A pergunta anterior sobre o medo intuitivo de um predador me despertou uma dúvida:
A pergunta anterior sobre o medo intuitivo de um predador me despertou uma dúvida: os instintos básicos dos animais são propagados geneticamente ou aprendidos? Digo, certos comportamentos instintivos são versões mais complexas de atividades autônomas como respirar ou são necessariamente aprendidos?
Primeiro de tudo, tradicionalmente comportamentos instintivos (veja o verbete instinct da wiki) são contrapostos aos comportamentos aprendidos, com os primeiros sendo considerados características inatas e os segundos sendo normalmente considerados adquiridos por meio de aprendizagem, seja individual ou social, o que já responderia sua pergunta, uma vez que por definição instintos básicos estariam entre as características inatas. O problema é que a questão é bem mais complicada do que estas definições sugeririam, que era exatamente o ponto que eu havia levantado na resposta a pergunta anterior ao me referir aos problemas com o conceito de ‘inato’.
Como afirma o filósofo P. E. Griffths em seu artigo para a Stanford Encyclopedia of Philosophy (SEP), a distinção entre inato e adquirido tem um lugar importante na história do pensamento humano, tendo ocupado um lugar central na disputa entre as teses epistemológicas rivais do empirismo e do racionalismo, pelo menos em suas versões mais radicais, mas durante o século XX esta distinção adentrou as ciências biológicas e sociais e associou-se com a crença que uma dada característica pode ser considerada inata quando ela estivesse de alguma forma “nos genes”, a despeito do fato dos genes desempenharem um papel essencial na produção de praticamente todas as características, agindo na imensa maioria das ocasiões de maneira bem indireta e em estreita combinação com o ambiente.
Segundo Griffths, os filósofos identificam quatro maneiras de abordar a distinção entre inato/adiquirido. Com a primeira maneira identificando as características inatas como sendo aquelas típicas de uma espécie inteira, enquanto as características adquiridas seriam aquelas que variam entre as populações e os indivíduos de uma dada espécie, portanto, encarando a 'inatidão’ como sinônimo de ’universalidade’. Em uma segunda perspectiva, as características inatas são tidas como as que podem ser explicadas pela ação da selecção natural, portanto, com a 'inatidão’ sendo equivalente a ’adaptação evolutiva’. Enquanto uma terceira perspectiva que, atualmente, é bem mais influente, segundo Griffths, identifica características inatas com as produzidas por determinados padrões de interação entre genes, os organismos e o ambiente. Portanto, encarando a 'inatidão’ como a ’canalização desenvolvimental’, uma ideia mais próxima ao sentido empregado por C.R. Waddington para o termo que é defendida por Andre Ariew. Por fim, existe uma quarta abordagem que sugere que ao rotular algo de “inato” queremos dizer simplesmente que ele estaria fora do domínio da psicologia, isto é, a distinção seria uma mera forma de demarcar o ’escopo disciplinar’ ao separar assuntos de interesses da biologia/etologia de um lado e da psicologia de outro, como é defendido por Richard Samuels, após analisar as diversas outras abordagens e suas variantes.
Voltando, então, às perspectivas mais tradicionais, os etologistas e psicólogos comparativos tendem a definir os comportamentos instintivos como aqueles controlados por circuitos neuronais pouco flexíveis e que, cuja atividade, e os comportamentos por eles controlados, seriam desencadeados por estímulos específicos. Estes comportamentos normalmente mostram-se estereotipados, estando, várias vezes, presentes desde cedo na ontogenia do animal (mas nem sempre), sendo por causa destes fatores considerados como constitutivos da espécie, não sendo portanto dependes da experiência prévia dos indivíduos. Enquanto isso, o que convencionou-se chamar de comportamentos aprendidos seriam aqueles que dependem da experiência individual, sendo muitas vezes adquiridos muitas vezes por tentativa e erro, quando não por cópia ativa do mesmo comportamento exibido por outros indivíduos ou até mesmo por meio do ensino ativo por parte destes outros indivíduos mais experientes. É importante também diferenciar os comportamentos instintivos dos meros reflexos (ainda que, como você sugeriu, alguns destes comportamentos possam ser baseados em conjuntos de reflexos concatenados) que são respostas motoras ou efetoras bem simples de um organismo a um estímulo específico, como seria o caso da contração pupilar em resposta à luz ou do reflexo de sucção de nascituros ou o movimento espasmódico da perna quando o joelho é golpeado que seriam respostas inatas, mas não comportamentos instintivos. Então, atendo-se a esta perspectiva mais tradicional, bons exemplo de comportamentos instintivos seriam o que os cientistas da área denominam ’padrões fixos de ação’ que consistem em sequências de ações de duração curta ou média, sem variação e que são realizadas em resposta a um estímulo bem definido.
Estes padrões fixos de ação são produzidos por circuitos neurais especializados conhecidos como ’mecanismos de libertação inatos’ que são ativados por certos estímulos externos sensoriais que, por exemplo, podem partir de outro animal e que são conhecidos como ’sinal’ ou ’estímulo liberador’. Deste modo, como estes tipos de comportamentos têm uma base neurológica bem específica - sendo por isso considerados 'impressos na circuitaria neuronal’ desde cedo, não necessitando que os indivíduos que apresentam estes comportamentos 'aprendam-nos’ de maneira óbvia - eles são por muitos tidos como exemplo clássico de comportamentos instintivos. Alguns exemplos destes padrões fixos de ação seriam as várias danças de acasalamento que são realizadas por aves machos na presença de indivíduos do sexo feminino de sua espécie, bem como as exibições (’displays’) e comportamentos de agressão exibidos por certos peixes quando confrontados por outros machos durante o período de acasalamento, como é o caso dos esgana-gatos de barriga vermelha que, de acordo, com uma série de experimentos realizados pelo famoso etologista Niko Tinbergen, seriam respostas padronizadas deflagradas por qualquer coisa da coloração vermelha que funcionaria com o 'sinal liberador’ [Veja o verbete da wiki sobre o assunto para mais informações].
Então, de acordo com estas abordagens, que Griffths comenta e que mais ou menos estão resumidas nas definições discutidas acima, muitos cientistas consideram que estes tipos de comportamentos - por aparentemente serem característicos das espécies, invariantes, não serem sujeitos ao controle voluntário, e especialmente, por terem como base uma circuitaria neuronal relativamente bem definida e que para se desenvolver não dependeria da experiência prévia ou do aprendizado social - seriam expressões de fatores biológicos 'inatos’ e, portanto, de 'programas genéticos’, como você coloca. Porém, além dessas quatros visões, não devemos nos esquecer que muitos cientistas e filósofos vêem com muita suspeita a distinção inato/adquirido como muito suspeita (quando não a consideram completamente equivocada), afirmando que tal dicotomia confunde uma série de distinções e detalhes que deveriam ser separados e explicitados, portanto, encarando a distinção entre inato e adquirido como, na melhor das hipóteses, apenas extremos de um contínuo, mas que não colaboram muito com o estudo da gênese dos comportamentos em si e nem de como eles teriam evoluído.
Esta postura crítica é na realidade aceita mesmo pelos cientistas e filósofos mais tradicionalistas em termos da dicotomia inato/adquirido e instintivo/aprendido, pois a partir de um exame mais atento de muitos destes comportamentos específicos que são normalmente tratados como inatos ou instintivos é possível perceber que eles são dependentes do ambiente (e às vezes mesmo de formas mais convencionais de aprendizado), assim como, de maneira complementar, pode-se argumentar que muitos dos comportamentos ditos ‘aprendidos’ dependem de uma série de circuitos e sistemas que são altamente conservados e que poderiam muito bem serem encarados como 'inatos’.
Os comportamentos de modo geral revelam-se frequentemente combinações de ambos os componentes, isto é, ’inatos/instintivos’ e ’adquiridos/aprendidos’, às vezes de maneira pouco óbvia é verdade. Na realidade, muitos psicobiólogos desenvolvimentais e adeptos da abordagem conhecida como 'Teoria dos Sistemas em Desenvolvimento’ vão mais longe e rejeitam a dicotomia como um todo, em função de não aceitarem umas das ideias mais básicas que está no cerne de muitas discussões sobre o 'inatismo’ que postula que evolução tornaria o desenvolvimento dos indivíduos mais confiável, tornando-o insensível a mudanças de parâmetros ambientais. Os defensores da TSD que são os maiores críticos da distinção entre inato/adquirido e instintivo/aprendido, ao invés disso, argumentam que a evolução muitas vezes torna o desenvolvimento ontogenético confiável por meio da estabilização dos parâmetros ambientais em um valor adequado ou ao explorar regularidades ambientais pre-existentes, como por exemplo indicam os estudos sobre ‘construção de nicho’ em que os os genes são encarados apenas como parte dos recursos desenvolvimentais e que são herdáveis, mesmo por que os fenótipos a eles associados só são herdáveis por que vários aspectos do meio ambiente são também estáveis e herdados de uma geração para outra, de modo que os organismos estejam sempre nos ‘ambientes’ ‘ideais’ para determinados padrões de desenvolvimento.
Tendo estas perspectivas em mente, também podemos criticar a própria expressão 'programa genético’ que, não podemos nos esquecer, no final das contas, é apenas uma metáfora que por sinal não captura muito bem as relações entre os genes e o processo de desenvolvimento ontogenético que traz à tona os fenótipos como os comportamentos dos animais que é que quis chamar a atenção ao discutir o ‘mapeamento genótipo-fenótipo’.

Esta crítica é muito parecida à crítica feita por Massimo Pigliucci sobre os problemas de outra metáfora, muito semelhante a ideia de ‘programação genética’, que é a do genótipo como uma ’planta genética’ (’genetic blueprint’).

A questão é que, embora a evolução comportamental dependa de modificações herdáveis que na imensa maioria das vezes tomam a forma de modificações nas sequências de DNA - que alteram a forma como os genes e seus produtos funcionam, são expressos e interagem entre si - existem vários bons motivos para ser muito cuidadoso com a metáfora de que o genoma de um organismo seria análogo a uma ‘planta’ ou que haveriam nele algum tipo de ‘programa genético’ intrínseco. Por exemplo, alguns cientistas tem argumentado que no caso do DNA não há uma distinção clara entre ‘programa’ e ‘dados’. Além disso diferente dos computadores tradicionais não existe sistema de controle central, especialmente, em se tratando de um organismo multicelular, que assim que começam a se desenvolver a partir de uma célula ovo passam a ser um sistema bem mais distribuído e cuja organização das redes de interação dos genes e seus produtos, dado os caprichos do processo evolutivo, acabam mostrando-se bastante pouco elegantes. Outro ponto contra a metáfora computacionalista é que a ideia de ’programação genética’ obscurece o fato de não herdamos só um monte de moléculas de DNA, deixando de lado os diversos fatores não genéticos fundamentais ao desenvolvimento.
De fato, a maioria dos organismos multicelulares herda, pelo menos, uma célula completa (ás vezes mais, como são os casos de células de suporte nutricional de origem materna comuns em alguns organismos que ajudam também a organizar o começo do desenvolvimento, estabelecendo gradientes químicos importantes no estabelecimento de pre-padrões embrionários) cuja composição molecular e organização espacial citoplasmática influencia bastante nas formas como os genes são expressos e seus produtos interagem nas primeiras fases de desenvolvimento, e que, por sua vez, são profundamente dependentes do organismo materno seja através da estrutura composição organização dos ovos e de onde eles estão localizados, seja através do ambiente fornecido pelo próprio útero materno que, caso não mantenha certas regularidades e padrões de mudanças concomitantes as sofridas pelos indivíduos em desenvolvimento, tornariam inviáveis o desenvolvimento do novo organismo. Na realidade, parte desta constância e da mudança dinâmica concomitante as quais me referi, em muitas espécies, persistem na forma de cuidado parental, da construção do ambiente de nidificação etc que são também herdados, mesmo que de maneira indireta, sendo essenciais, já que são estas condições e fatores (como aporte nutricional, temperatura, apoio mecânico, sinais químicos, ambiente microbiológico constante) que permitem que os genes atuem e produzam efeitos reprodutíveis e estáveis a cada geração.
Por isso, mesmo que seja difícil de se livrar de uma vez por todas dessas dicotomias (e talvez isso nem seja necessário ou mesmo recomendado) é importante estar ciente de suas limitações e do fato de como elas, na realidade, nos dizem muito pouco sobre como realmente as coisas são tanto do ponto de vista ontogenético como evolutivo.
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Literatura Geral Recomendada:
Alcock, John.Comportamento animal: uma abordagem evolutiva. 9a. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. 606 p.
Oyama, Susan , Griffiths, Paul E. and Gray, Russell D (Ed).Cycles of Contingency: Developmental Systems and Evolution. Cambridge, MA: The MIT Press, 2003. 377 pages.
Literatura adicional Recomendada e Citada:
Ariew A. 1999 Innateness is canalization: a defense of a developmental account of innateness. In When biology meets psychology (ed. Hardcastle V.). Cambridge, UK: MIT Press.
Atlan H, Koppel M. The cellular computer DNA: program or data. Bull Math Biol. 1990;52(3):335-48. PubMed PMID: 2379019.
Bateson P, Mameli M. The innate and the acquired: useful clusters or a residual distinction from folk biology? Dev Psychobiol. 2007 Dec;49(8):818-31.PubMed PMID: 18023000.
Birch J. Irretrievably confused? Innateness in explanatory context. Stud Hist Philos Biol Biomed Sci. 2009 Dec;40 (4):296-301. Epub 2009 Oct 31. PubMed PMID:19917488.
Griffiths, P. E. “Innateness and Genetic Information,” in P. Carruthers, S, Lawrence, and S. Stich (eds.), The Innate Mind, Volume 3: Foundations and the Future. Oxford University Press, 2007, pp.
Griffiths, P. E. (2001). “Genetic Information: A Metaphor in Search of a Theory.” Philosophy of Science, 68(3): 394–412.
Griffiths, P.E. What is Innateness? The Monist, 85(1): 70-85, 2002.
Griffiths, Paul, “The Distinction Between Innate and Acquired Characteristics”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2009 Edition), Edward N. Zalta (ed.)
Mameli M, Bateson P. An evaluation of the concept of innateness. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2011 Feb 12;366(1563):436-43. PubMed PMID: 21199847; PubMed Central PMCID: PMC3013469.
Pigliucci M. Genotype-phenotype mapping and the end of the 'genes as blueprint’ metaphor. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2010 Feb 27;365(1540):557-66. Review. PubMed PMID: 20083632; PubMed Central PMCID: PMC2817137.
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Créditos das figuras:
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Grande abraço,
Rodrigo