A explosão cambriana. Parte II: Rápida, mas nem tanto assim!
A 'explosão cambriana' é um tema recorrente em qualquer blog ou site que lide com a evolução. Ela é tanto um dos eventos mais importantes da evolução dos animais (se não o mais importante), como é um dos fenômenos mais abusados e distorcidos pelos anti-evolucionistas. Discutimos este evento várias vezes, especificamente (e o mencionamos um número ainda maior de vezes), em posts relacionados aqui no evolucionismo ["A Explosão Cambriana”, “Conheça os fósseis dos primeiros animais com ‘esqueleto’”, “Uma Breve História da Vida”, “A Explosão Cambriana: Uma introdução””, “De volta ao cambriano: Dividindo o evento”, “O 'pavio filogenético' e a 'explosão cambriana' não se fundem.” e “Como distorcer a genética e a biologia evolutiva: Muita ignorância e pouca humildade”].
Nos artigos anteriores sobre este tema já havíamos enfatizado aquilo que a explosão não é e o quanto sabemos sobre este fenômeno que, apesar de extraordinário (com suas possíveis causas ainda sendo bastante discutidas entre os especialistas) não é o mistério insondável que desafia as explicações naturalistas e científicas que os criacionistas sempre parecem querer transformá-la.
Darwin, em uma época na qual conhecíamos muito menos o registro fóssil, chegou, realmente, a sugerir que esta súbita aparição seria de difícil conciliação com o seu modelo de evolução gradual guiado pela seleção natural, uma vez que, em tese, seriam exigidos longos períodos tempo [1]. Esta opinião foi ecoada por pesquisadores posteriores que, por causa disso, como Darwin, defenderam um prelúdio mais longo para a explosão cambriana, porém, que não havia sido registrado na coluna geológica [1]. Alguns destes sucessores de Darwin chegaram a sugerir que este pulso de diversificação fossilífera, além de não poder ser explicável sem que postulássemos uma longo prelúdio pré-cambriano críptico, poderia demandar também que tivéssemos que propor "mecanismos evolutivos desconhecidos". Estas considerações e as preocupações, na época, legítimas associadas a elas, como os autores de um recente trabalho sobre a questão colocam [1], foram “previsivelmente exploradas por opositores da evolução.”, Porém, "o dilema de Darwin" [1], como a ele se referem estes cientistas, pode ser resolvido de uma maneira muito mais simples e elegante. O primeiro ponto para esta solução já é bem conhecido entre os cientistas e já os comentamos nos artigos anteriores [veja “A Explosão Cambriana: Uma introdução”, “De volta ao cambriano: Dividindo o evento”, “O 'pavio filogenético' e a 'explosão cambriana' não se fundem.” e “Como distorcer a genética e a biologia evolutiva: Muita ignorância e pouca humildade”] sobre o tópico.
Neles foi explicado que este evento não marca a origem dos animais, já que existiram faunas anteriores, como a de Ediacara, mas refere-se ao aparecimento no registro fóssil de vários grupos animais, principalmente com simetria bilateral, 'esqueletizados', ou seja, com partes duras externas ou internas 'biomineralizadas', conchas, carapaças, ossos, dentes, cartilagem, escamas etc. Esta “radiação evolutiva” representa tanto um aumento da diversidade (o que pode ser estimado pelo número de espécies e gêneros) como um aumento da disparidade, ou seja, dos 'planos corporais', o que é mais ou menos equivalentes aos filos de organismos, embora, hoje em dia, hajam outras formas de quantificar a disparidade com base em medidas biométricas mais precisas [2].
Também já havíamos discutido que a explosão cambriana não ocorreu instantaneamente, sendo uma 'explosão' apenas em um sentido figurado, ou seja, ao adortamos uma perspectiva do tempo profundo, em que milhões de anos podem ser vistos como 'instantes' [“A Explosão Cambriana: Uma introdução”, “De volta ao cambriano: Dividindo o evento”, “O 'pavio filogenético' e a 'explosão cambriana' não se fundem.”].
A figura acima foi traduzida e retirada da figura do artigo de Marshal (2006). As datações, por sua vez, foram retiradas de Grotzinger et al. (1995), Landinget al. (1998), Gradstein et al. (2004), and Condon et al. (2005). As curvas de isótopos de carbonatos do Neoproterozoico vieram de Condon et al. (2005), do cambriano inicial em sua maioria de Maloof et al. (2005), mas também de Kirschvink & Raub (2003), as do cambriano médio e tardio de Montanez et al. (2000). Na figura é possível perceber a ampla variação desses valores durante parte do cambriano inicial, o que em parte é devido a variação geográfica, mas também a variação medida no Marrocos. As medidas de disparidade são provenientes de Bowring et al. (1993) e as de diversidade são oriundas da tabulação de Foote (2003) derivadas dos dados de gêneros marinhos compilados por Sepkoski (Sepkoski 1997, 2002). Todos os táxons encontrados em intervalos, assim como aqueles que estendem-se através dos intervalos, foram contados e incluídos na análise. As idiossincrasias de curta duração no registro das rochas, podem adicionar 'ruído' às curvas de diversidade, devendo assim serem omitidas para descartar este efeito. Marshal ressalta que a diversidade persistente era muito mais baixa que os valores mostrados; muitos dos táxons encontrados em um intervalo do registro estratigráfico não coexistiram. As fronteiras das curvas dos cruzamentos (de acordo com Michael Foote em comunicação pessoal a Marshal) nos fornecem o número de táxons que devem ter coexistido nos pontos mostrados, mas é preciso lembrar que como as fronteiras estratigráficas tradicionais são baseadas em tempos de reviravoltas taxonômicas incomuns, as estimativas podem na realidade subestimarem as diversidades típicas permanentes [Esta versão do texto apareceu originalmente “A Explosão Cambriana: Uma introdução”].
A figura logo acima, extraída de Petterson e colaboradores (2005), mostra o tempo do começo da evolução animal no contexto geológico da transição Neoproterozóico para o Cambriano. Os nós da árvore filogenética estão posicionados de acordo com as estimativas do relógio molecular atualizadas em um trabalho anterior de Peterson e colaboradores. Na base podemos ver uma curva generalizada de isótopos de carbono no Pré-Cambriano que foi retirada do trabalho de Knoll de 2000; já as idades dos limites foram retiradas do ICS de 2003 (a Cartilha Internacional Estratigráfico) exceto para os limites entre os períodos Criogeniano e Ediacarana que vieram de Knoll et al. ( 2004), que foi colocado em 635 milhões de anos, como estimado por Hoffman et al. (2004) e Condon et al. (2005). Estes limites, na verdade, como afirmam Calver et al. (2004) podem ser ainda mais jovens, talvez menos com devendo serem colocados em 580 milhões de anos, portanto, as glaciações Marinoana e Gaskiers pode ter ocorrido mais ou menos ao mesmo tempo. Todas as outras idades estão listadas na Tabela 1. Abreviações: ND; Nemakitano-Daldyniano, T; Tommotiano; A; Atdabaniano, B/T; Botomiano/Toyoniano; M; Oriente. (Adaptado de Knoll e Carroll 1999) [Petterson e colaboradores, 2005]
Porém, mesmo com todas estas ressalvas, a duração deste evento sugere, ainda assim, um processo de rápida inovação fenotípica e genética, ou seja, um fenômeno legitimamente intrigante, embora a velocidade exata e a natureza precisa desta grande radiação evolutiva ainda nos escape. Mas talvez isso esteja mudando de figura [1, 3].
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O auge da 'explosão', propriamente dita, durou cerca de 10 milhões de anos, de 530 a 520 milhões de anos, mas seu início pode ser traçado antes mesmo do Cambriano (542 milhões de anos) até, pelo menos, o final do Ediacarano, o período anterior, já que é possível encontrar depósitos fósseis com a chamada fauna das “pequenas conchas” ('small shelly'). Isso sem esquecer as faunas anteriores, como a já mencionada biota de Ediacara, além das evidências de organismos rastejantes com simetria bilateral (baseadas em seus rastros e túbulos etc, os icnofósseis) que jogam a origem dos grupos animais envolvidos na explosão para mais de 580 milhões de anos atrás. Estas estimativas são reforçadas pelas evidências baseadas na reconstrução de filogenias moleculares com dados de organismos modernos.
Embora hajam muitas questões em aberto, o consenso que parece emergir, portanto, favorece a ideia de que realmente a 'explosão cambriana' contou um 'pavio filogenético' 'queimando' antes de sua detonação, porém, bem mais curto do que o inicialmente proposto a partir dos primeiros estudos que usaram relógios moleculares restritos e que estimaram tempos muito mais antigos de divergência desses grupos que, mais tarde, diversificariam-se e evoluiriam seus planos corporais em paralelo, durante o cambriano [“A Explosão Cambriana: Uma introdução” e “O 'pavio filogenético' e a 'explosão cambriana' não se fundem.”].
Mesmo que suponhamos um "pavio filogenético" mais longo, ainda assim, esta suposição é consistente com o presente cenário. Isso é assim por que a origem dos filos - isto é, o ponto em que os ancestrais dos grupos em questão começaram a divergir - não é necessariamente o mesmo que o começo da explosão que foi quando muitas das novidades morfológicas e genético-desenvolvimentais teriam evoluído em paralelo [“De volta ao cambriano: Dividindo o evento”] , embora seja um pouco mais difícil interpretar certas inovações compartilhadas por vários filos neste cenário derivado ligeiramente alterado e que permite uma pavio mais longo [1].
Este cenário, entretanto, faria ainda mais sentido ainda mais plausível caso as taxas de evolução no final do Pré-Cambriano e começo do Cambriano fossem demonstravelmente mais elevadas, o que reduziria o período crítico e o tamanho do pavio filogenético. Infelizmente, as estimativas precisas de taxas de evolução durante a explosão cambriana são pouco confiáveis e dependem de um registro estratigráfico irregular, durante este intervalo de tempo, o que tem impedido estimativas paleontológicas diretas dessas taxas evolutivas []. Agora, um grupo de pesquisadores que inclui cientistas da Universidade de Adelaide, Austrália, e do Museu de História Natural, em Londres, publicou um novo trabalho, na revista Current Biology, no qual estima as taxas de evolução morfológica e genética de vários grupos de animais vivos durante este momento no tempo [1].
Os pesquisadores responsáveis pelo estudo, Michael S.Y. Lee, Julien Soubrier e Gregory D. Edgecombe, basearam-se na ideia que as taxas de evolução morfológica do passado - ou seja, aquelas envolvendo linhagens ancestrais - podem ser inferidas a partir de diferenças fenotípicas entre os organismos vivos, assim como as taxas de evolução molecular em linhagens ancestrais pode ser estimadas a partir de divergências genéticas entre os mesmos organismos modernos. O grupo de animais investigado foi o dos artrópodes (insetos, crustáceos, aracnídeos e seus familiares), o grupo animal mais diverso desde o período Cambriano até os dias de hoje, mas os resultados, de acordo com a equipe de cientistas, muito provavelmente valem também para os demais grupos. Isso ocorre por que os artrópodes são de longe o mais abundante e bem conhecido filo que surgiu no Cambriano, representando normalmente cerca de 40% das espécies e mais de metade dos espécimes em biotas como as do folheio de Burgess. Tal representatividade continua mesmo nos dias de hoje, sendo os padrões encontrados em artrópodes rotineiramente extrapolados como sendo representativos de todos os táxons surgidos no Cambriano [1].
Hoje já é possível - a partir das sequências de DNA obtidas a partir de espécimens de vários táxons modernos e usando, de preferência, múltiplos pontos de calibração com base no registro fóssil - estimar as relações evolutivas e datas de divergência dos diversos grupos investigados. Estes métodos permitem inferir para cada ramo, simultaneamente, o comprimento do ramo em unidades de tempo (a duração) e o comprimento em termos do número de substituições moleculares (mudança molecular), o que permite calcular diretamente as taxas evolutivas. Um subgrupo destes métodos específico, conhecido como métodos de "relógios relaxados", pode revelar, inclusive, como as taxas mudaram ao longo do tempo, ao permitir que as taxas de evolução molecular variem entre os ramos, tanto internos (entre dois nós da filogenia, sempre extintos) e externos (levando a uma nó terminal que é tipicamente um grupo de organismos vivos hoje em dia). Embora estas abordagens já estejam sendo aplicadas a dados morfológicos, elas não haviam sido usadas ainda para tratar explicitamente a questão específica de taxas ancestrais de mudança evolutiva [1]. A principal diferença deste estudo para outros recentes foi exatamente esta; enquanto os demais estudos concentravam-se em estimar as datas de divergência, o estudo do Current Biology teve como objetivo explicito estimar como e quanto as taxas de evolução variaram ao longo do tempo [1, 2].
A análise realizada neste artigo envolveu mais de 395 características fenotípicas e 62 sequências gênicas codificadoras de proteínas, tendo como base 20 pontos de calibração tomados do registro fóssil. Os dados em seu conjunto foram analisados por meio de métodos de relógios moleculares relaxados através do pacote BEAST [do inglês "Bayesian evolutionary analysis by sampling trees"] que, ao mesmo tempo estima a topologia filogenética (ou seja, o padrão de ramificação e nós da árvore evolutiva), estima também as datas de divergência, além das taxas de mudança evolutiva morfológicas e moleculares entre os ramos e assim também através do tempo.
O BEAST é um programa para análise bayesiana de sequências moleculares usando MCMC (Markov chain Monte Carlo) orientado para filogenias enraizadas e com estimação dos tempos de divergência inferidas usando-se relógios moleculares.
Este software pode também ser empregado tanto para reconstruir filogenias, como para testar hipóteses evolutivas sem que seja necessário condicionar o teste a uma única topologia de uma árvore filogenética. [Para uma visão geral dos métodos de inferência filogenética moleculares e de estimação de tempos de divergência, veja esta resposta aqui do nosso tumblr e para compreender um pouco melhor no que consistem os chamados métodos Bayesianos, aconselho este artigo do Bule Voador].
Esta estratégia computacional, permitiu aos pesquisadores incluíssem os dados fenotípicos, de modo que eles influenciassem a topologia da árvore filogenética e os tempos de divergência, já que, segundo os autores, mesmo na presença e em combinação com os dados genômicos, eles podem ser cruciais para a reconstrução da topologia da árvore e desta maneira dos tempos de divergência absolutos [1].
A topologia da árvore filogenética (e as datações do ramos das mesmas) dos artrópodes foram também coerentes com as árvores obtidas a partir dos mesmos genes nucleares, mas usando através uma amostra mais ampla de espécimens, bem como são também consistentes com as filogenias inferida a partir de uma outra vasta combinação de dados molecular e de conjuntos de dados combinados [1].
As evidências fósseis mais modernas para os crustáceos, por exemplo, sugerem fortemente que os grandes grupos taxonômicos dos artrópodes devem ter divergido e evoluído dentro de uma janela de tempo algo em torno de 40 milhões de anos. Isso quer dizer que as extensas alterações moleculares e fenotípica que ocorreram nos ramos da arvore evolutiva dos artrópodes que levam a grupos como euchelicerata, miriapoda, mandibulata, pancrustacea, oligostracas, vericrustacea e miracrustacea etc devem ter ocorrido neste intervalo mais estreito de tempo, já que os 'grupos copa' - ou seja, os grupos com as características dos representantes do espécimens mais atuais vivos dos táxons e que, com eles, formam um grupo monofilético - têm mais de 500 milhões de anos [1].
Mas afinal quão rápidas foram as taxas evolutivas durante o cambriano?
Os autores do estudo relataram que a taxa média de evolução fenotípica das linhagens que divergiram no começo do Cambriano foi de 0,561% por milhão de anos, o que é aproximadamente 4 vezes maior do que a taxa média das linhagens que divergiram posteriormente (0,136% por milhão de anos) no resto do fanerozoico. Já a taxa média de evolução molecular no começo do Cambriano foi de 0,117% por milhão de anos, aproximadamente, 5,5 vezes maior do que a taxa média posterior que é de 0,022% por milhão de anos, sendo esta última estimativa altamente consistente com as estimativas conservadoras das taxas deduzidas a partir de dados do genoma nuclear obtidas de invertebrados modernos [1].
Assim, as taxas de evolução em linhagens de artrópodes mais antigas mostraraam-se substancialmente mais rápidas do que as taxas para o fanerozoico posterior ["Ver ou não ver? Eis a questão do fanerozóico?”]. As mais rápidas taxas de evolução molecular ocorrem nos ramos que levam ao grupos Arthropoda, bem na raiz, e Pancrustacea que são cerca de 10 vezes maiores do que as taxas médias subsequentes. As taxas de evolução morfológica mais rápidas podem ser observadas no surgimento dos Mandibulata, sendo estas mais de 16 vezes maiores que no resto do fanerozoico [1].
Os resultados do estudo revelaram que as quantidades relativas de mudança evolutiva ao longo da filogenia são consistentes com outras análises disponíveis na literatura científica, como, por exemplo, as que indicam que os ramos mais basais dos artrópodes - aqueles que se separaram primeiro durante a evolução, - exibem alterações moleculares e morfológicas mais substanciais - ou seja, neste ponto teriam surgido muitas 'sinapomorfias' [1] nos grupo - características derivadas inovadoras compartilhadas apenas pelo grupo e subgrupos descendentes [veja os novos posts sobre o tema de nossa colaboradora Ester de Oliveira “Filogenia mastigada para biólogos e demais curiosos 1” e “Filogenia mastigada para biólogos e demais curiosos 2:” e "Filogenia Mastigada 3. Grupos Monofiléticos e Merofiléticos e a filosofia por detrás da Filogenia"]
Logo acima vemos as linhagens de artrópodes que originaram-se durante a explosão cambriana. A maioria delas é de curta duração, rapidamente divergindo, mas passam por grande quantidade de mudança fenotípica e molecular. Os ramos e táxon nestas três árvores estão em ordens idênticas e possuem o mesmo código de cores. Podemos facilmente observar a grande quantidade de variação indicada pelas ramificações longas em negrito (B) e (C), e as durações curtas correspondentes desses ramos em (A). Em (A) pode-se ver uma árvore com os comprimentos dos braços e os tempos de divergência mostrados em relação ao tempo; com sombreados rosas destacando o período que antecede o final do Cambriano (> 500 Ma), durante o qual os mais altos níveis de diversidade ("filo" e "classe") surgem no animal registro fóssil*. As barras azuis indicam as 95% maiores densidades posteriores (HPDs) para as divergências, que são muitas vezes grandes devido à heterogeneidade extrema das taxas. Já em (B) está ilustrada uma árvore com comprimentos dos ramos proporcionais à mudança molecular; o negrito i ramos com idades maior que 500 milhões de anos (idade do ramo = ponto médio do nó superior e inferior). Por fim em (C) está mostrada uma árvore com comprimentos dos ramos proporcionais à mudança fenotípica; com o negrito mostrando os ramos com idades maiores que 500 milhões de anos [1].
Além de terem conduzido estas análises principais, os pesquisadores também testaram a sensibilidade dos seus resultados frente a outros métodos analíticos, como também investigaram como alterações nas datas de divergência e nas taxas evolutivas interfeririam nas estimativas, analisando os dados moleculares em isolamento e a topologia das árvores filogenéticas por meio da inclusão de novos táxons de artrópodes que foram recentemente propostos na literatura científica [1].
Os pesquisadores empregaram análise de máxima verosimilhança utilizando somente os dados moleculares, inferindo daí apenas a topologia da árvore e, em seguida, estimando as datas nessa topologia foram capazes de recuperar estimavas da ordem e tempo dos eventos muito semelhantes, além de padrões e taxas de evolução muito parecido ao obtido pela abordagem principal. As taxas médias de evolução fenotípica e molecular inferidas desta segunda maneira, após o início do Cambriano, estão dentro dos limites de 5% das estimativas baseadas no método Bayesiano; as características fenotípicas, de acordo com estes métodos, divergiram a uma taxa de 1,17% por milhão de anos, no início do Cambriano, cerca de 8 vezes a taxa média para o restante do Fanerozoico (0,139% por milhão de anos); enquanto a molecular foi de é 0,204% por milhão de anos, ou seja, mais ou menos 9 x maior do que a taxa média subsequente (0,021% por milhão de anos). Isso quer dizer que as medidas foram todas bastante consistentes entre si [1].
A robustez dos pressupostos de calibração também foi testada através da exclusão aleatória de pontos de calibrações internos, bem como por meio do emprego uma série de restrições nos tempos de origem para o grupo dos Panarthropoda, fazendo as idades das raízes da árvore variarem entre os limites rígidos e mais suaves, respectivamente, de < 542 e < 700 milhões que estão dentro dos intervalos da grande maioria das estimativas mais recentes para o início da divergência dos grupos que participaram da explosão cambriana [1].
A conclusão a qual os cientistas chegaram é que as estimativas das taxas evolutivas são bastante robustas de acordo com o estudo, inclusive em relação as suposições sobre a idade precisa da origem dos artrópodes. Na verdade, surpreendentemente, estas estimativas não mudam substancialmente mesmo se a origem dos artrópodes seja comprimida inteiramente no Cambriano (~ 542 milhões de anos atrás), com todo o processo durando pouco mais de 10 milhões de anos até a explosão em si, ou se ela tenha tido suas raízes em um ponto anterior do tempo, ainda no Criogeniano (~ 650 Milhões de anos atrás). Caso pressuponha-se menos restrições na origem da divergência e permita-se que a raiz da árvore filogenética se estenda no tempo para períodos ainda mais antigos, mesmo assim, para os pesquisadores obterem uma redução substancial dessas estimativas das taxas evolutivas tornando as equivalentes as médias subsequentes, eles teriam que pressupor que os Panartrópodes originaram-se a mais ou menos 940 milhões de anos, o que não parece nada plausível. Os Panartrópodes, muito provavelmente, não tem menos de 542 milhões de anos que é quando já existem vários fósseis de rastros potencialmente deste grupo, mas também não ter muito mais de 650 milhões de anos, excedendo as muitas estimativas moleculares recentes, além de ultrapassar a idade para qual temos fósseis de qualquer outro animal [1].
Ao lado temos um artrópode vivo (a centopeia do gênero Cormocephalus) rasteja sobre seu parente extinto fossilizado há 515 milhões de anos que viveu durante a explosão cambriana (o trilobita do gênero Estaingia). (Crédito da imagem: Michael Lee; Universidade de Adelaide).
O mais importante, entretanto, é que estas taxas mais rápidas inferidas neste estudo são completamente consistentes com a evolução por seleção natural e com dados obtidos a partir de estudos com organismos vivos, e, como enfatizam os pesquisadores, os autores podem resolver o tal "dilema de Darwin” [1].
Não há qualquer motivo, portanto, para serem postular taxas inexplicavelmente rápidas ou 'saltos evolutivos' para explicar a 'explosão cambriana', mesmo em um cenário extremo em que as divergências dos grupos que deram origens aos filos modernos teriam ocorrido todas dentro do Cambriano em um período de menos de 20 milhões de anos. Como concluem os autores:
“Pelo contrário, o padrão é consistente com muitas linhagens do Cambriano exibindo taxas de evolução morfológica e molecular acelerada – porém plausíveis. A seleção direcional típica pode aumentar as taxas de evolução fenotípica por ordens de magnitude por curtas escalas de tempo curtas [39], e até mesmo regiões genômicas conservadas podem apresentar diferenças de 10 vezes nas taxas de evolução entre linhagens irmãs vivas [40]. Mais especificamente, em artrópodes, os conjuntos de dados das primeiras e segundas posições dos códons sozinhos muitas vezes apresentam duas vezes, e, ocasionalmente, até 5 vezes, as diferenças entre táxons intimamente relacionados (Figura S2D).” [1]
Estas taxas, apesar de não serem as mais altas documentadas são ainda assim incomuns em comparação com o resto das médias do fanerozoico, especialmente por que estavam presentes em muitos linhagens e não em apenas algumas linhagens isoladas, o que tornam a explosão cambriana um evento impressionante, porém, não inexplicável.
Este trabalho, como é o primeiro do tipo (embora use ferramentas e estratégias que já estão por aí há um tempinho), ainda precisa ser melhor digerido pela comunidade científica e respaldado por trabalhos com abordagens alternativas e complementares que compensem as presentes limitações deste estudo. Como Philip Donoghue, da Universidade de Bristol, no Reino Unido, e Douglas Erwin, do Instituto Smithsoniano, em Washington, EUA, (especialistas não envolvidos com o estudo explicam), o fato dos dados morfológicos dos grupos extintos não terem sido incorporados e de algumas das estimativas de tempo serem um pouco problemáticas, precisamos ter um pouco de calma ao aceitar estes números. Porém, como estes mesmos especialistas concordam, esta nova metodologia é muito promissora, com a combinação de vastos conjuntos de dados morfológicos e genéticos associados ao poderosos novos métodos de computacionais de estimação de tempo, empregando relógios moleculares mais relaxados e usando-se múltiplos pontos de calibragem no registro fóssil, parece ser mesmo o caminho a se seguir [2].
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* Nota: Este é um ponto frequentemente distorcido pelos criacionistas e propenso a mal entendidos. A primeira impressão que algumas pessoas têm ao analisar uma árvore filogenética como essa é que os grandes grupos ('filos' e 'classes') originam-se primeiro, já que eles são representados pelas primeiras linhas de divergência, como os demais subgrupos originando-se mais tarde. Isso ocorre especialmente por que impomos um sistema de classificação baseado em características dos espécimens modernos para caracterizar os grupos que é, exatamente, o que fizemos ao estabelecer os táxons tradicionais atuais. A questão é que, quando estes 'grupos' originam-se, eles não eram ainda 'filos' ou 'classes', mas apenas espécies que deram origem a outras espécies que, por sua vez, deram origem a outras espécies e assim por diante; processo esse que, durante o qual, as características dos grupos foram surgindo e que, apenas muito mais tarde, em conjunto - e após muitas linhagens com características intermediárias terem sido extintas - foram usadas para caracterizar e diagnosticar os grandes grupos, como 'filos' e 'classes'. Portanto, no começo do processo de cladogênese, ou seja, de especiação e diversificação das linhagens, as duas espécies recém formadas não tinham seus planos corporais distintos, sendo apenas em retrospecto atribuíveis aos filos, quando observamos seus descendentes, após vários eventos de cladogênese e evolução genética e morfológica é que faz sentido falar em um grupo mais amplo e em planos corporais distintos. Além do mais as características fenotípicas e genéticas, mesmo que em uma taxa relativamente rápida foram adquiridas em várias etapas, além de provavelmente terem sido melhor integradas e modificado-se ainda mais durante esses processo.
A ideia é que quando os primeiros organismos com simetria bilateral estavam divergindo a partir de ancestrais comuns, as diferenças que eles acumulariam em certos eventos de especiação ou ao longo da evolução de uma dada linhagem ancestral dos grupos mais modernos, na época, estas 'sinapomorfias' eram relativamente simples. Afinal, um organismo vermiforme bilateralmente simétrico é apenas um pouco distinto de um outro organismo vermiforme bilateralmente simétrico, mas com um maior grau de cefalização ou mesmo com certa segmentação corporal. Esta simples constatação já deveria mais imunes a nos impressionarmos com a supostos saltos qualitativos que estariam envolvidos nos tipos de mudanças morfológicas e genéticas na primeiras fases de evolução dos grupos de animais. Porém, existem evidências ainda mais convincentes de que a classificação dos filos baseados em uma percepção das características e seus padrões de organização modernos impostas em retrospecto é bastante artificial e, como explica Matzke (“Down with phyla!” e “Down with phyla! (episode II)”) eleva diferenças relativamente, inicialmente, simples as suas versões modernas muito mais derivas sugerindo grandes saltos qualitativos, quando de fato esse não foi o caso.
Alterações equivalentes as que caracterizam algumas dessas grandes transições, de fato, ocorrem de maneira muito rápida, como é o caso da "inversão" do eixo dorso-ventral, evento crucial na evolução dos cordados, e que ocorreu a partir de uma mudança da posição neural para a abneural. Este mesmo tipo de mudança na posição da boca evoluiu, a menos de 50 milhões de anos atrás, pelo menos duas vezes, em um grupo de nematoides aparentados ao famoso organismo-modelo, Caenorhabditis elegans. Alterações como estas não parecem, portanto, serem exclusivas do Cambriano, podendo, desta maneira, serem estudadas experimentalmente em organismos modernos que sejam estreitamente relacionados.
Fitch, D. H. A. and Sudhaus, W. (2002), One small step for worms, one giant leap for “Bauplan?”. Evolution & Development, 4: 243–246. doi: 10.1046/j.1525-142X.2002.02011.x
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Referências:
Lee, Michael S.Y., Soubrier, Julien, Edgecombe, Gregory D. Rates of Phenotypic and Genomic Evolution during the Cambrian Explosion. Current Biology, 2013 DOI: 10.1016/j.cub.2013.07.055 [Link]
Narbonne, GM The ediacara biota: Neoproterozoic origin of animals and their ecosystems Annual Review of Earth and Planetary Sciences Volume: 33: 421-442, 2005. DOI: 10.1146/annurev.earth.33.092203.122519
Servick, Kelly Evolution’s Clock Ticked Faster at the Dawn of Modern Animals ScienceNow, setembro de 2013.
Créditos das Figuras:
Marshall, Charles R. (2006). “Explaining the Cambrian ‘explosion’ of animals.” Annual Review of Earth and Planetary Sciences. 34: 355-384. http://dx.doi.org/10.1146/annurev.e[…]31504.103001
Peterson, Kevin J. , McPeek ,Mark A. and Evans, David A. D. Tempo and mode of early animal evolution; inferences from rocks, Hox, and molecular clocks (in Macroevolution; diversity, disparity, contingency; essays in honor of Stephen Jay Gould ) Paleobiology(June 2005), 31(2, Suppl.):36-55 doi: 10.1666/0094-8373(2005)031[0036:TAMOEA]2.0.CO;2