Andando como um peixe fora d´água
Caminhando sob o sol, apoiando-nos em nossos pés e utilizando nossas mãos para limpar o suor do rosto, normalmente, não nos indagamos sobre os percalços que nossos ancestrais mais remotos e nossa linhagem como um todo, passaram para chegar a este ponto em nossa história. Embora isso possa sugerir que seríamos o pináculo de algum movimento ascendente em direção ao 'progresso evolutivo', tal conclusão não se sustenta a partir de um exame um pouco mais atento das evidências. Nós, seres humanos, como os demais seres vivos, somos uma mistura de caracteres 'primitivos' (ou seja, mais antigos) e 'derivados' (ou seja, mais modernos e que se derivaram dos caracteres mais antigos) [‘Filogenia Mastigada 1: Princípios de Filogenia e conceitos básicos’, ‘Filogenia Mastigada 2: Polarização de Séries de Transformações e o ...’, ‘Filogenia Mastigada 3. Grupos Monofiléticos e Merofiléticos e a fil...’, ‘Filogenia Mastigada 4 : Interpretando uma árvore filogenética – par...' e 'Filogenia Mastigada 5 – Interpretando uma árvore filogenética 2/2’.]. Por exemplo, ao mesmo tempo que mantemos o padrão de cinco dedos (pentadáctilo) ancestral típico dos vertebrados terrestres (Por que cinco dedos? e Contando dedos em aves e dinossauros), as aves sofreram redução neste padrão nos membros posteriores, além de terem passado por uma incrível modificação nos membros anteriores que permitiu que elas voassem, dando origem as asas ("Ladeira acima e morro abaixo": Pistas para a evolução do vôo nas aves).
Adotamos uma postura bípede que nos permite caminhar sobre os dois membros posteriores (que viraram 'inferiores') e libera nossos membros anteriores (que viraram 'superiores') para manipular o ambiente com grande destreza e desenvoltura, já que as porções distais dos nossos membros anteriores (autopodes), isto é, nossas mãos, apesar dos cinco dedos tipicamente ancestrais, exibem uma sofisticada capacidade de movimentos e de controle da pressão exercida pro eles, que em outros aspectos é bastante derivada. No entanto, a despeito da postura bípede, mantemos o padrão tetrápode ('quatro patas') ancestral, enquanto outros vertebrados, como as serpentes [Imagem: Simon Murrell/CULTURA/SCIENCE PHOTO LIBRARY] e os cetáceos, não, tendo passado por reduções, simplificações e até perdas dos membros. Do mesmo modo, apesar de respirarmos ar e sermos relativamente resistentes ao ressecamento, ainda levamos o ambiente aquático ancestral dentro de nós, como toda mulher grávida pode confirmar. Porém, estas constatações não diminuem o enigma envolvido na questão 'Como chegamos até aqui?'. Entender como nós e os outros seres vivos chegamos ao estado em que chegamos a partir de estados pregressos diferentes é uma das principais tarefas da biologia evolutiva, o que obviamente traz uma série de desafios e questões, algumas delas que vão além das evidências e consenso da comunidade científica e chegam a como devemos interpretar certos 'termos' e 'conceitos' ou mesmo em se aceitar algumas constatações mais simples.
Basta refletirmos, por exemplo, sobre como, até hoje, ainda há grande resistência por parte de muita gente em aceitar que, tendo as características que temos e sendo primatas, compartilhamos um ancestral comum com os outros primatas, o que inclui macacos, tarsos e lêmures - o que implica (em um sentido bem real) que ainda somos 'macacos' [Afinal, o homem descende do macaco? (vídeo de David Ayrolla ) e Afinal, viemos ou não viemos dos macacos? Três respostas possíveis.]. Porém, imagine aceitar que os seres humanos nem ao menos deixaram de ser peixes. Sim, nós, seres humanos, como vertebrados tetrápodes, somos um tipo de peixe ósseo (Osteichthyes), pertencendo ao grupo dos sarcopterígeos, que inclui, além dos 'peixes de nadadeiras lobada' (como os peixes-pulmonados e as Latmerias), os 'peixápodes' (Elpistostegalia) e outros tetrápodes mais primitivos. Portanto, compreender como animais de 'quatro patas', que respiram ar e andam sob o sol, como nós mesmos, evoluíram a partir de seres aquáticos é um destes grandes desafios.
Apesar de já estar bem estabelecido que descendemos de certos tipos de 'peixes-tetrápodes' ancestrais, semelhantes ao Tiktaalik, Panderichtys etc [além de também temos uma razoável ideia de uma parte da série de modificações do esqueleto apendicular (nadadeiras/patas)], existem mais dúvidas sobre os detalhes de onde, quando e, principalmente, como isso aconteceu. Umas das dificuldades de sondar os processos e mecanismos pelos quais estas etapas da transição se deram é que só temos fósseis dos animais com as características de transição nas quais estamos interessados, aqueles como o Eustenopteron, Glyptolepis, Sauruipteris Panderichthys, Tiktaalik, Acanthostega, Ichthyostega, Tulerpeton etc. Infelizmente, nos dias de hoje, só existem vertebrados tetrápodes bem mais derivados ou descendentes de sarcopterígeos mais antigos (e com características apendiculares bem primitivas), como os peixes-pulmonados e as Latmerias, cujos ancestrais mais diretos separam-se de nossos ancestrais antes da transição de nossos ancestrais 'peixápodes' para os tetrápodes mais primitivos, ou seja, antes da transição da água para a terra. Mesmo assim, os estudos genéticos, anatômicos, biomecânicos, embriológicos nestes animais remanescentes são muito úteis, apesar de terem certas limitações.
A outra alternativa é empregar animais bem mais distantes (e bem mais derivados), mas que evoluíram soluções anatômicas e comportamentais, semelhantes, mas de maneira independente, àquelas dos nossos ancestrais 'peixápodes'. A ideia seria a seguinte: Ao investigar as circunstâncias ecológicas nas quais estes animais vivem e empregam suas habilidades, poderíamos, a partir daí, tentar fazer inferências sobre o tipo de pressões ecológicas que nossos ancestrais poderiam ter sofrido e quais as consequências fisiológicas, anatômicas e biomecânicas estas circunstâncias teriam acarretado sobre eles. O uso de peixes-morcego e do famoso Mudskipper [Imagem: PETER SCOONES/SCIENCE PHOTO LIBRARY] é um exemplo deste tipo de abordagem. Aqui, mais uma vez, nos deparamos com certas limitações. Nestes casos, as limitações são bem óbvias, uma vez que o movimento sobre o chão e as estruturas que estes animais empregam para fazê-lo são realmente muito diferentes das dos 'peixápodes', ancestrais dos tetrápodes. Felizmente, sempre se pode dar um jeitinho para tentar criar modelos mais próximos ao que desejamos e usar essa variedade de estratégias para balizar umas as outras.
Um exemplo deste 'jeitinho' é maravilhosamente ilustrado pelo trabalho desenvolvido pela pesquisadora (estagiária de pós-doutorado) da Universidade McGill (e agora Universidade de Otawa), no Canadá, Emily M. Standen, que rendeu um fantástico trabalho, publicado na revista Nature algumas semanas atrás. O trabalho foi realizado com a colaboração de outros dois pesquisadores, Trina Y. Du, estudante de Doutorado, e Hans C. E. Larsson. Este último orientador de Standen.
O insight de Emily foi usar um peixe diferente dos já mencionados anteriormente como modelo experimental. Os animais escolhidos foram da espécie Polypterus senegalensis, que, além de conseguirem respirar ar (possuindo pulmões), também podem apoiar-se sobre suas nadadeiras peitorais de modo a conseguirem impulsionar-se por ambientes terrestres, atravessá-los e, desta maneira, alcançar outros corpos d'água. Estas características tornam possível que eles sejam criados fora d'água, em um ambiente bem úmido, claro, mas, ainda assim, em que fatores como a gravidade tenham um impacto bem maior do que tem debaixo d' água. Porém, este peixe traz outra grande vantagem. Apesar de ser um peixe de nadadeiras raiadas, portanto, um actinoppterígeo (como o mudskipper e o peixe-morcego), os Polypterus são considerados actinopterígeos bem basais, isto é, eles estariam mais próximos à base da árvore deste grupo, tendo seus ancestrais mais diretos divergido bem no começo da história dos peixes de nadadeiras raiadas, e, desta forma, podem manter características mais próximas àquelas do ancestral comum entre actinopterigeos e sarcopterígeos; sendo assim, possivelmente, também mais próximas daquelas dos 'tetrápodes tronco' [2] e dos 'peixápodes' extintos, que são os grupos nos quais os pesquisadores estão mais interessados. Esta posição na árvore de parentesco dos vertebrados, em particular, os tornaria um modelo mais 'limpo' do que os dos demais actinopterígeos, já que as adaptações locomotórias dos Polypterus teriam ocorrido a partir de estruturas bem mais primitivas e portanto mais antigas.
Mas este estudo não é interessante só por causa do seu modelo, mas também pela pergunta científica que ele busca começar a tentar responder: Qual teria sido o papel da plasticidade fenotípica no desenvolvimento dos animais quando estes enfrentam condições diferentes das que estão normalmente acostumados e qual o possível efeito disso na evolução [2]?
Mas o que exatamente foi feito neste estudo?
Em primeiro lugar, Standen criou vários espécimens de Polypterus em cativeiro, começando com animais com 149 animais, obtidos de um fornecedor de peixes quando estes animais tinham apenas 2 meses de idade. Ela então manteve 111 destes peixes em um terrário, por períodos de oito meses, fora d´água, enquanto os demais foram mantidos em um aquário, nas condições típicas em que esta espécie de peixe normalmente vive [2]. Após os oito meses foram comparados os esqueletos, os padrões de natação e as habilidades de caminhada destes dois grupos de animais, medindo a plasticidade desenvolvimental anatômica e as características biomecânicas dos corpos destes animais criados em ambiente terrestre e comparando os resultados obtidos com o que foi observado nos peixes da mesma espécie, porém, criados em aquários, em paralelo, como controles [2]. Standen, Du e Larsson puderam observar que as modificações anatômicas e biomecânicas sofridas pelos animais em resposta ao ambiente terrestre guardavam uma notável similaridade com as alterações anatômicas exibidas pelas espécies mais primitivas de tetrápodes, conhecidas através do registro fóssil, oferecendo importantes insights sobre a evolução morfológica e comportamental de nossa linhagem de vertebrados terrestres.
Na figura acima, extraída de [3], vemos uma sequência de caminhar típica de Polypterus em terra, No primeiro quadro, à esquerda, observamos o peixe apoiar-se em sua nadadeira peitoral esquerda, enquanto seu corpo ondula e projeta sua nadadeira direita à frente. Em seguida (em b e c), a cabeça e cauda viram em direção à nadadeira esquerda; e (em d), finalmente, vemos a nadadeira direita apoiada no chão, enquanto a esquerda é levantada [3].
Peixes que andam melhor que os peixes que nadam:
Várias observações importantes foram feitas em relação aos peixes criados em ambiente terrestres. Para começar, estes animais desenvolveram nadadeiras dianteiras quase em linha reta, ao invés de voltadas para os lados, que é o padrão da linhagem em seu ambiente aquático. Isso permite que as cabeças destes animais sejam levantadas mais alto em relação ao chão, de modo que eles podem colocar mais peso sobre as nadadeiras [1], como descreve a jornalista Elizabeth Penisi em seu blog da revista Science.
“Os ossos que suportam as nadadeiras e ligam-nas na parte de trás da cabeça tomaram novas formas. Esses ossos formam a cintura escapular. Um osso, o equivalente ao nosso osso da clavícula que se estende sob o peito, cresceu suportando melhor o peso do corpo. A ligação entre ele e outro osso que vai até a lateral do peixe ficou mais forte, mas que este mesmo osso tornou-se mais fino o que permitiu mais espaço para a cabeça balançar de um lado para outro. O contato entre outro osso peitoral e o crânio também foi diminuído, possibilitando que a cabeça move-se para cima e para baixo. A maioria dos peixes não precisam de tal flexibilidade na cabeça, porque na água eles facilmente mover seus corpos para olhar ou comer em uma direção diferente.” [1]
Então o que acontece é que quando estes peixes empurram o chão com suas nadadeiras para darem um passo, elas não escorregam, permitindo que eles deem passos mais rápidos, como mostra o vídeo [1]:
Como explicam os autores do artigo [2]:
“Ao colocar este animal predominantemente aquático em um ambiente obrigatoriamente terrestre, mudamos as forças experimentadas pelo sistema músculo-esquelético do animal. Nós previmos que as forças gravitacionais e de fricção aumentadas experimentadas pelos peixes terrestrializados causaria mudanças na "eficácia" do seu comportamento locomotor quando deslocam-se via terrestre, bem como alterações na forma das estruturas esqueléticas usadas na locomoção. Também previmos que as respostas plásticas da cintura peitoral do Polypterus terrestrializado seria na mesma direção das alterações anatômicas vistas no registro fóssil dos tetrápodes basais.” [2]
Outro fato interessante é que os peixes criados em ambiente terrestre podem nadar quase tão bem como suas contrapartidas aquáticas, sugerindo que não haveriam 'trade-offs' óbvios entre ser um bom nadador e um bom caminhante [3], o que poderia ter facilitado a evolução dos primeiros vertebrados 'peixápodes', caso exibissem este nível de plasticidade fenotípica ao se desenvolverem. Além disso, os peixes criados em ambiente terrestres exibiam menos variação no comportamento locomotor, apoiando suas nadadeiras peitorais mais perto de sua linha mediana corporal, conseguindo elevar mais suas cabeças e escorregarem menos suas nadadeiras, o que permite um volteio mais eficaz da parte anterior do corpo apoiada sobre a nadadeira [2]. De acordo com os autores do artigo, tais características melhoram o desempenho durante locomoção em terra.
O que então parece ter acontecido é que essas mudanças no padrão de caminhada dos Polypterus provavelmente afetaram as forças experimentadas pelo esqueleto destes animais, influenciando o crescimento do seu esqueleto e induzindo uma mudança na forma dos ossos. Portanto, a mudança comportamental imediata causa mudanças nas relações físicas entre o organismo e o ambiente que afetam seus processo de desenvolvimento e crescimento.
Com base nestas observações, os pesquisadores previram que mudanças comportamentais semelhantes estariam presentes em tetrápodes mais primitivos. E foi isso que constataram ao examinarem os fósseis destes animais, já que as diferenças na morfologia óssea verificada nos Polypterus 'terrestrializados' são muito parecidas com as mudanças evolutivas na base das cinturas peitorais que ocorreram nos tetrápodes durante o período Devoniano [2], como aquelas identificadas em Eusthenopteron, Acanthostega e Ichthyostega [2].
Na figura ao lado, retirada do artigo [2], podemos conferir um cenário proposto pelos autores para a contribuição da plasticidade desenvolvimental à mudança evolutiva em larga escala nos tetrápodes basais (tronco). À esquerda vemos perspectivas anterodorsolaterais da cintura peitoral dos tetrápodes tronco (considerados mais primitivos) selecionados (A, B, C) e dos peixes Polypterus criados na terra (D) e na água (E). Em seguida são mostradas as mudanças morfológicas associadas a plasticidade devesenvolvimental comparáveis: a redução do supracleitro (a), a redução da margem posterior do da câmara do opérculo (b), reforço do contato cleitro-clavicular (c) e o estreitamento e alongamento da clavícula (d). ano, anocleitro; cl, cleitro; cla, clavícula; por, cume pós opercular (note que o cume em Cheirolepis não é diferente, mas é posicionado lateralmente, como é mostrado); scl, supracleitro.
Embora, como lembram alguns pesquisadores que não participaram do estudo [1], atualmente a maioria dos pesquisadores da área defenda que os membros dos tetrápode evoluíram originalmente no contexto da locomoção em ambientes aquáticos (sobre os fundos ou sobre galhos submersos), este estudo mostra a importância da flexibilidade fenotípica, ou seja, da capacidade que os seres vivos têm de responder à mudanças ambientais conforme crescem e desenvolvem-se, o que mostra que não há necessariamente um fenótipo único e pré-programado.
Estes resultados levaram os pesquisadores a indagarem-se sobre quais seriam as implicações destas similaridades na evolução dos tetrápodes, como colocou John Hutchiinson em artigo na Nature, comentando o trabalho de Standen, Du e Larsson:
“Será que, durante o período Devoniano (cerca de 360 a 420 milhões de anos atrás), os ancestrais dos 'peixíbios' tetrápodes, que debatiam-se de tempos em tempos sobre a terra, passaram gradualmente de uma anatomia e de comportamentos mais desenvolvimentalmente flexíveis (como o de Polypeturs) para formas e funções as mais canalizadas dos tetrápodes adaptados à terra?”
A ideia básica é a seguinte: O fato de indivíduos em ambientes diferentes dos seus costumeiros, submetidos portanto a novos estresses ambientais abióticos distintos, poderem expressar fenótipos diferentes pode por si mesmo influenciar indiretamente a evolução adaptativa das populações as quais eles fazem parte. Isso aconteceria por que tais fenótipos diferentes moldariam novas pressões seletivas, uma vez que modificariam a relação entre organismo e o ambiente. Isso por sua vez, poderia, por exemplo, tornar as populações que sofrem estas modificações suscetíveis a assimilação e a acomodação genética (conceitos propostos por Conrad Waddington que foram explorados em maior detalhe nesta reposta aqui de nosso tumblr) [3], principalmente, caso condições ambientais estressantes liberassem variabilidade genética críptica [2]. Desta maneira, eventualmente, estes fenótipos alternativos, inicialmente induzidos ambientalmente (claro, caso vantajosos e na presença de variação genética oportuna), poderiam transformar-se em fenótipos desencadeados geneticamente (sendo expressos de maneira mais estável em uma gama mais ampla de condições ambientais), resultando na abolição da plasticidade anterior e levando a sua eventual fixação destas novas morfologias, comportamentos e formas de deslocamento [1, 2, 3].
Mas é preciso um pouco de cuidado ao interpretar este modelo evolutivo em particular. Estas afirmações podem ser facilmente confundidas com o que normalmente as pessoas chamam de 'Lamarckismo' (um termo infeliz, por sinal, veja aqui e aqui). É preciso enfatizar que os processos de assimilação e acomodação genética (e fenômenos como o efeito Baldwin) não envolvem a herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso, apenas ressaltam o papel de mudanças anatômicas, fisiológicas e comportamentais individuais (e induzidas por alterações nas relações entre organismo e o ambiente*, mas permitidas pelo genótipo anterior dos organismos) como potenciais iniciadoras de novas pressões seletivas ao revelarem variabilidade herdável antes não visível [Para maiores detalhes veja estas respostas, aqui, aqui, aqui e aqui de nosso tumblr 'Pergunte ao Evolucionismo'].
O biólogo e blogueiro PZ Myers, em seu blog Pharyngula, explica em mais de detalhe a ideia que está por trás do experimento:
“Os animais [Polypterus] têm uma capacidade intrínseca para a construção de membros mais fortes, que não é visível quando eles são criados de forma contínua em um ambiente aquático, mas quando eles são criados em um ambiente terrestre, eles tendem a reforçar os ossos de um jeito que se assemelha ao dos 'peixápodos' fósseis. Isto não é surpreendente, mais do que seria surpreendente se você crescesse músculos peitorais mais fortes caso tenha forçado-se a fazer flexões todos os dias, o dia todo. Também não é lamarckiano se você malha e ganha músculos
As consequências evolutivas estão nas oportunidades que se abrem para a seleção. Se os peixes mais primitivos tinham uma propensão para a formação de ossos mais robustos em um ambiente terrestre, o que lhes permite viver mais tempo ou serem mais móveis em terra, o ato de viver em terra primeiro cria uma oportunidade para que as variantes que aumentam a mobilidade terrestre operadas pela seleção. Estas variantes seriam invisíveis se os animais sempre vivessem na água, afinal.
Então é por isso que quando falamos de assimilação genética e dizer o fenótipo vem em primeiro lugar, em seguida, surge o genótipo para consolidar a adaptação, não estamos falando de qualquer coisa contrária aos modos darwinianos padrão de seleção. Plasticidade do desenvolvimento cria situações nas quais genes de outra forma invisíveis podem se tornar sujeitos a seleção.”[4]
Portanto, neste modelo evolutivo não é o ambiente que o uso e o desuso que induz mudanças hereditárias, pois elas já existiam como capacidades latentes não reveladas dos organismos que nos ambientes anteriores por causa da maneira como interagiam ao longo do seu desenvolvimento hereditárias não se expressavam. Porém, em um novo contexto ambiental, essas características são então 'reveladas' e, caso haja variabilidade genética dentro da população em relação a velocidade, prontidão e quantidade de estímulo necessária a sua expressão, um processo de seleção natural pode ter início caso estes novos fenótipos e, principalmente, expressá-los de maneira mais imediata e independente do ambiente sejam mais vantajosos.
Estas ideias ainda precisam ser melhor investigadas, mas resultados como este, publicados na revista Nature, mostram caminhos possíveis de como tais processos podem ter tido um papel chave na evolução dos animais, evidenciando o papel da Evo-Devo e de estudos experimentais na pesquisa sobre macroevolução.
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*É bom deixar claro três coisas sobre organismos, ambiente e evolução por seleção natural. Primeiro, por 'ambiente' entende-se tanto os fatores 'abióticos' (como a gravidade, a água, o ar etc), como os fatores 'bióticos' - o que inclui os outros organismos da mesma espécie e de outras espécie com os quais os organismos interagem direta ou indiretamente. Segundo, estes 'fatores ambientais' exercem as chamadas 'pressões seletivas' por meio das relações entre os organismos e seus ambientes. Assim, os demais indivíduos da mesma espécie podem exercer 'pressão seletiva' por meio da competição intraespecífica por recursos, territórios, parceiros etc ou em virtude das capacidades de cooperação ou a possibilidade de cuidado parental que podem aumentar as chances de sobrevivência (e portanto deles deixarem mais descentes) dos indivíduos que cooperam mais, como as chances de sobrevivência dos seus descendentes, comparados com aqueles que cooperam menos ou cuidam menos de seus descendentes. Já os fatores abióticos podem exercer 'pressão seletiva' por causa da forma como diferentes tipos de indivíduos respondem às mudanças químicas e físicas em seus ambientes, como, por exemplo, àquelas associadas a capacidade de sustentar o próprio peso fora d´água ou de se locomover em terra. Estas mudanças, por sua vez, dependem de como os esqueletos, músculos, cérebros e sistemas perceptuais destes indivíduos são afetados por estas condições. Desta maneira, os indivíduos não são 'passivamente selecionados' por condições ambientais fixas, muito menos são selecionados por agentes conscientes, mas, na verdade, os organismos são 'corresponsáveis' por produzir estas pressões seletivas em função da maneira como eles e seus ambientes interagem. Terceiro, as pressões seletivas, além de dependerem das relações organismos-ambiente, para que haja evolução por seleção natural, elas dependem de existirem diferenças nestas relações organismo-ambiente entre os organismos individuais de uma população. Além disso, para que tenham efeitos evolutivos estas diferenças dos fenótipos individuais devem ser (pelo menos em parte) herdáveis, pois só assim elas podem espalhar-se pela população e acumularem-se ao longo das gerações em virtude de seus efeitos no sucesso reprodutivo dos indivíduos que as possuem em detrimento daquele associada aos indivíduos que não as possuem.
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Referências
Pennisi, Elizabeth 'Fish raised on land give clues to how early animals left the seas' Science Magazine News, 27 August 2014
Standen, Emily M., Du, Trina Y. & Larsson, Hans C. E. Developmental plasticity and the origin of tetrapods Nature 27 August 2014 doi:10.1038/nature13708.
Hutchinson, John 'Evolutionary developmental biology: Dynasty of the plastic fish' Nature, 2014 doi:10.1038/nature13743
Myers PZ 'Developmental plasticity is not Lamarckism' Pharyngula, 28 of august, 2014