Bactérias modernas e os primórdios da evolução da divisão celular
Uma das características distintivas das bactérias é a posse de paredes celulares compostas de peptidoglicanos, mas, surpreendentemente, muitas bactérias modernas são capazes de mudar para um estado sem parede, chamado 'forma-L' [1, 2].
A parede celular é uma estrutura em camadas que envolve as células que as protege e mantém em sua forma, encontrando-se presente em todas as principais linhagens conhecidas de bactérias, estando presente também, muito provavelmente, no último ancestral comum de toas as células [1]. O fato desta estrutura ser tão importante inclusive a torna um dos principais alvos dos antibióticos, com algumas bactérias patogênicas sendo capazes de mudar para forma-L como forma de resistência a estes fármacos [3].
Contudo, o ponto realmente interessante sobre as formas-L é sua capacidade de proliferação dispensando completamente o maquinário de divisão celular, normalmente essencial, baseado na proteína FtsZ[imagem obtida aqui] que então passa a ocorrer por meio da formação de bolhas e túbulos de membrana [1].
Agora, um grupo de pesquisadores, Romain Mercier, Yoshikazu Kawai e Jeff Errington, mostrou que certas mutações em Bacillus subtilis que levam ao excesso de síntese de membrana (por meio do aumento da síntese de ácidos graxos) podem induzir a divisão celular típica das formas-L. De maneira complementar, no artigo publicado no dia 28 de fevereiro na altamente respeitada revista Cell, os cientistas conseguiram também mostrar que, ao aumentar artificialmente a área de superfície membranar em relação ao volume total da célula nas variantes selvagens - ou seja, sem as mutações - alterações de forma muito semelhantes as das formas-L também ocorrem, além da própria indução da divisão celular.
"Nosso estudo abre o caminho para a compreensão de como as formas-L bacterianas causam doenças e resistem aos antibióticos", diz o autor senior do estudo Jeff Errington da Universidade de Newcastle. [3]
Assim, segundo os pesquisadores, este simples processos biofísico pode ter sido o responsável pela proliferação celular eficiente durante a evolução das células primordiais, antes que o complexo aparato bioquímico atual evoluísse, tornando o processo mais confiável e preciso. Portanto, as chamadas formas L bacterianas fornecem um modelo de como as células primordiais poderiam proliferar mesmo na ausência do complexo maquinário bioquímico de divisão celular, permitindo investigar com mais clareza o problema da origem das primeiras células.
"A principal surpresa para mim foi como era simples o mecanismo. Ele não requer qualquer tipo de maquinário proteico sofisticado" [3], diz Jeff Errington e complementa:
"Isso o torna plausível como uma explicação de como as células muito primitivas poderiam ter proliferado nos primórdios da evolução"[3]
"Ele também oferece um sistema modelo para futuras experiências destinadas a explorar os mecanismos de replicação possíveis de células primitivas que poderia ter existido antes da explosão de vida bacteriana no planeta cerca de quatro bilhões de anos atrás." finaliza Errington [3]
Veja o video do grupo de Errington abaixo:
Estes resultados são ainda mais interessantes por que, há poucos anos, o grupo do conhecido biólogo molecular Jack Szostak [4], havia constatado que o crescimento de grandes vesículas multilamelares em novas vesículas ocorria por meio da formação de túbulos, o que indicava uma via para o acoplamento do crescimento e da divisão de vesículas, oferecendo uma explicação para como o processo de proliferação teria ocorrido ainda em uma fase protocelular. Como o processo é robusto e simples, os autores sugerem que esta via, ou uma muito semelhante, seria viável em condições pré-bióticas. Apesar do mecanismo exato ainda ser desconhecido, algumas observações microscópicas sugerem que os longos e finos túbulos de membrana estariam sujeitos à "instabilidade de perolação" que seria uma função da minimização da energia das superfícies possibilitada pela transformação espontânea de uma forma cilíndrica para a forma de um fio de contas [4].
Os finos elos da 'corrente', unindo as pequenas regiões esféricas adjacentes, seriam, assim, os pontos fracos que poderiam ser facilmente interrompidos por forças de cisalhamento. A formação destes túbulos é algo similar ao visto no processo de proliferação das formas-L e embora existam outras grandes diferenças estas semelhanças mostram a importância deste processos físicos e químicos bem básicos na evolução dos primeiros sistemas biológicos e que ainda podem ser observados em sistemas celulares modernos apesar de toda evolução de sistemas de controle refinado por meio de redes gênicas que agem por meio de seus produtos proteicos [4].
Com base nas informações de Mercier e colaboradores [1], em artigo/comentário na mesma edição, dois outros cientistas, Eugene Koonin e Armen Y. Mulkidjanian [5], sugeriram um modelo de transição evolutiva dos sistemas primitivos de divisão celular "mecânicos" para os modernos dependentes do complexo maquinário bioquímico. Neste cenário, as primeiras protocélulas possuiram membranas abiogênicas e se dividiriam por meio de algum processo mecânico análogo ao investigado e induzido experimentalmente por Mercier, Yoshikazu; Errington [1], e talvez em linhas similares ao descrito nos experimentos de Zhu e Szostak [4]. De acordo com Koonin e Mulkidjanian [5] nestes sistemas protocelulares primitivos a divisão poderia ser impulsionada por flutuações ambientais, tais como a evaporação periódica em poças de água pouco profundas, com esta forma de divisão mecânica persistindo até o último ancestral celular comum universal (LUCA, de 'Last Celular Universal Ancestor') que de maneira plausível sintetizava membranas primitivas e quimicamente muito simples [5].
Os dois autores sugerem então que os sistemas de membranas modernos e os maquinários proteicos de divisão celular teriam então evoluído, de maneira independente, naos antepassados das duas grandes linhagens de procariontes, as bactérias e as archaea, possivelmente, impulsionadas pela evolução da paredes celulares. Na figura abaixo retirada do artigo de Koonin e Mulkidjanian, as membranas primitivas e quimicamente simples são mostradas com linhas tracejadas, e as membranas mais avançadas do moderno são mostradas por meio de linhas sólidas. As linhas vermelhas dentro das "células" indicam os protogenomas e genomas. Nas protocélulas primitivas estes protogenomas são mostradas como vários segmentos (de moléculas possivelmente de RNA), enquanto que o LUCA e o ancestrais diretos dos archaea e das bactéria são mostrados com seu único cromossomo circular típico das formas modernas de procariontes [5].
Esta convergência entre os estudos in vitro com modelos sintéticos de sistemas protocelulares, como os do grupo de Szostak [4], e os engenhosos experimentos com modelos in vivo moderno, como os apresentado por Mercier, Yoshikazu e Errington [1], são um exemplo de como os estudos sobre a origem da vida e o começo de sua evolução vêm avançando nas últimas décadas mesmo que ainda exista um longo e tortuoso caminho a percorrer para que possamos realmente compreender como este processo deve ter se dado.
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Referências:
Mercier, Romain; Kawai, Yoshikazu; Errington, Jeff Excess Membrane Synthesis Drives a Primitive Mode of Cell Proliferation Cell, 2013; 152 (5): 997 doi: 10.1016/j.cell.2013.01.043
Errington J. L-form bacteria, cell walls and the origins of life. Open Biol.2013 Jan 8;3(1):120143. doi: 10.1098/rsob.120143. PubMed PMID: 23303308. doi: 10.1098/rsob.120143
How did early primordial cells evolve? Eurekaalert
Zhu TF, Szostak JW. Coupled growth and division of model protocell membranes. J Am Chem Soc. 2009 Apr 22;131(15):5705-13. doi: 10.1021/ja900919c. PubMed PMID: 19323552; PubMed Central PMCID: PMC2669828. doi: 10.1021/ja900919c
Koonin EV, Mulkidjanian AY. Evolution of cell division: from shear mechanics to complex molecular machineries. Cell. 2013 Feb 28;152(5):942-4. PubMed PMID: 23452845. doi:10.1016/j.cell.2013.02.008.