A Nova Filogenia dos Galloanserae
O jornal britânico The Guardian publicou este mês na sua seção de ciência uma matéria excelente assinada pela professora Hanneke Meijer, curadora de osteologia da Universidade de Berger (Noruega) e especialista em aves fósseis, sobre os estudos das relações entre os grupos de aves que compõem atualmente o clado Galloanserae.
Galloanserae é considerado um dos grupos mais primitivos de aves modernas (Neognathes) e sua ascendência remonta ao tempo dos dinossauros. Em contraste com seus descendentes atuais - os Galliformes e Anseriformes (e agora também os Craciformes) - as primeiras aves semelhantes às aves domésticas eram verdadeiramente gigantes para as medidas aviárias modernas, representando as maiores aves da Terra durante o Paleógeno.
Como explicam no texto do The Guardian,
“existem vários grupos de aves terrestres enormes e extintas que são considerados parte de Galloanserae. Um deles é o Dromornithidae (ou Thunderbirds da Austrália, como são mais conhecidos). Essas aves gigantescas que não voavam, viveram do Oligoceno até o Pleistoceno e faziam parte da megafauna australiana (Worthy & Holdaway, 2002). Alguns dromornitídeos atingiram um tamanho colossal, como Bullockornis , apelidado de Demon Duck of Doom (algo como Pato Demoníaco da Destruição), cujo tamanho é estimado em cerca de 2,5 metros de altura.”
Em toda a Eurásia, Gastornithidae ocupou o nicho das aves gigantes, desde o Paleoceno ao Eoceno. Como explica Meijer, três espécies européias dessas grandes aves sem habilidade de vôo, com pernas fortes e bicos maciços são conhecidas dos especialistas e, acrescenta:
“Uma espécie da América do Norte, anteriormente conhecida como Diatryma gigantea, agora é considerada a quarta espécie de Gastornithidae. Com seu bico gigante e pernas poderosas, uma anatomia peculiar entre as aves, os Gastornithidae foram consideradas por muito tempo como carnívoros, possivelmente predadores de pequenos cavalos contemporâneos (Witmer & Rose, 1991). No entanto, como os bicos não possuem os ganchos típicos das aves carnívoras e os estudos dos teores de isótopos de cálcio nos ossos não revelaram uma dieta à base de carne, a maioria dos pesquisadores tendem assumir que os gastornitídeos eram herbívoros (Angst et al., 2014).”
Não é nada fácil desvendar os relacionamentos entre animais que viveram há 30 milhões de anos, dos quais, na maioria das vezes, restam apenas fragmentos do esqueleto, diz a matéria do The Guardian.
“O que torna as coisas ainda mais complicadas no caso dessas aves colossais é que todos elas exibem membros traseiros robustos e asas reduzidas. À primeira vista, isso alinha-os com outros grupos que mostram essa morfologia proeminente, como os Aepyornithidae extintos de Madagascar, o moa da Nova Zelândia (também extinto) e os ratites modernos (avestruzes, emus e afins). E, de fato, durante muito tempo, Dromornithidae foi considerado intimamente relacionado com ratites (Rich, 1979). No entanto, um exame mais aprofundado dos crânios de dromornithidae mostrou que eles não eram parte dos ratites.”
Segundo Meijer, estudos baseados em conjuntos de dados morfológicos do esqueleto inteiro posteriormente colocaram Dromornithidae, bem como Gastornithidae, como grupos-irmãos para Anseriformes, enquanto outros descobriram que Dromornithidae fazia parte de Anseriformes.
“Também foi sugerido que Dromornithidae, juntamente com os Sylvioridithidae da Nova Caledônia, são grupos-irmãos para Galloanserae como um todo (Mayr, 2011). E há também o caso das aves-do-terror da América do Sul ( Phorusracidae ), outro grupo de aves gigantes e terrestres com bicos robustos que em determinadas análises são colocadas dentro dos Anseriformes (Degrange et al., 2015).
Embora atualmente esteja claro que Dromornithidae, Gastornithidae e Sylviornithidae estão próximos de Galloanserae, suas posições exatas em relação a este grupo ainda não estão claras. Resolver a classificação desses animais gigantes é difícil em razão das suas morfologias convergentes -neste caso, os membros traseiros robustos e as asas reduzidas - e, muitas vezes, devido à amostragens limitadas de espécies potencialmente relacionadas. A convergência morfológica reflete uma adaptação a um ambiente compartilhado em vez de uma característica derivada de um antepassado comum.”
Meijer chama a nossa atenção para o fato de que agrupar espécies com base nas semelhanças morfológicas quando existe forte suspeita de convergência evolutiva pode produzir resultados equivocados. Felizmente, o surgimento de análise filogenética molecular, permitiu aos ornitólogos usarem com sucesso as sequências de DNA para solucionar dúvidas sobre o relacionamento filogenético entre grupos de aves e outros animais.
“Embora a filogenética molecular tenha definitivamente suas ressalvas, os dados moleculares já forneceram uma árvore filogenética bem consistente para espécies de aves atuais (Hackett et al., 2008). Essas árvores são muitas vezes bem diferentes das derivadas apenas dos dados morfológicos, em grande parte devido aos casos de convergência. Como as morfologias convergentes sempre foram o tormento dos paleontólogos na resolução dos relacionamentos entre aves gigantes extintas e que não voavam e os Galloanserae viventes, o paleontólogo australiano Trevor Worthy e sua equipe se propuseram a resolver esta questão de uma vez por todas, combinando dados moleculares e morfológicos.”
“Worthy e seus colaboradores coletaram um grande conjunto de dados de 290 características morfológicas para 20 aves extintas gigantes e 29 aves viventes. Esses dados morfológicos foram analisados contra uma estrutura molecular que restringia os relacionamentos das aves viventes com os relacionamentos que são fortemente inferidas a partir de dados moleculares. Ao restringir as análises dos táxons fósseis desta forma, as espécies fósseis são analisadas no contexto de um quadro evolutivo que, neste momento, é a melhor reconstrução da árvore evolutiva de aves que temos, enquanto, ao mesmo tempo, também considera a morfologia de todas as partes esqueléticas.”
Meijer relata que as análises mostraram a existência de quatro grupos distintos de Galloanserae primitivos; Anseriformes, Galliformes, um grupo formado pela junção de Gastornithidae e Dromornithidae denominado Gastornithiformes e Vegavis - o primeiro membro dos Gallaoanserae datado de 69-66 milhões de anos atrás.
“Os Sylviornithidae foram colocados como parte dos Galliformes. Os Phorusrhacidae, as enormes aves sem habilidade de vôo da América do Sul, ficaram de fora dos Galloanserae e, portanto, não estão relacionados com Dromornithidae e Gastornithidae, pois podem estar mais perto dos cariamídeos (seriemas, etc)”
Tudo isso implica que os Dromornitídeos não são parte do grupo dos Anseriformes, mas seriam, sim, um "grupo-irmão" separado de aves terrestres, juntamente com os Gastornithidae. Tal como acontece com as ratites, onde um ancestral voador, repetidamente, deu origem a linhagens paralelas de aves não voadoras, uma pequena ave Galloansere primitiva voadora de origem as várias espécies de gastornitídeos e dromornitídeos, que, posteriormente, perderam a habilidade de voar. Esse novo estudo também reconstrói a dieta do Galloanserae ancestral, atribuindo uma dieta herbívora ou principalmente herbívora a estes animais, o que sugere que gastornitídeos, dromornitídeos e sylvioriditídeos mantiveram uma dieta similar, apesar de um aumento de quase 100 vezes na massa corporal e de mudanças morfológicas bastante grandes.
----------------------------------
Referência:
Meijer, Hanneke Horse-eating birds and Demon Ducks of Doom: untangling the fowl family tree The Guardian Wed, 22 Nov, 2017.
* As demais referências citadas entre aspas podem ser encontradas no artigo original, no site do The Guardian.
Crédito da Imagem: Worthy et al., 2017.
Worthy, T.H. et al., 2017. The evolution of giant flightless birds and novel phylogenetic relationships for extinct fowl (Aves, Galloanseres). Royal Society Open Science