Complexidade por subtração da complexidade
Embora os questionamentos dos criacionistas tradicionais, ou mesmo do Design Inteligente, não ditem a pauta da biologia evolutiva e, portanto, não forneçam uma agenda dos biólogos evolutivos*, certas questões sobre a evolução de estruturas biológicas complexas são amplamente discutidas entre os cientistas. A ideia seria que algumas estruturas biológicas - e mais modernamente, na perspetiva inaugurada por Behe, sistemas biomoleculares - seriam complexas demais para terem surgido por simples etapas de adição de uma parte após a outra, com cada uma delas conferindo vantagens adaptativas aos seus portadores para as mesmas funções que a estrutura desempenha atualmente. Daí, os criacionistas do Design Inteligente, concluem que estas estruturas e sistemas não poderiam ter evoluído, pelo menos, não sem a assistência de algum Designer/Criador que teria intervido diretamente no processo. Pense, por exemplo, no olho humano, ou na cascata bioquímica de coagulação do sangue ou o flagelo bacteriano, dois dos exemplos preferidos por Behe e vários outros criacionistas. De acordo com estes criacionistas, como a estrutura, ou o sistema, como um todo precisa de todas as suas partes para que desempenhe sua função e essa função é crucial para a sobrevivência do organismo, como ela poderia ter evoluído naturalmente, uma vez que tirar qualquer peça dela, acarretaria no colapso da função:
“Em outras palavras, quão bom é ter dois terços de um olho, ou metade de um flagelo?” [1]
Porém, aquilo que criacionistas como Michael Behe batizaram de 'complexidade irredutível' - que para eles seriam evidências contra a evolução biológica por mecanismos naturais - na realidade, não são obstáculos para a perspectiva corrente da biologia evolutiva. Primeiro por que que muitas das estruturas tidas como apresentando a 'complexidade irredutível' são, na realidade, perfeitamente capazes de funcionar sem certas partes consideradas essenciais, existindo não só mecanismos incrementais propostos, como evidências para eles. Por exemplo, estruturas como os olhos complexos do tipo câmera, evoluíram de precursores bem mais simples, na realidade, tão simples como uma 'mancha' de células sensíveis à luz na superfície da pele de um organismo ancestral que mesmo não sendo capazes de formar imagens ou mesmo conferir uma distinção de profundidade, poderiam servir para detectar variações de luz que poderiam sinalizar a proximidade de predadores como desempenhar funções de sincronização dos ritmos de dia e noite [veja por exemplo, “A Fascinante evolução do olho”, por Trevor D. Lamb e esta resposta do nosso tumblr]. O mais importante é que este primitivo sistema de detecção de luz e sombras seria melhor que nenhum sistema de detecção.
Imagem e: HENNING Dalhoff /Science Photo Library
Visão artística ilustrando a evolução do olho. Acredita-se que os olhos originaram-se como uma mancha de células sensíveis à luz (esquerda) na superfície do organismo. Quando uma mutação em alguns organismos levou as células a ser posicionarem em uma pequena depressão, tornou-se possível detectar a orientação da fonte de luz. À medida que a depressão se tornou mais profunda e mais estreita a abertura (ao centro), tornou-se esta informação mais precisa e foi possível distinguir formas. Em seguida uma camada protetora formada sobre a abertura, permitiu que as células dentro do olho começasse a se especializar. Alguns organismos passaram a formar lentes na frente dos olhos (direita), o que permitiu o olho focalizar. [Texto: Science Photo Library]
Segundo, mesmo as estruturas e sistemas que podem ser considerados 'irredutivelmente complexos', de acordo com a definição original de Behe, podem evoluir por meio de mecanismos e processos evolutivos bem conhecidos, geralmente, envolvendo rotas ou vias evolutivas indiretas [5], muitas das quais dependentes de mudanças da relação entre as partes da estrutura com o tempo, e de mudanças mais substanciais do papel funcional das estruturas, como ocorre em processos de cooptação evolutiva, e por perda de redundância [Veja o artigo “Incoerência Irredutível”]. Do ponto de vista molecular e da aptidão, muitos dos passos evolutivos nem precisam ser adaptativos, no sentido de serem favorecidos pela seleção natural, podendo serem neutros como mostram vários estudos modernos sobre evolução molecular em que as sequências de moléculas ancestrais são reconstruídas por procedimentos filogenéticos e seus produtos proteicos são sintetizados por técnicas de biologia molecular e testados em relação a suas propriedades funcionais e estruturais, por ensaios bioquímicos, farmacológicos, biofísicos e químicos, como são o caso do estudos de Shozo Yokoyama [2] e John Thorton [3, 4].
Recentemente, dois pesquisadores propuseram mais uma rota alternativa e indireta para a evolução da 'complexidade irredutível' de algumas estruturas morfológicas que se assemelha ao modelo de perda de redundância funcional [6], que os seus proponentes chamam de 'Complexidade por subtração' [7]. Ao invés de partirem de precursores simples que ao longo da evolução da linhagem tornariam-se, cada vez mais complexos, os autores de um novo artigo da revista Evolutionary Biology, Dan McShea e Wim Hordijk, propõem que algumas estruturas complexas poderiam ter evoluído a partir de inícios ainda mais complexos que teriam gradualmente tornado-se mais simples - "Complexidade por subtração" Este modelo é tanto apoiado por modelos computacionais como por tendências na evolução craniana em vertebrados reveladas pelo exame do registro fóssil [1, 7].
Como explicam, Mcshea e Hordijk, a perspetiva padrão afirma que a evolução sistemas complexos funcionais ocorre por adição de novos componentes, e que esta acumulação de complexidade é impulsionado por seleção natural, ou seja, por vantagens no de certas funções derivadas da organização e estruturação complexa destes sistemas que conferem maior sucesso reprodutivo aos seus possuidores. Esta pode ser realmente a explicação para boa parte da evolução deste tipo de característica, mas, segundo os autores, alternativas não têm sido muito discutidas ou mesmo investigadas [7].
O ponto central de Mcshea e Hordijk e que, especialmente Mcshea têm defendido (mais recentemente em colaboração com o filósofo Robert Brandon) é que a complexidade estrutural, não necessariamente funcional, começaria muitas vezes alta, por causa de um tendência espontânea para que as partes diferenciarem-se uma das outras** [Veja por exemplo o livro “Biology's First Law” [8]]. A partir daí, impulsionado pela seleção para o aumentos da eficácia e eficiência, a complexidade estrutural poderia diminuir com o tempo, favorecendo organizações e estruturas mais enxutas e simples, mas que, ainda assim, reteriam uma considerável complexidade residual, 'suficiente para nos impressionar', como afirmam os autores do artigo [7]
"Ao invés de construir-se pouco a pouco do simples ao complexo, você começa complexo e depois peneira as partes desnecessárias, refinando-as e tornando-as mais eficientes conforme você vai indo", disse McShea [1].
O modelo de coautor Wim Hordijk apoia a ideia. No modelo, estruturas complexas são representados por uma matriz de células, alguns brancos e alguns negros, como os quadrados de um tabuleiro de damas. Nesta classe de modelos conhecidos como autômatos celulares, as células podem mudar entre o preto e branco de acordo com um conjunto de regras.
Os pesquisadores empregaram um programa de computador (desenvolvido por Wim Hordijk) que simula os processos de herança, mutação, recombinação e reprodução, em que os 'organismos' digitais executam uma determinada tarefa, que, quanto melhor executada, aumenta suas chances de passarem para a próxima geração. Nele as estruturas complexas são representados por uma matriz de células, algumas brancas e outras negras, como os quadrados de um tabuleiro de damas. Esta classe de modelo é conhecidos como 'autômatos celulares', e, neles, as células podem mudar entre os dois estados (isto é, entre preto e branco) de acordo com um conjunto de regras.
Assim, como parte do processo de evolução destes autômatos, ao longo do tempo, uma nova geração de regras acaba por substituir as mais antigas, mudando a maneira com que a tarefa é executada. De acordo, como Hordijk, no início, os padrões de células em preto e branco que surgiram foram bastante complexos. Mas depois de várias gerações, algumas regras 'evoluiu' para gerar padrões de celulares simples preto e branco, e tornou-se mais eficiente na execução da tarefa [1]
Os dois pesquisadores chamam nossa atenção para o fato de podermos identificar tendências semelhantes na natureza. Os resultados de estudos paleontológicos prévios mostram que os crânios de vertebrados começaram complexos, mas acabaram por tornar-se mais simples e 'fluidos':
"Por exemplo, os crânios de peixes fósseis consistem de um grande número de ossos de forma diferente em forma, que cobrem o crânio como um quebra-cabeça", disse McShea. [1]
"Nós vemos uma redução no número de tipos de osso do crânio nas transições evolutivas dos peixes para anfíbios para répteis para mamífero. Em alguns casos os ossos cranianos foram perdidos, em outros casos, os ossos adjacentes foram fundidos. Crânios humanos, por exemplo, têm menos ossos do que os crânios de peixes.” [1 ]

Na figura acima de [Gregory (1935) via Mcshea e Hordjik (2013)] podemos ver um Eusthenopteron, um peixe de nadadeiras lobadas do Devoniano; um Ichthostegopsis (agora Ichthyostega) e Seymouria, ambos anfíbios (labirintodontes) do Permiano; os 'répteis' do Permiano Bradysaurus, Spenacodon e Cynosuchoides (agora chamado de Cynosaurus); e Notharctus um primata do Eoceno.
Complexidade por subtração: Da esquerda para a direita, algum processo - talvez ZFEL - produz tipos de partes em excesso. Estruturas funcionais presentes entre um subconjunto das partes. A seleção purga o excesso [7].

A figura abaixo [7] representa os dois pontos de vista de como a complexidade muda ao longo do tempo na evolução: (A) a perspectiva padrão (à esquerda) em que a complexidade aumenta de maneira monotônica em direção ao pico adaptativo; B: A complexidade por subtração (à direita) em que a complexidade aumenta rapidamente até adaptativo em excesso, seguido da diminuição da mesma em em direção a um nível ótimo.

As ideia é que simulações e modelos computacionais, como as de Hordijk, permitam, cada vez mais, aos cientistas, testarem ideias deste tipo, ou seja, sobre como a complexidade pode evoluir, principalmente, quanto tempo demora e quão frequentes seriam rotas alternativas que envolvem "complexidade por subtração" [1]
De acordo com Mcshea, "O que precisamos fazer agora é pegar uma amostra arbitrária de estruturas complexas e traçar sua evolução e ver se você pode dizer por qual elas passaram, [do simples ao complexo ou o contrário]. Isso vai nos dizer se isso é comum ou não." [1]
O trabalho de Mcshea e Hordijk chama nossa atenção para perspectivas diferentes de se encarar a evolução que agregam ao repertório da moderna biologia evolutiva e que podem tanto servir de alternativas como de complementos para os mecanismos e processos mais convencionais, ampliando nosso conhecimento sobre como os seres vivos evoluem.
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*Por exemplo, mesmo do ponto de vista genético o geneticista H.J. Muller já havia discutido soluções para esta questão muitos antes de Behe sonhar em propor a expressão 'complexidade irredutível' veja a explicação de Douglas Theobald [6].
Muller, H. J. (1918) "Genetic variability, twin hybrids and constant hybrids, in a case of balanced lethal factors." Genetics 3:422-499, 1918. [link]
Muller, H. J. (1939) "Reversibility in evolution considered from the standpoint of genetics." Biological Reviews of the Cambridge Philosophical Society 14:261-280, 1939.
**Mcshea e Robert Brandon argumentam que complexidade ao longo do processo evolução é, em parte, resultado do que eles chamamo de uma lei evolutiva de força-zero (ZFEL, do inglês “Zero-Force Evolutionary Law”). Resumindo bastante, esta lei implicaria que, na ausência de seleção natural e restrições, a complexidade - no sentido de diferenciação entre as partes - tenderá a aumentar. Eles também argumentam que mesmo quando as forças e limitações estão presentes, ainda assim, há uma tendência para aumento da complexidade. Isso aconteceria por que , na ausência de seleção ou de restrições, as partes de um organismo tende a acumular espontaneamente variação, e, portanto, tornam-se mais diferentes umas das outras. Segundo, os autores, esta lei aplica-se aos mais diferentes níveis de organização biológicas, dos organismos, a diferenças entre os indivíduos de populações, às diferenças entre as espécies e entre táxons superiores [Veja a página de Mcshea e a referência 8]
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Referências:
Study proposes alternative way to explain life's complexity Public release date: 12-Apr-2013 National Evolutionary Synthesis Center (NESCent) via EurekAlert!
Yokoyama S. Synthesis of Experimental Molecular Biology and Evolutionary Biology: An Example from the World of Vision. Bioscience. 2012 Nov;62(1):939-948. PubMed PMID: 23483186; PubMed Central PMCID: PMC3593118.
Harms MJ, Thornton JW (2010). Analyzing protein structure and function using ancestral gene reconstruction. Current Opinion in Structural Biology 20:360-366.
Dean AM, Thornton JW. Mechanistic approaches to the study of evolution: the functional synthesis. Nature Reviews Genetics 8:675-688, 2007.
Thornhill RH, Ussery DW. A classification of possible routes of Darwinian evolution. J Theor Biol. 2000 Mar 21;203(2):111-6. PubMed PMID: 10704296.
Theobald, Douglas 'The Mullerian Two-Step: Add a part, make it necessary or, Why Behe's "Irreducible Complexity" is silly' Version 1.1 Last Update: July 18, 2007.
McShea, Daniel W., Hordijk, Wim Complexity by Subtraction. Evolutionary Biology, 2013; DOI: 10.1007/s11692-013-9227-6
McShea, Daniel W. and Brandon, Robert Biology's First Law (2010), University of Chicago Press.
Créidtos das Figuras: