Complexo ou simples: Às vezes tanto faz?
Enzimas são proteínas de extrema importância para os seres vivos. São os agentes catalíticos biológicos por excelência, acelerando reações, possibilitando outras que normalmente não se dariam em condições normais por causa de barreiras energéticas, temporais ou de estabilidade intermediários etc. Compreender como estas biomoléculas evoluem, portanto, adquire uma óbvia importância e existem muitos grupos trabalhando em tópicos relacionados a esta questão, sendo, possivelmente, um dos mais interessantes o que envolve como complexos multiproteicos e multimacromoleculares (como as Riboproteínas que, além de cadeias polipeptídicas, são formadas por sequências catalíticas de RNAs) evoluíram e especialmente por que isso ocorreu, destrinchando essa questão em termos de vantagens adaptativas, como a eficiência ou resistência a erros e das eventuais restrições que afetam o processo de evolução.
Estudando uma dessas moléculas, a ubíqua enzima ‘Ribonuclease P ou RNAse P’ que desempenha um papel essencial na síntese dos RNAs transportadores, os tRNA - pequenas moléculas de RNA que ligam-se a aminoácidos específicos e os transferem aos ribossomos durante a leitura da fita de RNA mensageiro (mRNA) que ocorre durante a em sua tradução em uma cadeia polipeptídica -, um grupo de cientistas da Universidade Médica de Viena e de outras instituições de pesquisa, liderados por Walter Rossmanith, deparou-se com uma situação inusitada.
As Ribonucleases P, tanto nucleares como mitocôndrias, são endonucleases que removem extensões 5' de precursores de tRNA, cujas variantes mais disseminadas entre os diversos grupos de organismos, são compostas por um RNA catalítico e um número variável de proteínas de tamanhos e massas diferentes, sendo que as formas com maior complexidade são as dos nos núcleos e mitocôndrias dos eucariontes, tipicamente compostas por, pelo menos, dez subunidades protéicas, além do RNA.
Contudo, em protistas unicelulares parasitas da família dos Tripanossomatídeos - como Trypanosoma brucei, o agente causador da doença do sono - a variante que estes organismos carregam é composta de uma única cadeia polipeptídica, sem nenhum RNA. O mais curioso e surpreendente, entretanto, é que o complexo enzimático riboproteico mais convencional parece ser completamente intercambiável com a forma, muito mais simples, encontrada em T. brucei.
Os cientistas descobriram isso ao substituírem, sem maiores problemas, o complexo enzimático Riboproteico (RPR1) de uma levedura comum (Saccharomyces cerevisiae) pela variante muito mais simples do parasita T. brucei (PRORP1). Isso mostra que as estruturas complexas das ribonucleoproteínas e a catálise por RNA não são necessárias para o processamento das extremidades 5' dos tRNA em eucariontes.
Os resultados foram relatados esta semana no periódico Cell Reports e, em uma declaração para o portal de divulgação de sua universidade, parecem ter sido interpretados por Rossmanith como contradizendo a suposta tendência de economia em processos evolutivos:
"Queremos agora continuar comparando as duas formas da enzima, a fim de entender qual é a possível vantagem evolutiva do complexo enzimático. Afinal, isso realmente contradiz a tendência para a economia em processos evolutivos " [Veja aqui]
Embora, os processos evolutivos - especialmente a seleção natural em contextos em que haja ampla variação genética e pressões ecológico-funcionais estáveis - possam levar a [quase]otimização evolutiva de certas propriedades dos organismos, inclusive levado a soluções altamente econômicas, parecem ser muito mais comuns as situações em que existem trade offs complicados, além da influência de fatores estocásticos e historicamente contingentes, como a oferta de mutações e oscilações nos níveis de nascimentos e mortes, que podem afastar, às vezes em muito, desses ideias quase-ótimos. Segundo o próprio artigo, até o momento, os tripanosomatídeos são o único grupo, identificado entre os eucariontes, que perdeu praticamente todos os genes associados ou relacionado com a forma baseada em RNA da RNase P, empregando esta variante composta apenas de uma única proteína para processar os seus tRNAs. Então, o mais interessante talvez seja concentrar os esforços de investigação nos tipos de condições que poderiam ter levado a Ribonucelase P dos Tripanossomatídeos simplificar-se tanto, possivelmente rompendo as restrições evolutivas e bioquímicas que devem evitar que as Ribonucleases P do resto dos organismos percam sua complexidade.
Os tripanossomatídeos são um grupo intrigante e com características muito estranhas; mas se, por um lado, são cheios de peculiaridades no que concerne a organzação de seus genes codificadores de proteínas - por exemplo, com transcrição policistrónica generalizada, que é característica de procariontes e não dos eucariontes, além do Trans-splicing -, por outro lado, o resto de sua organização genético-bioquímica relacionada ao tRNA - como a transcrição, processamento e modificação, além da estrutura e função dos tRNAs - mostras-se bastante convencional em relação aos demais eucariontes.
Estes organismos possuem em seu genoma genes que codificam um homólogo da RNase Z e uma enzima adicionadora, sendo somente o processamento da sua extremidade 5' tRNA que é desempenhada por um maquinário bioquímico incomum.
Como enfatizam os autores do estudo, podem haver vantagens específicas em reduzir o número de subunidades da enzima de 10, originalmente, para apenas uma, como a amortização dos custos relacionados a coordenação da expressão e de montagem das várias proteínas de todo o complexo. Além disso, uma enzima composta por uma única cadeia polipeptídica pode ser fisicamente mais robusta que um conjunto de 10 subunidades não covalentemente ligadas, especialmente em condições de estresse celular, o que pode fazer que a perda dessa complexidade extra signifique até uma maior adaptabilidade evolutiva em função de menores restrições. Portanto, certos tipos de pressões seletivas podem ter empurrado este grupo de eucariontes nesta direção peculiar. Mas existe um outro lado, como chamam a atenção os autores do estudo. Por exemplo. o maior número de componentes pode expandir a flexibilidade da enzima, incrementando as opções de regulação e permitir a integração mais complexa com outros processos celulares e isso pode criar certos inconvenientes à perda das diversas subunidades.
Estas questões tem de fato implicações mais profundas e podem refletir fases ainda mais remotas e iniciais da evolução bioquímica e protocelular, como as que envolveram a mudança do 'mundo do RNA', onde as funções de hereditariedade e catalise eram desempenhadas apenas por moléculas de RNA e passagem gradativa para a divisão de trabalho que caracteriza as células modernas, entre DNA, proteínas e RNAs, na qual as funções ancestrais catalíticas deste último tipo de ácido nucléico foram mantidas em alguns complexos e perdidas em vários outros. Então, talvez o que ocorreu na Riboproteína P seja um exemplo de uma tendência mais ampla e antiga.
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Referências:
Taschner, Andreas, Weber, Christoph, Buzet, Aurélie, Hartmann, Roland K., Hartig, Andreas . Rossmanith, Walter Nuclear RNase P of Trypanosoma brucei: A Single Protein in Place of the Multicomponent RNA-Protein Complex. Cell Reports, 2012; DOI: 10.1016/j.celrep.2012.05.021
Créditos das Figuras:
Estrutura da w:RNase P gerada usando PyMol a partir do:PDB ID: 2A64 [Kazantsev, A.V., Krivenko, A.A., Harrington, D.J., Holbrook, S.R., Adams, P.D., Pace, N.R. Crystal structure of a bacterial ribonuclease P RNA. PNAS v102 pp.13392-13397, 2005 DOI: 10.1073/pnas.0506662102]
Processamento do tRNA – Fonte : Nobel Prize