10% dos genomas destes animais ter se originado de outros organismos dos quais se alimentavam, o que talvez tenha lhes conferido variabilidade e inovação genética que compensaria o que outras linhagens de animais sexuados conseguem via recombinação [1].
Os cientistas responsáveis pelo estudo, publicado na revista PloS Genetics [1], extraíram todo o RNA mensageiro (que são segmentos de RNA resultantes da transcrição dos genes propriamente ditos e que são utilizados na síntese, durante o processo de tradução pelos ribossomos) de rotíferos bdelóides, sequenciando cada uma dessas mensagens, o que resultou na criação de uma biblioteca de informação genética que era transcrita e, portanto, ativa nestes animais. Com base nesta biblioteca, empregando um supercomputador, foi assim possível comparar essas mensagens com todas outras sequências conhecidas. O resultado desta análise mostrou que muitas destas sequencias não eram encontradas em organismos mais proximamente aparentados, mas apenas em outros organismos bem distantes, na maioria das vezes, microrganismos.
Estes resultados mostram que a transferência horizontal de genes (HGT) ocorre nestes animais em uma escala sem precedentes, com (como já mencionado) aproximadamente 10% dos genes ativos sendo derivados de outros organismos - em sua maioria bactérias, mas também fungos e algas - que foram cooptados para usos nos bdelóides. Assim, cerca de 80% destes genes adquiridos de outros organismos codificam enzimas, contribuindo de maneira importante para a bioquímica destes animais, com 39% das atividades enzimáticas que se dão em seus organismos tendo pelo menos algum gene 'importado’, e, em 23% dos casos, com a atividade em questão sendo unicamente especificada por um destes genes lateralmente transferidos [1].
Segundo os autores do artigo [1], este tipo de bioquímica que envolve atividades de degradação de toxinas e geração compostos antioxidantes, que é desconhecida em outros animais, parece trazer mais “robustez” aos bdelóides, podendo também representar um mecanismo alternativo ao sexo de diversificação da capacidade funcional e até mesmo de substituição de genes defeituosos por versões similares vindas de outros organismos [1].
Este mecanismo se somaria a outros mecanismo de diversificação que havia sido levantado em um estudo anterior com rotíferos, em cópias de genes, provavelmente representando ex-alelos, isto é, cópias complementares de um mesmo gene em um mesmo locus cromossômico típica de organismos diplóides, divergiram em relação a sua função de maneira que as proteínas por eles codificadas passaram a desempenhar papéis complementares na sobrevivência em condições secas. Por exemplo, uma proteína evita que enzimas sensíveis a dessecação agreguem-se durante o processo de dessecação, enquanto que sua contraparte não possui a mesmo atividade, sendo capaz, contudo, de associar-se com as bicamadas fosfolipídicas, contribuindo, assim, potencialmente, para a manutenção da integridade da membrana [2].
Os rotíferos bdelóides continuam nos impressionando, fazendo-nos rever algumas de nossas teorias e nos levando a expandir nossas perspectivas sobre a evolução biológica, o que é o caminho para uma maior compreensão da natureza que nos cerca e da qual fazemos parte.
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Literatura Recomendada:
Boschetti C, Carr A, Crisp A, Eyres I, Wang-Koh Y, Lubzens, Esther, Barraclough, Timothy G., Micklem, Gos, Tunnacliffe, Alan. Biochemical Diversification through Foreign Gene Expression in Bdelloid Rotifers. PLoS Genetics, 2012; 8 (11): e1003035 DOI: 10.1371/journal.pgen.1003035
Pouchkina-Stantcheva NN, McGee BM, Boschetti C, Tolleter D, Chakrabortee S, Popova AV, Meersman F, Macherel D, Hincha DK, Tunnacliffe A. Functional divergence of former alleles in an ancient asexual invertebrate. Science. 2007 Oct 12;318(5848):268-71. DOI: 10.1126/science.1144363
Créditos das Figuras:
INCLAIR STAMMERS/SCIENCE PHOTO LIBRARY
STEVE GSCHMEISSNER/SCIENCE PHOTO LIBRARY
Grande abraço,
Rodrigo