Aquecimento global: salve-se quem puder!
Eu estava comendo um lanche com um amigo aqui em Brasília esta semana, e ele comentou comigo como está estranha essa invasão de pequenos besouros na cidade. Estamos começando a estação chuvosa do Cerrado, então é comum que os insetos pululem ao nosso redor numa algaravia intensa de sexo e morte.
Mas para nós dois parece que algo está diferente. Ou há mais insetos que o normal, ou a composição dos tipos de insetos que ficam rodopiando em volta das luzes da cidade está diferente. Qual é a causa? Aventamos a hipótese de que o aquecimento global tem algo a ver com isso. Mas somos apenas dois demagogos comendo sanduíche numa loja de conveniência, não fizemos experimento nenhum, então nada (além de algum valor intuitivo de plausibilidade) podemos oferecer para amparar nossas explicações preguiçosas. Mas nada mesmo? Enquanto estapeamos os besouros que ficam pousando em nossas cabeças, chineses botam a mão na massa.
Na semana passada, a revista científica Nature noticiou que cientistas chineses, após analisar mais de mil anos de registros históricos (MIL anos!), concluíram que explosões populacionais de gafanhotos têm maior probabilidade de acontecer quando o clima está mais quente e mais seco.
O motivo de os chineses estarem registrando esses dados há tanto tempo, além do óbvio fato de a China ser uma civilização letrada há milhares de anos, é que esses enxames de gafanhotos causam diversas perdas para os humanos, destruindo as plantações. Na verdade, os registros chineses de tais nuvens de gafanhotos remontam até a datas superiores a dois mil anos atrás.
Ge Quansheng, envolvido no estudo e diretor do Instituto de Pesquisas em Ciências Geográficas e Recursos Naturais da Academia Chinesa de Ciências, disse à Nature que "os resultados são um alarme para mais uma consequência séria das mudanças climáticas".
Muitos gafanhotos, muitos besouros... muitos gafanhotos e besouros se reproduzindo... muitos gafanhotos e besouros morrendo. O que isso lembra?
Lembra as premissas que Charles Darwin usou para concluir que o mecanismo por trás da mudança evolutiva é a seleção natural.
O aquecimento global antropogênico já é uma fonte de seleção natural (ou pressão seletiva, como costumam chamar os biólogos evolutivos) nas espécies do planeta. Quando seu hábitat está ficando insuportável, existem três "saídas": extinção, adaptação às novas condições ou o bom e velho "salve-se quem puder", a migração. (As três coisas podem acontecer concomitantemente à seleção natural.)
Migração significa que a distribuição de várias espécies pode mudar no futuro do planeta, como estima a pesquisa de William Cheung e colaboradores, publicada este mês na revista científica Global Change Biology.
A equipe de Cheung calculou o que acontecerá com 1066 espécies marinhas que são alvos da pesca comercial (vertebrados e invertebrados), a fonte de alimentação de muita gente. A conclusão dos cientistas é que o potencial de captura desses frutos do mar crescerá de 30 a 70% em altas latitudes, mas cairá 40% nas regiões dos trópicos até o ano de 2055. Isso significa milionários da indústria da pesca em países como Noruega e Rússia, e grandes problemas para os pescadores do Brasil e da África.
Enquanto isso, Richard Kerr, na revista Science, relata que pesquisas mostram que o aquecimento se manteve estável nos últimos dez anos. Porém, isso pode ser mais o barulho de um pavio se encurtando do que um motivo para refrescarmos a cuca. Apesar de toda a festa dos negacionistas do aquecimento global antropogênico, as simulações dos cientistas já esperavam que num quadro de aquecimento acontecessem pausas de estabilidade como a da última década. A perspectiva para o século XXI continua sendo de aumento de pelo menos 2°C na média da temperatura global.
Eu disse 2°C? Novos estudos científicos indicam que pode aumentar ainda mais, até 4°C em 2060 ou 2070.
Os últimos 10 anos podem ter indicado que não foi tão ruim assim o saldo da flatulenta insistência humana em emitir gases de efeito estufa, quando somada a outros efeitos climáticos como La Niña e El Niño. Mas a perspectiva de especialistas, reunidos este mês na Universidade de Oxford, é pessimista.
Os modelos para o aumento de 4°C incluem grandes declínios (de até 20%) no regime de chuvas na África, na Austrália, no Mediterrâneo e na América Central, o que pode significar mais fome no mundo.
Uma das pesquisas tratadas no encontro, de Richard Betts, prevê que 4°C de aumento no mundo significam até 10°C a mais em regiões como a África ocidental e meridional, e o mesmo ou ainda mais no Ártico.
Outro estudo apresentado em Oxford, de Nigel Arnell, faz cálculos para o que pode acontecer até 2080 se as emissões de gás carbônico não sofrerem cortes dramáticos: 1 bilhão de pessoas sofrerão por causa da força da água, metade delas em áreas propensas a inundações; as lavouras mudarão intensamente, com possíveis quedas em produções como a soja; até 15% da terra cultivável atual se tornará infértil, embora as terras aquecidas em locais antes frios podem representar 20% a mais de terra fértil; e a cobertura da Amazônia sofrerá uma retração significativa.
Quais são as soluções? Existem as soluções arriscadas e malucas, e as soluções simples.
Uma solução arriscada e maluca é imitar o que já aconteceu na história registrada durante erupções de vulcões: emissão de gases aerossóis (como gases compostos por enxofre) na atmosfera, para que eles diminuam as temperaturas. Poderia ser usado numa emergência global, mas os custos são altos e os riscos também, como indica um artigo científico de Alan Robock e colaboradores relatado em Nature Reports Climate Change . Os riscos incluem dificultar o fechamento do buraco na camada de ozônio sobre a Antártida, secas regionais, acidificação dos oceanos (que destrói os corais), redução na quantidade de luz solar que recebemos e - pasme! - o fim da cor azul do céu. Os autores concluem que esta "geoengenharia" será usada apenas na medida em que os danos provocados pelo aquecimento forem grandes demais.
A solução simples continua sendo uma dramática diminuição na emissão de gás carbônico, e nisso cada um dos bilhões de seres humanos neste planeta pode contribuir.
Ou vamos deixar que nossa irracionalidade nos jogue novamente nas presas sangrentas da seleção natural? Vamos agir como os besourinhos de Brasília em torno das lâmpadas, hipnotizados pelos prazeres do consumo irresponsável, sem olhar o que está acontecendo em volta e sendo esmagados pelas circunstâncias?
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Referências:
Qiu, J. (2009). Global warming may worsen locust swarms Nature DOI: 10.1038/news.2009.978
CHEUNG, W., LAM, V., SARMIENTO, J., KEARNEY, K., WATSON, R., ZELLER, D., & PAULY, D. (2009). Large-scale redistribution of maximum fisheries catch potential in the global ocean under climate change Global Change Biology DOI: 10.1111/j.1365-2486.2009.01995.x
Kerr, R. (2009). What Happened to Global Warming? Scientists Say Just Wait a Bit Science, 326 (5949), 28-29 DOI: 10.1126/science.326_28a
Barnett, A. (2009). No easy way out Nature Reports Climate Change (0911) DOI: 10.1038/climate.2009.106
Heffernan, O. (2009). Risky business Nature Reports Climate Change (0911) DOI: 10.1038/climate.2009.105
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Créditos das imagens
Nuvem de gafanhotos: KAZUYOSHI NOMACHI / SCIENCE PHOTO LIBRARY
Gráfico mostrando a estabilidade do aquecimento nos últimos 10 anos: Adaptado de J. KNIGHT ET AL., BULL. AMER. METEOR. SOC., 90 (SUPPL.), S22--S23 (AUGUST 2009)
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