Além da seleção natural II: Complexidade e novas funções por caminhos alternativos
Uma visão ainda bem disseminada é a de que a seleção natural é o único fator, realmente importante, na evolução, sendo o grande responsável pela evolução da complexidade biológica [veja a figura ao lado retirada de Oltvai-Barabasi, Science, Oct 02)]. Embora seja inegável que a evolução biológica como um todo dependa da ubíqua e pervasiva seleção negativa ou purificadora e que a evolução adaptativa dependa de uma forma ou de outra da seleção positiva, muitos outros fatores são reconhecidamente essenciais à evolução. A própria evolução por seleção natural é, essencialmente, um processo em duas fases: a primeira que depende do surgimento de variabilidade fenotípica herdável, por meio das mutações, enquanto a segunda, esta sim envolvendo a seleção natural propriamente dita, que está associada com a reprodução diferencial de certas variantes fenotípicas em virtude delas influenciarem causalmente a performance ecológica e reprodutiva dos indivíduos que as possuem.
Porém, desde os anos 40, com a consolidação da síntese moderna da teoria evolutiva, sabemos que a reprodução diferencial pode não envolver a seleção natural positiva, mas ser resultado da deriva genética, um processo associado a variabilidade estocástica intrínseca das taxas de reprodução e sobrevivência dos indivíduos em populações naturais finitas que torna a deriva genética análoga aos erros estatísticos de amostragem que podem fazer as frequência gênicas oscilarem ao longo do tempo e genes serem perdidos ou fixados em toda a população pelo mero efeito do acaso [Veja "deriva genética" e "Além da seleção natural ou a importância da evolução neutra."].
O papel das mutações, da deriva genética e de outros fatores estocásticos na evolução ganhou ainda mais atenção e importância a partir dos anos 60 com a descoberta da extrema variabilidade ao nível molecular das populações naturais e, principalmente, devido ao aperfeiçoamento da teoria matemática da genética de populações evolutiva, especialmente com a proposta da teoria neutra da evolução molecular, por cientistas como Motoo Kimura, Thomas Jukes, Jack Lester King, Tomoko Otha e Masatoshi Nei etc. Porém, mesmo assim, a perspectiva convencional entre os biólogos evolutivos continuou sendo a de que seleção natural positiva, operando de forma incremental e contínua na variabilidade natural das populações, era a grande (se não única) causa do aumento de complexidade entre os seres vivos. Isto é, as estruturas complexas evoluiriam sempre a partir de outras mais simples, passo-a-passo, através de um processo de evolução gradual por meio da seleção natural em que cada uma das formas intermediárias, ao longo do caminho evolutivo, seria mais adaptada do que a anterior*.
Contudo, nas últimas décadas, um papel mais construtivo para as mutações, deriva genética e para outros processos estocásticos passou a ser considerado e defendido com mais veemência por muitos pesquisadores dentro da biologia evolutiva [Veja para uma pequena introdução, de como a deriva pode colaborar com a evolução adaptativa, esta resposta de nosso tumblr].
A complexidade biológica, de acordo com estas abordagens, poderia surgir por outros meios, como um efeito colateral da evolução neutra, sem ter sido especificamente um produto direto da seleção natural favorecendo a característica em questão, pelo menos, em seus estágios iniciais de sua evolução. Ainda mais recentemente, esta perspectiva foi estendida da evolução molecular e genômica para a evolução fenotípica.
Carl Zimmer, um dos melhores jornalistas científicos da atualidade, escreveu um artigo na edição de agosto da Scientific American Norte Americana abordando exatamente este tema, concentrando-se nos trabalhos e argumentos de dois autores (sobre os quais já comentamos por aqui no nosso site), o filósofo Robert N. Brandon e o paleobiólogo Dan W. Mcshea [Veja o artigo sobre outro trabalho McShea, “Complexidade por subtração da complexidade”] que propuseram uma 'lei evolutiva de força-zero' como o principal impulsionador da evolução da complexidade biológica.
Diferentemente dos modelos defendidos pelos geneticistas evolutivos, como Michael Lynch, Arlin Stoltzfus, Masatoshi Nei etc [1], a proposta de Brandon e McShea é aplicável a vários níveis da organização biológica já que lida com o conceito genérico de 'partes', propondo uma métrica baseada na variância do número e dos tipos de partes como medida de complexidade estrutural, fornecendo uma heurística que permite separar a origem da complexidade em termos puramente estruturais e organizacionais da evolução da complexidade funcional onde a seleção natural, sem dúvida, terá um papel mais proeminente [1].
A ideia básica, que foi apresentada em um artigo de Brandon (e em um livro de 2010, co-escrito por McShea e Brandon, 'A primeira lei da Biologia'), como explica Zimmer, é que deveríamos esperar que um monte de partes ou peças que inicialmente eram virtualmente iguais diferenciar-se-iam ao longo do tempo [1]. No caso dos seres vivos, isso ocorreria por que, sempre que organismos reproduzem-se, um ou mais dos seus genes podem sofrer mutação. Às vezes essas mutações dão origem a mais tipos de partes; o que leva os organismos que tenham mais partes tendo mais oportunidades para tornarem-se mais diferentes.
O exemplo óbvio, ao nível molecular, envolve a duplicação acidental de um gene, após o que, as duas cópias poderiam acumular mutações diferentes umas das outras, passando a tornarem-se cada vez mais distintas [1]. Portanto, ao se começar com um conjunto de partes idênticas, de acordo com McShea e Brandon, haverá uma tendência que elas tornem-se cada vez mais diferentes umas das outras, o que seria a chave para o aumento da complexidade dos organismos ao longo da evolução.
Claro, este processo é limitado pela própria seleção natural purificadora e por outros tipos de restrições biológicas, como por exemplo as oriundas da existência de processos homogeneizadores no genoma, como a conversão gênica que, por exemplo, pode tornar genes parólogos (derivados por duplicação de um gene ancestral) mais semelhantes entre si do que aos seus ortólogos em outras populações e linhagens. Porém, mesmo assim haveria uma tendência geral a diversificação e aumento da variabilidade e, portanto, da complexidade assim definida.
Eventualmente, entretanto, após o surgimento inicial deste tipo de complexidade, alguma característica associada a ela poderia ajudar um organismo a sobreviver mais e melhor e/ou a ter mais descendentes. Caso isso ocorresse, a seleção natural passaria a ser a responsável por espalhar esta característica pela população e, a partir de mais variabilidade genética, aprimorar seus aspectos funcionais com o passar das gerações:
Mamíferos, por exemplo, detectam cheiros por meio da ligação de moléculas odoríficas aos receptores das terminações nervosas em seus narizes. Estes genes receptores foram duplicados repetidamente ao longo de milhões de anos. As novas cópias mutaram, permitindo que mamíferos cheirassem uma ampla gama de aromas. Os animais que dependem fortemente de seus narizes, como ratos e cães, têm mais de mil desses genes de receptores. Por outro lado, a complexidade pode ser um fardo. As mutações podem mudar a forma de uma vértebra do pescoço, por exemplo, tornando-se difícil para a cabeça a girar. A seleção natural vai evitar que essas mutações se espalhes através das populações. Ou seja, os organismos que nascem com essas características tendem a morrer antes de reproduzirem-se, retirando, assim, as características deletérias de circulação quando elas surgem. Nestes casos, a seleção natural funciona contra complexidade.[1]
A principal diferença da perspectiva de McShea e Brandon que a diferencia da visão mais convencional da teoria evolutiva é que eles veem uma tendência a complexidade crescente, mesmo na ausência de seleção natural que, na verdade, poderia, em algumas circunstâncias, ser mesmo antagonizada por este fator:
Esta afirmação é, dizem eles, uma lei fundamental da biologia, talvez a sua única. Eles apelidaram a lei evolutiva da força de zero. [1]
McShea e Leonore Fleming [2], doutoranda de McShea na Universidade Duke, resolveram testar a dita lei de força zero, usando para isso as conhecidas moscas do gênero Drosophila. Como Zimmer explica, cientistas, por mais de um século, vêm criando linhagens de moscas deste gênero, especialmente da espécie Drosophila melanogaster, para uso em experimentos. Porém, diferente de seus parentes selvagens, nos laboratórios, estas moscas têm levado uma vida bem mais confortável, com um fornecimento constante de comida e um clima quente bem controlado, enquanto seus parentes selvagens continuam sendo obrigados a lidar com a fome, predadores, frio e calor. Por causa disso a seleção natural é tipicamente mais forte entre as moscas selvagens, eliminando consistentemente as variantes com mutações deletérias, com exceções, eventuais, óbvias. Porém, isso não é tão verdade nos ambientes protegidos dos laboratórios, o que torna a seleção natural neles bem mais fraca [1].
Os dois pesquisadores fizeram, então, o seguinte: Como a partir da lei evolutiva de força de zero é possível derivar uma previsão bem clara, já que ela implica na existência um forte impulso em direção ao aumento da complexidade que pode, entretanto, ser antagonizado pela seleção natural e por restrições evolutivas de vários tipos, eles pensaram:
ao longo do século passado, as moscas de laboratório deveria ter sido menos sujeitas à eliminação de mutações desfavoráveis e, portanto, deveriam ter se tornado mais complexas do que as selvagens.[1]
Fleming e McShea vasculharam a literatura científica e analisaram 916 linhagens de laboratório de moscas de fruta, realizando muitas medidas diferentes de complexidade em cada uma das populações, publicando os resultados na revista 'Evolution & Development' em artigo bem recente [2].
Os dois cientistas mediram a complexidade destes animais com relação aos tipos de partes, suas formas e cores ao longo de dois níveis focais independentes. Os resultados revelaram que, em comparação ao tipo selvagem, os mutantes D. melanogaster são significativamente mais complexos.
Outro resultado interessante é quando as partes dos mutantes são classificadas de acordo com o grau de restrição, as partes fracamente restritas são muito mais complexas do que as partes mais restritas. Segundo, os autores, estes resultados suportam a hipótese da lei evolutiva de força zero, ajudando também a começar a estabelecer até onde esta lei se aplicaria [1]. Na figura a esquerda e acima é mostrada a concepção de um artista [Imagem: Cherie Sinnen - Sciam] que contrasta a anatomia da mosca selvagem típica (esquerda) com algumas das mutações representativas que surgem em moscas de laboratório (à direita).
Alguns dos insetos tinha pernas irregulares. Outros adquirido padrões complicados de cores em suas asas. Os segmentos das suas antenas assumiu diferentes formas. Libertado da seleção natural, as moscas se deleitaram em complexidade.[1]
Nem todos, claro, estão convencidos por estes resultados iniciais. O paleontólogo Douglas Erwin, do Museu Nacional Smithsonian de História Natural, considera a hipótese equivocada pois partiria de pressupostos falhos. Para Erwin, como, de acordo com a lei evolutiva de força zero, a complexidade aumentaria na ausência de seleção, isso seria impossível, pois só poderia ser verdade caso os organismos pudessem realmente existir além da influência de seleção. Erwin argumenta que, além dos fatores ambientais, um animal tal como uma mosca para desenvolver-se adequadamente demanda que centenas de genes interajam em uma coreografia elaborada, transformando uma célula em muitas, dando origem a diferentes órgãos e, desta maneira, a um todo organizado e funcional. Assim, mutações que perturbassem esta coreografia, evitando que as moscas se tornem adultos viáveis, também seriam alvo da seleção natural [1]:
Um organismo pode existir sem a seleção externa - sem que o ambiente determine quem ganha ou perde na corrida evolutiva, - mas ele ainda estará sujeito a seleção interna, que ocorre dentro dos organismos. Em seu novo estudo, McShea e Fleming não fornecem evidências de que a lei da força de zero evolutiva, de acordo com Erwin, "porque eles só considerar variantes adultos." Os pesquisadores não olhar para os mutantes que morreram de distúrbios do desenvolvimento antes de atingir a maturidade, apesar de ser cuidada por cientistas.[1]
Abaixo e a direita podemos observar [Imagem: Edward Parente – Quanta Magazine] um mutante de Drosophila que tem olhos na forma de barras, sendo menores que os olhos dos indivíduos normais.

Embora Erwin esteja certo sobre o fato do estudo de McShea e Fleming tenha concentrado-se nos fenótipos (e, portanto, na complexidade) dos indivíduos adultos, aquilo que Erwin chama de seleção interna pode ser incluída nas restrições mencionadas pelos dois autores que refletiriam tanto o complexo mapeamento entre genes e fenótipos, como as restrições associadas a limitações de origem mecânicas e físico-químicas genéricas que estariam por trás da interação entre moléculas, células e tecidos organizados. Contudo, o ponto mais relevante é que o estudo de McShea e Fleming [1] não se propõem a estudar organismos vivos que estejam completamente fora da influência de restrições biofísicas, genético-desenvolvimentais e da seleção natural, mas sim contrastar o nível de complexidade entre organismos e populações mais ou menos submetidas a seleção e restrições.
A outra objeção de Erwin é ainda menos relevante e baseia-se no fato que aquilo que McShea e Brandon chamam de complexidade e medem não é exatamente a mesma coisa que a maioria dos outros cientistas querem dizer com o termo:
Afinal, um olho não só tem muitas partes diferentes. Essas partes também realizam uma tarefa em conjunto, e cada um tem uma tarefa específica a fazer. [1]
Mas, como Zimmer deixa claro, McShea e Brandon defendem que o tipo de complexidade que eles estão examinando e medindo pode levar a complexidade de outros tipos, inclusive a mistura de complexidade estrutural e funcional que os biólogos normalmente aludem.
"O tipo de complexidade que estamos vendo nesta população de Drosophila é o alicerce para coisas realmente interessantes que a seleção poderia se apossar de construir estruturas complexas que funcionam para ajudar a sobrevivência”, diz McShea. [1]
É exatamente por causa da confusão entre estrutura, organização e função que McShea e Brandon propuseram sua medida distintiva baseada na variação e diferenciação de partes, permitindo destrinchar as causas não-adaptativas das adaptativas do aumento da complexidade em sistemas biológicos.
O texto de Zimmer continua, desta vez, citando os exemplos dos trabalhos do grupo de Joe Thornton, da Universidade do Oregon, sobre a ATPase vacuolar de fungos, e os trabalhos de Michael Gray, da Universidade Dalhousie, em Halifax, com a evolução do processo de edição de RNA, que pretendo abordar em um post em separado, principalmente, o impressionante trabalho de Thornton.
Porém, os fatores não adaptativos não estão unicamente envolvidos na evolução da complexidade dos sistemas biológicos, mesmo quando a complexidade é mantida, o acúmulo de variação, mesmo restrito, em sistemas biológicos mais complexos pode gerar uma série de subprodutos potencialmente funcionais que podem ser, em outras circunstâncias ambientais, cooptados, e, assim, darem origem a novas adaptações secundárias.
Recentemente, Andreas Wagner e Aditya Barve [3], da universidade de Zurique, publicaram na revista Nature um artigo no qual investigam a evolução de redes metabólicas e o papel das exaptações na origem de novas funções. Neste estudo, os dois biólogos evolutivos resolveram avaliar qual seria a proporção de novas funções potenciais (no caso a utilização de fontes alternativas para síntese de biomassa) que surgem como subprodutos da continua evolução destas redes metabólicas com pressões de seleção para a manutenção da utilização de apenas a um substrato específico, por exemplo, a glicose.
A ideia é testar o papel das exaptações ao nível molecular na evolução de redes de reações químicas essenciais para a sobrevivência dos seres vivos pelas quais os organismos sintetizam biomassa e absorvem energia.
O termo 'exaptação' foi cunhado pelos paleontólogos Stephen Jay Gould e Elizabeth Vrba [4] como meio de designar aquelas características que surgem como subprodutos da evolução de outras características, adaptativas ou não-adaptativas ('spandrels'** ou 'tímpanos'), mas que, após sua origem, em outras circunstâncias, podem conferir vantagens novas e passarem a evoluir diretamente por seleção natural. O próprio Darwin já havia referido-se a este fenômeno pelo termo, um tanto insatisfatório, 'pre-adaptação'. O principal mérito desta ideia é que o termo 'exaptação' permite diferenciar a origem das características do seu papel atual em organismos vivos que é mantido pela seleção natural, portanto, reconhecendo o papel da contingência histórica na evolução fenotípica dos seres vivos.
O exemplo mais conhecido deste tipo de fenômeno seria o das penas, cuja origem se deu em um contexto adaptativo bem diferente do atual, a termorregulação, sendo estas estruturas mais tarde cooptadas e tendo evoluído por seleção natural em virtude da sua capacidade de permitir o voo, primeiro planado e, depois, por batimento ativo das asas.
A questão principal que surge desta proposta é o quão comum seriam as exaptações em relação as adaptações em sentido estrito. Uma questão que divide a comunidade cientifica desde a proposta original de Gould e Vrba no começo dos anos 80 [4]. A intenção de Wagner e Barye é avaliar esta questão em um sistema biológico mais facilmente controlável, mas que tivesse uma grande importância biológica. Com este intuito, os dois cientistas, conduziram estudo in silico envolvendo simulações sofisticadas de milhares de vias metabólicas da bactéria Escherichia coli [3, 5].
Através de novos métodos computacionais os pesquisadores puderam obter amostras aleatórias de muitas redes metabólicas que podem sustentar vida tendo como base uma fonte qualquer de carbono em particular, mas que, ao mesmo tempo, continham um conjunto aleatório de outras reações bioquímicas conhecidas. Como esta abordagem, Wagner e Barve conseguiram mostrar que, quando as simulações são executadas requerendo-se que tais redes sejam viáveis usando uma fonte de carbono fixa em particular, essas mesmas redes são também tipicamente capazes de usar outras fontes de carbono que não foram alvos do processo de seleção. Wagner e Barve puderam mostrar que todas as redes exibiam exaptações para a possibilidade de utilizar outras fontes de carbono, com algumas redes podendo usar até 20 fontes distintas *** [3, 5, 6].
Por exemplo, de acordo com o artigo, a simulação da evolução de redes que mantenham seletivamente a viabilidade de metabolização da glicose pode implicar que até 44 outras fontes de carbono sejam também viabilizadas pelas mesmas redes metabólicas. Isto quer dizer que qualquer adaptação em particular evoluída diretamente por pressões seletivas específicas destes sistemas metabólicos tipicamente envolverá também várias exaptações potenciais, o que sugere que estes sistemas metabólicos contenham um potencial latente para inovações evolutivas cujas origens não são diretamente adaptativas.
Estes resultados, em linhas gerais, são consistentes com a ideia de Gould de que muitos traços fenotípicos (neste caso específico, os traços metabólicos) podem ter origens não-adaptativas em uma proporção maior do que normalmente apreciado, inclusive podendo desafiar nossas capacidades de distinguir características adaptativas (em senso estrito) daquelas de origem não-adaptativa [Veja também “Fatores não adaptativos e a evolução da regulação gênica em procariontes”]. Esta observação, caso confirmada, de uma perspectiva semântica significaria que boa parte do que chamamos de adaptações (no sentido estrito do termo) são de fato exaptações, ou seja, as funções que estas estrituras, características e sistemas desempenhariam não teriam surgido originalmente por meio da ação da seleção natural favorecendo estas funções específicas. Algumas delas seriam, portanto, 'pré-adaptações'***, ou seja, teriam evoluído como adaptações para outras funções por meio da seleção natural, enquanto outras seriam 'spandrels', isto é, subprodutos originalmente não-adaptativos da evolução fenotípica que poderiam ser resultantes da forma como a base genético-desenvolvimental ou a organização de suas partes estão estruturadas****.
Pretendo, em um outro post, ir mais fundo em um dos exemplos, discutido por Zimmer, sobre o aumento da complexidade em sistemas biomoleculares por processos evolutivos não-adaptativos: o referente ao estudo do grupo de Joe Thornton com as ATPases de membrana dos vacúolos de fungos. Os trabalhos de Thornton e outros biólogos evolutivos que adotam abordagens semelhantes deverão aparecer mais e mais aqui no evolucionismo pois refletem o que a de melhor e mais empolgante da biologia evolutiva molecular moderna. Por enquanto fico por aqui e deixo os leitores com estes impressionantes resultados e as perspectivas que eles abrem, mostrando que a biologia evolutiva, como disciplina científica saudável que é, anda a toda.
-----------------------------------------------------
* Esta perspectiva geral inclui tanto a evolução adaptativa bem linear, bem como formas complexas de evolução adaptativa, como a dos olhos, em que pequenas mudanças nas funções, porém bem relacionadas entre si (sensibilidade a luz, diferenciação de luz e sombra, comportamento de forrageio e evasão dirigidos pela visão etc), teriam sido as responsáveis pela evolução da estrutura como um todo.
**Os exemplos de Wagner e Barye [4] podem ser considerados 'spandrels', uma vez que eles mesmos - ou seja, as capacidades de utilização de outros substratos que não o substrato original nas simulações não foram diretamente selecionadas, sendo livres para variar – são subprodutos da ocorrência de reações aleatórias, da necessidade da manutenção da coerência organizacional da rede de reações e da restrição associada a obrigatoriamente da utilização da fonte original. Desta maneira, podem ser encaradas como 'subprodutos arquiteturais' [7], associadas a manutenção da funcionalidade da rede metabólica em meio a evolução.
***O termo 'pré-adaptação' é muitas vezes mal interpretado, sugerindo que a estrutura teria evoluído por meio da seleção natural para atender às necessidades futuras do organismo, o que não faz sentido, mas é uma interpretação possível por causa da ambiguidade do prefixo 'pré'. Na realidade, o termo só quer dizer que a origem da estrutura, sistema, característica ou fenótipo deveu-se a uma 'adaptação prévia' para outra função, por isso ela seria um 'pré-adaptação' para outra coisa.
****Gould e Vrba [4] propuseram chamar 'exaptações' e 'adaptações' coletivamente de 'aptações', denotando a importância da seleção natural (primária ou secundária) em ambas os casos, mas diferenciando os contextos histórico e ecológico-funcional distintos de suas origens. Infelizmente, o termo jamais pegou e as pessoas continuam empregando o termo 'adaptação' em muitos sentidos diferentes. Ele é tanto utilizado para denotar o processo de evolução adaptativa que ocorre por meio da seleção natural de variantes herdáveis aleatórias; como para denominar o resultado deste processo (que é o principal uso entre os biólogos evolutivos), ou seja, 'as adaptações'; como para o fato de uma dada estrutura ou característica fenotípica poder ter uma função específica, independente de sua origem e destino evolutivo, o que faz com que ela possa conferir vantagens em relação ao sucesso reprodutivo dos organismos que a manifestassem (ou seja o fato dela ser 'adaptativa') em relação ao outro indivíduos que não as possuísse e que é a base do processo de evolução por seleção natural, não sua consequência e nem ele próprio. Estes três usos em particular são tremendamente perniciosos pois confundem a base para o processo, o processo em si e o resultado 'final' do processo.
----------------------------------------------------
Referências:
Zimmer, Carl The Surprising Origins of Life’s Complexity Quanta Magazine, July 16, 2013. [Zimmer, Carl The Surprising Origins of Life’s Complexity Scientific American, July 16, 2013]
Fleming e McShea: Fleming L, McShea DW. Drosophila mutants suggest a strong drive toward complexity in evolution. Evol Dev. 2013 Jan;15(1):53-62. doi: 10.1111/ede.12014. PubMed PMID: 23331917. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/ede.12014/pdf
Barve, Aditya, Wagner, Andreas A latent capacity for evolutionary innovation through exaptation in metabolic systems. Nature, 2013; DOI: 10.1038/nature12301 - http://www.nature.com/nature/journal/vaop/ncurrent/full/nature12301.html
Gould, Stephen Jay, and Elizabeth S. Vrba (1982), "Exaptation — a missing term in the science of form," Paleobiology 8 (1): 4–15.
Palmer, Chris 'Q & A: Evolution Makes Do' The Scientist, July 14, 2013.
Great exaptations: Most traits emerge for no crucial reason, Santa Fe Institute News July 15, 2013.
Gould, Stephen Jay (1997). "The exaptive excellence of spandrels as a term and prototype" Proceedings of the National Academy of Sciences USA. 94: 10750-10755. doi: 10.1073/pnas.94.20.10750