Como surgem grandes saltos no desenvolvimento
ScienceDaily (21 de julho de 2009) — Uma questão que tem intrigado os cientistas há muito tempo é o modo como a evolução age ao preencher o hiato entre dois estados fisiológicos discretos. A maioria das mudanças evolutivas, afinal, acontecem em incrementos minúsculos: um elefante fica um pouquinho maior, o pescoço da girafa fica um pouco mais longo. Se essas pequenas mudanças mostram-se vantajosas, há uma chance melhor de serem passadas para a próxima geração, e esta próxima geração pode acrescentar suas próprias novas mutações, e assim por diante, até que se tenha um enorme paquiderme ou o característico pescoço alongado de uma girafa.
Mas quando se trata de mudanças em características como o número de asas num inseto ou de membros num primata, há uma grande diferença. Como esse tipo de salto evolutivo acontece?
De acordo com uma equipe liderada por cientistas do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), em colaboração com Patrick Piggot e colaboradores da Temple University School of Medicine, tais mudanças podem ser ao menos em alguns casos o resultado de flutuações casuais, ou ruído (variações não genéticas), atuando junto a um fenômeno conhecido como penetrância parcial. Suas descobertas foram publicadas recentemente na revista Nature.
"Nosso trabalho mostra como a penetrância parcial pode desempenhar um papel na evolução ao permitir que uma espécie evolua gradualmente de um estado em que produz 100% de uma forma para o desenvolvimento de 100% de outra forma qualitativamente diferente", diz Michael Elowitz, professor assistente de biologia e física aplicada do Caltech e pesquisador do Howard Hughes Medical Institute, que liderou a equipe. "Os estágios intermediários que ocorrem nessa trajetória não são formas intermediárias, mas mudanças na proporção de indivíduos que se desenvolvem de um modo ou de outro."
A penetrância parcial é o nome que os biólogos evolutivos deram ao grau a que uma única mutação genética pode ter diferentes efeitos em diferentes organismos de uma população.
"Se você pegar uma porção de células e cultivá-las exatamente no mesmo ambiente, elas serão como irmãos gêmeos idênticos em relação aos genes que elas têm, mas elas poderão ainda assim mostrar diferenças substanciais em seu comportamento", diz Avigdor Eldar, um pós-doutor em biologia da Caltech e o primeiro autor do artigo científico. Esse tipo de variações - ou ruído do desenvolvimento, como os pesquisadores o chamam - pode permitir que uma mutação tenha um efeito em alguns organismos mas não em outros. Por exemplo, enquanto algumas células que variam geneticamente mostrarão o resultado esperado da mutação, outras podem ainda se comportar como uma célula normal (também chamada de tipo selvagem). E outras células ainda podem apresentar resultados completamente diferentes a partir da mesma mutação.
"Essas células mutantes não apenas mostram uma morfologia diferente", nota Eldar. "Elas mostram mais variabilidade em seu comportamento. Numa população, você pode ver uma mistura de vários comportamentos diferentes, com algumas células fazendo uma coisa e outras fazendo outra coisa."
No artigo da Nature, Elowitz e Eldar, junto com seus colaboradores, estudaram a penetrância parcial numa espécie de bactéria chamada Bacillus subtilis. Eles observaram especificamente os esporos que B. subtilis produz quando os tempos ficam difíceis. Esses esporos são clones menores e dormentes que vieram da chamada "célula-mãe". Eles ficam grudados à célula-mãe, mas são entidades separadas com seu próprio DNA.
Um esporo bacteriano é especialmente adaptado a não fazer nada mais que sobreviver. "Ele não cresce e não faz nada", diz Eldar. "Apenas espera que os tempos favoráveis retornem".
O tipo selvagem da bactéria B. subtilis sempre produz esporos da mesma forma: cria um único esporo, menor que a célula-mãe, mas com uma cópia exata do cromossomo materno.
O que os cientistas observaram foi um "mutante no qual o processo de esporulação foi alterado", explica Eldar. "Geralmente, essas células conversam uma com a outra, com o pequeno esporo contando à célula-mãe maior: 'estou aqui, e estou bem'. Na célula de tipo selvagem, essa conversa é alta; no mutante, é apenas um sussurro, e nem sempre a mãe consegue ouvir".
Quando esse tipo de mutação de "sussurro" ocorre, descobriram os pesquisadores, há quatro resultados possíveis:
A bactéria esporula normalmente, como o tipo selvagem.
A bactéria faz duas cópias de seu cromossomo em vez de uma só, então fica com três cromossomos mas cria apenas um esporo. Neste caso, a célula-mãe retém dois dos cromossomos e dá um deles ao esporo.
A bactéria faz apenas uma cópia de seu cromossomo, mas cria dois esporos em vez de um só. Neste caso, cada esporo terá um cromossomo, e a célula-mãe fica sem nenhum. (Esta é uma mutação letal; nem a mãe nem os esporos sobrevivem.)
A bactéria faz duas cópias de seu cromossomo em vez de uma só, então fica com três cromossomos. Depois cria dois esporos. Neste caso, a mãe e cada um dos esporos gêmeos terão um cromossomo cada.
Essa última possibilidade, nota Eldar, é algo que nunca tinha sido observado antes em B. subtilis. Mas isso não significa que o comportamento de produzir esporos gêmeos não tenha suas vantagens. "Em alguns ambientes, pode ser melhor para a célula", diz ele. "Sabemos disso porque há outras espécies cujos tipos selvagens fazem a mesma coisa que nosso mutante estava fazendo só de vez em quando."
Os cientistas logo perceberam que essa variabilidade era a porta de entrada para entender como a evolução faz o salto de um fenótipo para outro. "Não se vai de 1 para 1,1 em quantidade de esporos", aponta Eldar. "Mas é fácil achar uma mutação que simplesmente mude a frequência do comportamento. Se 10% da população fazem dois esporos e os outros 90% fazem um, isso funciona. Resolve a necessidade de um salto de quantidade discreta entre 1 e 2 esporos."
Uma vez que observaram esse comportamento raro numa pequena minoria das bactérias, os pesquisadores levaram o processo um passo adiante, ajustando outros fatores no sistema de esporulação. Por exemplo, observaram o que aconteceria se, além de atenuar a comunicação entre mãe e esporo — fazendo a célula-mãe pensar que não tinha produzido o esporo ainda — também fosse aumentado o volume de sinais que induzem a mãe a replicar seu cromossomo.
Talvez sem surpresa, eles descobriram que esse tipo de mudanças aumentam a porcentagem de células individuais de B. subtilis que decidem produzir dois esporos em vez de um. Na verdade, ao combinar mutações, diz Eldar, eles conseguiram crescer a porcentagem de bactérias que criam esporos gêmeos de 1% (em bactérias com só uma mutação) para até 40% (em bactérias com múltiplas mutações).
"Quando se tem apenas uma mutação, há pouca penetrância da produção de esporos gêmeos", diz Eldar. "Mas quando se adiciona mais e mais mutações, pode-se fortalecer a penetrância para níveis muito altos."
"Nós mostramos que algumas mutações causam em baixa frequência o desenvolvimento de esporos gêmeos em uma célula , em vez de um único esporo por célula, como ocorre normalmente", diz Elowitz. "A frequência relativa dessa característica pode ser ajustada para altos níveis através de outras mutações."
Este estudo fornece um exemplo concreto de um panorama particular para explicar a evolução do desenvolvimento. "Ele ilustra um modo pouco familiar pelo qual a evolução do desenvolvimento pode trabalhar", acrescenta Elowitz. "Mudanças qualitativas de uma forma para a outra podem se dar através de mudanças nas frequências relativas — ou penetrância — dessas formas."
"É interessante que o ruído — que consiste em flutuações aleatórias de proteínas na célula — é crítico para que isso aconteça", continua. "O ruído não é apenas um estorvo nesse sistema; ele é uma parte importante do processo que permite que células geneticamente idênticas façam coisas muito diferentes."
Além disso, nota Elowitz, o trabalho mostra que "o desenvolvimento das bactérias pode ser um bom sistema para permitir um estudo mais profundo dessas questões gerais sobre a evolução do desenvolvimento."
Outros pesquisadores envolvidos no trabalho são Michelle Fontes do Caltech, o estudante de pós-graduação Oliver Loson da Temple University School of Medicine e Jonathan Dworkin da Faculdade de Médicos e Cirurgiões da Columbia University.
O trabalho foi financiado pelas instituições Howard Hughes Medical Institute, National Institutes of Health, National Science Foundation, International Human Frontier Science Organization, e European Molecular Biology Organization.
Referência científica:
Eldar et al. Partial penetrance facilitates developmental evolution in bacteria. Nature, 2009; DOI:10.1038/nature08150
Adaptado de materiais fornecidos pelo California Institute of Technology.
Imagem: EYE OF SCIENCE / SCIENCE PHOTO LIBRARY