Comportamento, acaso, genética e desenho experimental.
Embora haja um consenso de que ambos os fatores genéticos e ambientais sejam essenciais na construção dos fenótipos dos seres vivos e isso inclua a dimensão comportamental, neste último caso ainda existe uma certa polarização de opiniões entre os especialistas ao colocar mais ou menos ênfase em cada um destes fatores, ou seja, naqueles associados a componentes genéticos (em geral, ligados a variação genética entre indivíduos dentro da mesma espécie) e ambientais, principalmente o aprendizado social e/ou por tentativa e erro; ainda que ambos interajam de maneira bem complicada, o que muitas vezes inviabiliza uma separação na prática de ambos componentes [Veja mais sobre isso nesta resposta de nosso tumblr].
[Ao lado Andorinhas de penhasco que reproduzem em colônias de tamanho variável. Foto: Ken Thomas]
Exatamente por causa desta complexa interação entre fatores ambientais/culturais e genéticos, faz-se necessário, além de muito cuidado ao apresentar as conclusões, projetar experimentos que consigam destrinchar as diferentes contribuições de cada um dos componentes, controlando para variáveis confundidoras e outros potenciais artefatos, de modo que conclusões mais firmes sobre a importância relativa dos fatores estudados possam ser obtidas. Porém, existe uma série de armadilhas e problemas que podem acometer mesmo os estudos experimentais mais bem delineados que visam resolver estas questões.
Um exemplo recente das armadilhas sutis que podem estar a espreita dos pesquisadores é dado por um experimento publicado em 2000 que tornou-se um clássico na literatura cientifica moderna da evolução do comportamento animal. Este estudo parecia ter fornecido evidências contundentes de que uma escolha comportamental em particular (se indivíduos de uma espécie de andorinha escolheriam pequenas ou grandes colônias) seria, em grande parte, determinada geneticamente.
Porém, antes de compreendermos a importância do estudo e de sua potencial conclusão, precisamos de um pouco mais de contexto. Viver em grandes aglomerações, como cidades, por exemplo, exibem algumas vantagens. Por exemplo, muitas pessoas preferem viver em cidades por causa da maior disponibilidade imediata de infra-estrutura, muita companhia etc [1]. No entanto, muitas outras pessoas, quando lhes é possível, evitam viver nas cidades, fazendo isso em função dos benefícios da vida no campo, tais como o ar mais limpo, mais espaço, menor violência etc. Algo semelhante ocorre com muitas espécies de animais, especialmente de aves, que enfrentam o mesmo dilema, ou seja, entre viver em grandes grupos ou permanecer em grupos menores, evitando assim as desvantagens de colônias maiores, como o aumento do risco de doenças e da agressividade dos vizinhos. Uma questão importante portanto é o que faz com que diferentes indivíduos de uma mesma espécie façam as escolhas que fazem? Existiria um componente genético possivelmente adaptativo por trás destas escolhas ou elas seriam guiadas por fatores comportamentais aprendidos ou será que as escolhas seriam completamente aleatórias? Para responder esta questão Charles e Mary Brown planejaram um impressionante e trabalhoso experimento que, como mencionado, pareceu ter dado uma resposta clara e precisa para estas perguntas[1].
Os Browns trabalham com andorinhas-de-penhasco (Petrochelidon pyrrhonota), uma espécie de andorinha americana que produz colônias que variam em tamanho. A ideia por trás da hipótese que eles testaram é que alguns indivíduos parecem ser mais resistentes a parasitas de ninho e estes poderiam se reproduzir em maior proporção em colônias maiores infestadas de parasitas, nas quais poderiam alcançar eficiência de forrageamento mais elevada, ao seguirem seus muitos vizinhos coabitantes aos enxames de insetos dos quais se alimentam, sem ter que arcar com os custos a sua saúde. Caso esta maior resistência fosse herdável, os indivíduos mesmo nascidos em colônias de tamanhos diferentes procurariam as colônias com tamanhos apropriados a seu grau de tolerância imunológica, isto é, com os animais mais resistentes escolhendo as colônias maiores e os menos as colônias menores. Isto é, seria esperado que os tamanhos de colônias fossem também herdáveis.
A herdabilidade é definida como a proporção da variação fenotípica que é transmitida geneticamente a prole, mas medir ou melhor estimar a herdabilidade de populações naturais in locus é uma tarefa desafiadora, especialmente por que as restrições sobre os indivíduos que os levam a fazer as melhores escolhas criam variabilidade consideravelmente maior do que aquela observada em outras características, como, por exemplo, as morfológicas [2]. Como Brown e Brown haviam relatado estimativas da herdabilidade excepcionalmente elevadas para as preferências individuais para colônias de tamanhos específicos, estes pesquisadores propuseram que a variação no tamanho das colônias seria mantida por uma predisposição genética das aves em fase de procriação a escolherem colônias de tamanhos semelhantes àqueles que foram escolhidos pelos seus pais. Esta ideia foi apoiada pelas regressões entre pais e prole altamente significativas em relação aos ('ranks') tamanhos das colônias, o que sugere que a escolha tamanho da colônia é hereditária [1, 2]. Para excluir a possibilidade de que estes resultados pudessem ser explicados por fatores não-genéticos, como imprinting social inicial, Brown e Brown realizaram um experimento de 'adoção cruzada' parcial em que metade dos filhotes de ninhadas de pequenas colônias foram transferidas para grandes colônias, e vice-versa [2]. Os cientistas efetuaram transferências (adoções) cruzadas com 2.000 filhotes, posteriormente recapturando mais de 700 dos pássaros quando eles voltaram para reproduzirem-se nos anos seguintes [1].
A ideia é que os animais adultos seriam capazes de escolher as colônias 'corretas', ou seja, aquelas dos quais seus ovos haviam sido retirados e as quais em tese estariam mais adaptados. Os autores descobriram que as duas populações apresentaram regressões positivas significativas para as colônias natais e regressões negativas para as colônias em que os indivíduos foram criados [2]. Isto quer dizer os dados mostravam que as andorinhas cujos ovos haviam sido postos nas colônias maiores (mas que havia chocado e sido criadas em outras menores) escolhiam reproduzirem-se em grandes colônias, enquanto que o inverso era verdade para andorinhas nascidas e criadas em pequenas colônias. Em outras palavras, a escolha das aves parecia não depender de onde elas haviam sido criadas e sim de onde haviam se originado e presumivelmente, determinada em boa parte por fatores genéticos que eram diferentes em cada um dos dois tipos de indivíduos [1].
Mas será mesmo? Embora, a um primeiro exame, a conclusão pareça apropriada, existem vários problemas e dificuldades, um dos quais é 'Como um componente genético de escolha do tamanho do grupo teria sido selecionado e mantido ao longo da evolução? [1]'
Apesar das explicações por seleção natural terem um papel fundamental na moderna biologia evolutiva e nos ajudarem a explicar o aparente 'design' da natureza (o, por vezes, muito fino ajuste entre os organismos e seu meio-ambiente) de maneira científica, este tipo de explicação envolve custos altos às populações, já que para que certos tipos de indivíduos aumentem em proporção outros precisam perecer, o que pode reduzir por demais as populações, além do fato de existirem pressões seletivas múltiplas e por vezes conflitantes que podem piorar a situação. Portanto, tais explicações devem ser aceitas quando existirem várias linhas de evidência que as sustentem e, de preferência, após testes explícitos de explicações evolutivas alternativas como as baseadas no acaso, restrições e na simples história evolutiva precedente. Porém, mesmo assim a ideia de que os indivíduos são capazes de escolher o mesmo tipo de colônias de que seus pais parece realmente sugerir um forte componente genético por trás desta escolha. Mas será? A questão é que alta plasticidade dos comportamentos – por exemplo quando comparados a das características morfológica - torna improvável uma alta herdabilidade das características comportamentais. Além disso, a chamada 'seleção de habitat' é fortemente influenciada pela distribuição espacial dos locais de reprodução disponíveis, com estudos anteriores tendo enfatizado que as estimativas de herdabilidade de características comportamentais que envolvem a movimentação dos animais através das distâncias podem ser grandemente inflacionadas quando não são é considerado que diferentes indivíduos têm diferentes conjuntos de possível movimentos [2]. Tendo em vista estas questões pesquisadores da França e Áustria reexaminam os dados publicados pelos Brown e mostraram que os resultados poderiam ser explicados simplesmente pela escolha aleatória dos tamanhos das colônias. Os resultados forma publicados na revista Scientific Reports [2].
“O delineamento do experimento original - que representa um modelo para uma vasta gama de estudos de herdabilidade do comportamento - contém duas armadilhas que se combinam para minar as conclusões.” [1]
Étienne Danchin, da Universidade de Toulouse, e Richard Wagner, da Universidade de Medicina Veterinária e do Instituto Konrad Lorenz de Etologia, em Vetmeduni, Viena, questionaram se os resultados não poderiam ter sido influenciados demais pelo delineamento experimental, sendo portanto mais um artefato do que uma conclusão que refletia realmente o que estaria ocorrendo. Juntamente com Éric Wajnberg, especialista em modelagem no INRA, em Sophia Antipolis, eles simularam os dados do artigo original e descobriram que os resultados poderiam ser gerados pelo acaso [1, 2], tendo em vista as limitações do delineamento usado. .
O problema decorre em grande parte da falácia conhecida como "regressão à média" (“Regression To the Mean” -RTM), que foi identificada pela primeira vez por Sir Francis Galton, primo de Charles Darwin, no século XIX, e um dos fundadores da análise estatística moderna. A "regressão à média" resulta do fato de que as medições com valores extremos (muito grandes ou muito pequenos) tendem a serem seguidas por medidas mais normais simplesmente porque os valores normais são, por definição, muito mais comuns do que os mais extremos. Este fato é importante por que o tipo de metologia para a estimativa da herdabilidade usada pelos Brown, a regressão das variáveis entre pais e filhos, são especialmente suscetíveis a "regressão à média"[2].
No experimento realizado pelos Brown, quando os indivíduos eram transferidos de pequenas para grandes colônias eles, em média, eram recrutados para colônias que são estatisticamente menores do que sua colônia adotiva, porque estas estão mais perto do tamanho médio de colônias, e vice-versa. Mas este não foi o único problema do delineamento do estudo original. Danchin e Wagner, de fato, encontraram um segundo problema, a chamada "falácia espacial" que foi descrita pela primeira vez por Arie van Noorwijk, em 1984 [1]. Este problema acontece quando o conjunto de locais potenciais de dispersão difere entre os indivíduos de acordo com local em que eles nasceram. Em conjunto, as duas falácias podem explicar os resultados do experimento, mesmo na ausência de um componente hereditário na escolha do tamanho da colônia por parte dos indivíduos [1, 2].
Um questão de design:
O artigo de Danchin, Wajnber e Wagner [2] é importante por dois motivos principais. Em primeiro lugar, ao colocarem as conclusões originais alcançadas pelos autores do estudo em questão, isso deve incentivar os cientistas a repensarem o papel dos fatores genéticos em certas decisões comportamentais. Em segundo lugar, o artigo seve como um alerta claro para todos aqueles que trabalham em ciência do comportamento em relação a necessidade mais cuidado no planejamento de estudos[1].
Como Wagner diz: "O maior choque é que muito do design experimental que é amplamente utilizado para controlar todos os efeitos estranhos na verdade, cria a falácia RTM. Mesmo os estudos mais cuidadosamente desenhados podem sofrer com o problema, tornando os seus resultados inválidos." [1]
O artigo dos cientistas europeus, porém, não oferece só criticas ao delineamento experimental adotado pelo estudo de Brown e Brown e outros (o que já seria muito importante devido a necessidade das ciências de escrutínio crítico constante), mas nele os cientistas também propuseram uma maneira de evitar as duas armadilhas, por meio da restrição das comparações aos indivíduos com o mesmo conjunto de opções (no caso presente, transferindo toda a descendência para uma única colônia), o que pode dar origem a dados que são imunes às duas falácias, permitindo conclusões mais robustas e confiáveis [1].
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Referência:
The importance of (experimental) design Press Release University of Veterinary Medicine, Viena, February 25th, 2014.
Danchin, Étienne, Wajnberg, Éric and Wagner, Richard H. Avoiding pitfalls in estimating heritability with the common options approach. Scientific Reports, 2014 DOI: 10.1038/srep03974