As vantagens da recombinação e do sexo
O sexo não é dos fenômenos mais fáceis de explicar, pelo menos, não de um ponto de vista evolutivo. Rituais de acasalamento são custosos, assim como são a exibição de belas cristas, caudas coloridas e ornamentadas e de cantos majestosos. Tudo isso exige grande esforço físico, portanto, investimento energético, além de pode tomar muito tempo e expor os animais a riscos que podem simplesmente tomar suas vidas eliminado por completo as perspectivas de reprodução, seja pela exposição a predadores, seja pelo conflito com outros conspecíficos, no caso de disputas entre indivíduos por parceiras, ou seja por estresse imunológico [1]. Além de tudo isso, o que se consegue é passar apenas metade do seu genes às gerações futuras e não necessariamente a metade 'boa'. Por isso, o sexo continua sendo um enigma evolutivo; e embora tenhamos muitos modelos e explicações interessantes, e com certo nível de apoio empírico, grandes incógnitas ainda permanecem e não existe uma resposta completamente convincente, ainda que existam várias boas candidatas* [Para maiores detalhes veja esta resposta a uma pergunta para nosso tumblr ‘Pergunte ao evolucionismo’]. Há pouco tempo, entretanto, cientistas descobriram mais evidências que corroboram uma das hipóteses que explicam por que ele parece realmente valer a pena.
Os dois principais tipos de cenários que explicam a manutenção da reprodução sexuada são respectivamente* a hipótese da rainha vermelha, sobre a qual já escrevi alguns artigos ("Rainhas, besouros e fungos 'degenerados',"Por que genes imunitários que nos prejudicam persistem?") aqui no evolucionismo.org - em que a coevolução parasita-hospedeiro é o foco das vantagens recombinatórias do sexo - e o outro, reúne uma série de modelos que podem ser descritos como ‘hipóteses do acumulo mutacional’, com o modelo proposto por Alexey Kondrashov, ‘hipótese mutacional determinística’ que talvez seja um dos mais conhecidos [2]. Esta segunda classe de modelos enfatizam que o sexo se manteria por causa da capacidade que ele confere aos genomas de se livrarem de variantes genéticas deletérias de uma vez (ou em poucas vezes) , sem incorrerem em excessiva carga genética e mutacional. O sexo aumentaria, por assim dizer, a capacidade da seleção natural em eliminar mutações deletérias.
Em resumo, a ideia de Kondrashov [2] é que a imensa maioria das mutações desfavoráveis são apenas ligeiramente deletérias, tendo pouquíssimo impacto sobre a aptidão dos indivíduos por elas mesmas e, portanto, sendo muito difíceis de serem eliminadas pela seleção em virtude das flutuações aleatórias nas taxas de nascimentos e mortes, especialmente em pequenas populações nas quais a deriva genética impera. A outra pressuposição de Kondrashov é que essas mutações ajam de forma sinergística já que os loci (genes) em questão estariam envolvidos eminterações epistáticas e não simplesmente somariam linearmente seus efeitos. Desta forma, o acumulo de mutações ligeiramente desfavoráveis aumentaria muito seu efeito composto sobre a aptidão dos seus portadores, em termos de sobrevivência e reprodução. Exatamente por isso, um processo como o sexo que combinasse e embaralha-se os genes, seria a solução, ao criar tanto indivíduos com poucas mutações desfavoráveis como outros com muitas destas mesmas mutações que seriam altamente afetados pelas mesmas morrendo muito cedo (ou quem sabe não nascendo), levando assim com eles diversos alelos defeituosos, com muito menos mortes, enquanto os remanescentes manteriam combinações bem menos negativas e prosperariam.
No entanto, a tese de Kondrashov é bastante criticada por causa de sua dependência de algumas suposições bem restritivas, como a necessidade de uma incidência de mutações desfavoráveis, talvez, um pouco alta demais e a demanda por interações epistáticas não-aditivas entre os loci envolvidos que esbarra na existências de evidências do contrário**, ou seja, de várias mutações com efeitos negativos terem efeitos não sinergísticos umas sobre as outras e , até mesmo, em alguns casos, destas mutações terem inversos, ou seja, antagônicos. Para que houvesse maior chance do mecanismo de Kondrashov funcionar a espécie em questão precisaria exibir Gs maiores do que 1, onde ‘G’ o número de sítios sob seleção apresentando efeito sinergístico e ‘s’ é o coeficiente de seleção, o que parece ser o caso em espécies de Drosófilas e de alguns outros organismos, mas não de muitos outros.
Porém, em 1966, Hill e Robertson [3] postularam, baseados em simulações computacionais, que mesmo genes que interagirem-se pouco ou mesmo não interagissem, mas que estivessem e regiões próximas e especialmente de baixa recombinação poderiam exercer uma interferência análoga entre si, diminuindo o poder da seleção natural e favorecendo o acumulo de mutações deletérias, ao dificultar sua eliminação.
De acordo com McVean e Charlesworth [4] a associação entre alelos cujos efeitos fenotípico estão sob seleção natural e o pano de fundo genético em que se encontram pode reduzir a eficácia de seleção através da chamada interferência Hill-Robertson (IHR), mesmo em alelos cujos efeitos estejam sob fraca seleção natural, restringindo a adaptação molecular e afetando os padrões de polimorfismo e divergência. A interferência faz com que a distribuição de freqüência de sítios segregantes passem a assemelhar ao esperado para as mutações mais fracamente selecionadas e também pode produzir padrões específicos de desequilíbrio de ligação. Por isso, mesmo que os coeficientes de seleção envolvidos sejam pequenos, as consequências na aptidão da IHR com seleção fraca através do genoma podem ser consideráveis [4]. Por causa disso, os autores em seu artigo de 2000 [4] sugeriram que a interferência HR em loci sob seleção fraca deve ser um fator importante na evolução dos genomas não recombinantes, 'podendo explicar a constância inesperada do viés de códon entre espécies de tamanhos muito diferentes dos censos populacionais, bem como várias características incomuns de utilização de códons em Drosophila' [4].
Zhen, em comentário a republicação do artigo clássico de Hill e Robertson, afirma que (como mais tarde explicara o biólogo evolutivo Joe Felsenstein, em 1974), a seleção ao agir sobre um locus iria aumentar a deriva genética em um outro locus ligado ao primeiro ao distorcer a segregação dos alelos na próxima geração [5]. Assim, aqueles alelos em um pano de fundo genético favorável - isto é, associados com alelos de outros loci que não estejam sob seleção negativa ou sobre pelo menos sob menor intensidade da mesma - tenderiam a deixar mais descendentes (mais, até mesmo, do que que o esperado pela seleção natural positiva agindo diretamente no fenótipo associado ao locus em questão) do que os que estivessem associados com um pano de fundo genético pior, que deixariam menos descendentes. Isso, por sua vez, levaria ao aumento da deriva genética aleatória no locus ao reduzir o tamanho da população efetiva (Ne) para o locus e, desta maneira, a taxa de resposta a seleção natural e a probabilidade de fixação (sua chance de chegar a 100% na população ao longo de várias gerações) do outro locus ligado ao primeiro. Então, quanto maior fosse a ligação entre os loci mais significante seria a redução no tamanho da população efetivo e na resposta à seleção. Esse efeito (IHR) é muito similar a ‘catraca de Muller’, sobre a qual já comentei em resposta do tumblr, que prevê o maior acumulo de mutações desvantajosas em populações sem recombinação, já que ambos IHR e a 'catraca de Muller' apontam para o fato de haver uma vantagem intrínseca na recombinação, ao quebrar o chamado desequilíbrio de ligação negativo entre genes que foi gerado pela seleção natural e deriva, aumentando assim com a taxa de adaptação [5]. Em franco contraste, mutações no DNA prejudiciais rapidamente se acumulam em regiões com pouca ou nenhuma recombinação, tornando a espécie mais suscetível aos seus efeitos. Asim, a longo prazo, a recombinação genética (possibilitada pela reprodução sexual, por exemplo) poderia facilitar a eliminação de mutações desfavoráveis de maneira mais efetiva mesmo em condições menos restritivas que as assumidas por Kondrashov.
Um estudo bem recente conduzido por pesquisadores da Universidade de Edimburgo, na Escócia, liderado por José L. Campos, publicado na revista Genome Biology and Evolution (e que tem como autor sênior o conhecido geneticista evolutivo Brian Charlesworth), obteve evidências que a recombinação (que pode ser proporcionada pela sexo) realmente parece aumentar a eficiência da seleção natural em purgar essas mutações desfavoráveis [6]***. Os cientistas alcançaram estes resultados ao analisarem os efeitos evolutivos de recombinação reduzida no genoma de Drosophila melanogaster concentrando-se em mais de 200 novos genes que não sofrem o crossing-over e empregando uma busca por ortólogos novos entre espécies do subgrupo melanogaster.
Os biólogos evolutivos utilizaram um conjunto de dados formado por cerca de 10.000 genes de D. melanogaster que foram comparados com seus respectivos ortólogos na espécie próxima D. yakuba, com o intuito de examinar os efeitos do 'ambiente recombinacional' nas taxas e padrões de evolução em genes que codificam proteínas e sobre várias medidas de adaptação ao nível molecular.
Os genes investigados estão localizados na heterocromatina (as porções mais condensadas da cromatina que, por sua vez, é a combinação de DNA e proteínas, como a histonas e outras, que formam os cromossomos) de diferentes cromossomos de Drosófila, que não o quarto cromossomo, onde a maioria dos estudos anteriores haviam sido realizados***. As regiões que não sofrem o crossing over do genoma apresentaram um elevado nível de divergência evolutiva em relação a D. yakuba em locais não sinônimos, baixo viés na utilização de códons, menor teor das bases GC (guanina e citosina) em regiões codificadores e não-codificadoras, íntrons mais longos, além de ter sido constatado o aumento do comprimento dos genes, aumento do nível de polimorfismo não-sinônimo em relação ao polimorfismo sinônimo, e uma incidência reduzida de seleção positiva [Veja "Marcas da adaptação: A teoria neutra e as assinaturas moleculares da seleção natural" ].
Como os pesquisadores encontraram níveis de expressão genica similares entre os genes em regiões com e sem crossing-over, consideraram excluída a possibilidade de que a redução do nível de adaptação detectada fosse causada pelo relaxamento da seleção natural em função dos baixos níveis de expressão de genes em regiões de heterocromatina. De acordo, com Campos, Charlesworth e Haddrill, os padrões observados são consistentes com uma redução na eficácia da seleção em todas as regiões do genoma de D. melanogaster que não sofrem crossing-over, como um resultado dos efeitos de interferência reforçada por processos Hill-Robertson, através do qual a evolução em um determinado sítio no genoma é influenciada pela seleção atuando em regiões estreitamente ligadas ao primeiro*. Mas além disso, também foram encontradas diferenças entre os locais não recombinantes. Por exemplo, o cromossomo X parece exibir os efeitos menos intensos, enquanto o quarto cromossomo e os genes heterocromáticos nos cromossomos autossômicos localizados mais próximos aos centrômeros mostraram os maiores efeitos.
Os pesquisadores enfatizam, entretanto, que mesmo havendo fortes evidências para o efeito Hill-Robertson, de diminuição do efeito da seleção natural, ainda assim, algumas assinaturas de seleção natural, tanto mutações não-sinônimas e como no uso de códons, persistem em todas as regiões heterocromáticas. Em nota de divulgação os pesquisadores afirmaram que os resultados por eles apresentados podem também ajudar a informar o desenvolvimento de espécies cultivadas com rendimentos elevados.
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* Como enfatiza Klaus Jaffe, a reprodução assexuada parece, pelo menos em um primeiro exame teórico, fazer mais sentido e por isso ser muito mais provável de ocorrer do que a sexuada por pelo menos três razões: (a) as fêmeas partenogenéticas não precisam encontrar parceiros, (b) elas produzem o dobro de filhas e o quádruplo de netas em comparação com as médias das fêmeas que se reproduzem sexuadamente; e (c) nesses organismos a seleção natural impulsiona a adaptação e, portanto, a seleção de características genéticas relevantes muito mais rapidamente que em organismos assexuados quando comparados aos organismos que se reproduzem sexuadamente. Porém, apesar destas vantagens relativas teóricas da reprodução assexuada, a maioria dos organismos multicelulares complexos (e alguns estudos tem mostrado que talvez isso valha também para a maioria dos eucariontes unicelulares), reproduzem-se através do sexo. O modelo particular defendido por Jaffe e outros pode ser chamado de ‘modelo da seleção de parceiros’ que assume que o sexo permite a seleção de 'bons genes' ao orientar o processo evolutivo para a fixação de traços benéficos, mas que não discutirei aqui hoje.
**Peter D. Keightley e Adam Eyre-Walker afirmam que a reprodução sexual parece ser favorecida em relação a reprodução assexuada, quando o número de mutações deletérias por genoma diplóide por geração (U) excede um evento por geração - ou é maior que 2 eventos caso não se assuma que populações assexuadas recentemente recém iniciadas sejam livres de mutações - e que as populações sejam finitas, mas as estimativas de Keightley e Eyre-Walker para U em vários táxons, especialmente os de curtas gerações, resultam em valores abaixo dos assumidos por Kondrashov.
Keightley PD, Eyre-Walker A. Deleterious mutations and the evolution of sex.Science. 2000 Oct 13;290(5490):331-3. PubMed PMID: 11030650. [Link]
***A imensa maioria dos estudos anteriores haviam sido focados no pequeno ‘cromossomo pontual’ ('dot'), o quarto cromossomo, em que a recombinação é mínima ou mesmo completamente ausente, de onde vinha a maioria dos dados genéticos comparativos, isto é D. melanogaster e suas congêneres, já que os genes de outras regiões com baixa recombinação estão em porções de cromatina bem mais condensada (heterocromatina) que representam um desafio não só para a identificação de genes como monitoramento da transcrição, o que foi resolvido neste estudo ao utilizar-se os novos dados proveniente de 230 genes identificados pelo Drosophila Heterochromatin Genome Project (DHGP), que forneceam o material necessário à análise de novas regiões não-recombinantes que permitiram testar as previsões baseadas na IHR em regiões genômicas fora do cromossomo quatro, especialmente porque muitos destes genes heterocromáticos são conhecidos por terem ortólogos (genes homólogos por descendência direta, ou seja, o mesmo gene em espécies aparentedada diferente) em outras espécies de Drosophila e de outro dípteros. O trabalho também se beneficiou dos novos dados RNAseq sobre expressão gênica em D. melanogaster que permitiram avaliar os efeitos da expressão genica nos padrões da evolução moleculares em regiões não recombinantes.
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Referências:
[1] Mating has long-term benefits: Courtship can take effort, but now scientists know why it might be worth it. University of Edinburgh 2012, April 9.
[2] Kondrashov, A. S. (1988). Deleterious mutations and the evolution of sexual reproduction. Nature, 336, 435-440. [Link]
[3] Hill WG, Robertson A. The effect of linkage on limits to artificial selection. Genet Res. 1966;8:269-294. [Republicado como “Hill WG, Robertson A. The effect of linkage on limits to artificial selection. Genet Res. 2007 Dec;89(5-6):311-36. PubMed PMID: 18976519.” - Link]
[4] McVean GA, Charlesworth B. The effects of Hill-Robertson interference between weakly selected mutations on patterns of molecular evolution and variation.Genetics. 2000 Jun;155(2):929-44. PubMed PMID: 10835411; PubMed Central PMCID:PMC1461092. [Link]
[5] Zeng ZB. The Hill-Robertson effect is a consequence of interplay between linkage, selection and drift: a commentary on 'The effect of linkage on limits to artificial selection' by W. G. Hill and A. Robertson. Genet Res. 2007 Dec;89(5-6):309-10. PubMed PMID: 18976518. [Link]
[6] Campos, J. L., Charlesworth, B., Haddrill, P. R. Molecular Evolution in Nonrecombining Regions of the Drosophila melanogaster Genome. Genome Biology and Evolution, 2012; 4 (3): 278 DOI: 10.1093/gbe/evs010 [Link]
Créditos das Figuras:
FRANCIS LEROY, BIOCOSMOS/SCIENCE PHOTO LIBRARY
TIM VERNON / SCIENCE PHOTO LIBRARY
SCIEPRO/SCIENCE PHOTO LIBRARY
PAUL D STEWART/SCIENCE PHOTO LIBRARY