Conceitos problemáticos e evolução Parte I: Propósito e "Design"

Nossa linguagem pode ser traiçoeira, sobretudo no que se refere ao ensino de ciências, especialmente quando lidamos com tópicos, socialmente e ideologicamente, polêmicos como a evolução. Pesquisas, nas últimas décadas, tem indicado que nosso aparato cognitivo evoluiu para um estado no qual a atribuição de “agência”, volição, intenção, etc parece ser bastante generalizada.
Explicações personalistas e teleológicas são muito comuns em nosso meio cultural e, enquanto, absolutamente adequadas quando se tratam de artefatos e criações humanas, são, extremamente enganosas quando extrapoladas para os seres vivos e demais entidades naturais. Esta questão é tremendamente
pertinente quando lidamos com o ensino de ciências biológicas, especialmente ao discutirmos tópicos de biologia evolutiva. Este problema fica muito claro ao analisarmos os usos de certos termos e expressões, que apresentam diversos significados, dependendo dos seus contextos de uso. Alguns, com seu uso nas ciências, em franco contraste com a linguagem leiga. Louise S. Mead e Eugene C. Scott, do National Center for Science Education (NCSE), em um curto e interessante artigo, publicado no Evolutionary Education Outreach, discutem algumas das questões relacionadas com o impacto de determinadas expressões e termos, como empregados na biologia evolutiva, em alunos com formação religiosa mais conservadora, que possuem, pelo menos nos EUA, maior resistência aos tópicos de biologia evolutiva. Esta tendência parece ser reforçada pela naturalidade com que atribuímos intencionalidade ao mundo natural. Algo forte, não só em adultos, mas principalmente em crianças. Portanto, um cuidado com o emprego terminológico e esclarecimento da atitude científica frente a
explicações sobrenaturais, não pode ser evitado. O ponto central do argumento de Mead e Scott, envolve a equiparação de duas formas de naturalismo, o naturalismo metodológico (partilhado pelos cientistas das mais diversas filiações religiosas, ideologias e posturas filosóficas) e o naturalismo filosófico (também chamado de naturalismo metafísico ou ontológico) que envolve uma postura muito mais ampla de rejeição ao teísmo, de forma geral. Apesar da grande (e talvez, melhor dizendo, imensa) maioria dos ateus (e outros naturalistas metafísicos) e agnósticos, subscreverem-se ao naturalismo metodológico; o contrário não é verdadeiro. Muitos cientistas, que seguem o naturalismo metodológico, são teístas ou deístas, portanto, assumindo, portanto, alguma forma de supernaturalismo metafísico.
O primeiro ponto a ser esclarecido é sobre o naturalismo metodológico, tão citado nas discussões entre cientistas e criacionistas. Mead e Scott, exemplificam esta postura ao chamar a atenção para o fato das ciências dependerem da testabilidade de seus construtos teóricos e hipóteses. Além disso, estes testes, dependem da nossa capacidade de controlar várias condições relevantes ao fenômeno a ser investigado. Em experimentos controlados, os cientistas podem tentar controlar o máximo possível variáveis, como luz, calor, pressão, densidade populacional etc. Mesmo em estudos observacionais (como análises epidemiológicas) existe a necessidade da utilização de métodos de controle estatístico de variáveis, onde lança-se mão de suposições plausiíveis sobre a natureza do fenômeno (que podem e devem ser investigadas independentemente, sempre que possível), possibilitando sua investigação. Variáveis que não possuem restrições e não são coagidas, nem empiricamente, nem teoricamente, simplesmente não se prestam a investigação pela comunidade científica, assim defende o naturalismo metodológico. Entidades sobrenaturais e irrestritas em seus poderes, habilidades, capacidades cognitivas (e cujas intenções estão acima de nossas vãs esperanças de compreensão) não são úteis como explicações científicas. Portanto, “Deus” é deixado de fora da investigação científica, uma vez que não existem restrições para sua ações, sendo ele logicamente compatível com qualquer estado de coisas.
É claro que conceitos particulares podem ser discutidos, mas a inabilidade de se concordar e estabelecer metodologias de comparação objetivas e consensuais, nos debates teológicos, tornam esta atitude [meta]metodológica pragmaticamente necessária, ao se conduzir a atividade científica. Resumindo, o naturalismo metodológico é a idéia de que apenas causas, processos, leis, princípios e explicações naturais (ou materiais - baseadas em matéria e energia) devem ser buscados pelos cientistas, em sua práticas profissionais, já que estes tipos de explicações são passíveis de acordo mínimo (além de discussão e validação inter-subjetiva), a partir de testes empíricos e procedimentos metodológicos sistemáticos e rigorosos. Esta postura, pragmática em seu seio, não é uma constação a prori. Ela é resultado de um longo processo histórico em que as ciências se separaram da teologia e da filosofia, ao longo dos séculos, tornando-se independentes, com suas próprias metodologias (de caráter naturalista) e epistemologia (de caráter empirista, como sugere Barbara Forrest; ou talvez, mais adequadamente, “racioempirista” ou pragmatista). O naturalismo metodológico é mantido a posteriori, como resultado do histórico de sucesso da abordagem científica ao lidar com o mundo natural. Esta atitude epistêmica e metodológica, portanto, não exclui logicamente a possibilidade de entidades sobrenaturais, sendo ortogonais a estas possibilidades. As ciências não nos dizem nada sobre a possibilidade da existência do sobrenatural, quando compreendidas desta maneira.
Mead e Scott, enfatizam que estes conceitos devem ser muito bem definidos e separados, pelos professores, ao se ensinar e discutir evolução. Porém, isto não é suficiente, como as autoras mesmo lembram. Termos como “propósito” e “design”, usados tanto por leigos, leigos-religiosos e cientistas, causam enorme confusão. A palavra “propósito” pode ser tanto usada como função, então sendo completamente compatível com a enfase na análise funcional típica da biologia evolutiva, como pode significar objetivo ou meta de um agente cognitivo, inclusive uma divindade; ou pode referir-se ao significado ou “objetivo transcendente” de um individuo ou se sua vida.
A palavra “design” (que parece ser menos problemática em português), com suas alusões ao desenho e projeto consciente, é outro caminho para uma possível armadilha conceitual e confronto ideológico. Este problema parece ser mais relevante em terras anglófonas, mas posso estar errado, já que não tenho uma experiência direta com o ensino de evolução no ensino médio, por exemplo. Porém, em inglês, o termo "design" é usado por cientistas ao descreverem estruturas biológicas, principalmente quando o foco é seu papel adaptativo. Esta tradição se originou, muito provavelmente, a partir da teologia natural, sobretudo na versão William Paley, extremamente influente nos meios de filosofia e história natural anglófonos. Darwin (e Wallace) com a teoria da evolução por seleção natural, explicaram exatamente como a , pelo menos aparente, extrema à adequação funcional, entre as estruturas (morfológicas, fisiológicas e comportamentais) dos seres vivos e o meio-ambiente. Este, até hoje, é um dos principais objetivos da biologia evolutiva, explicar o processo de adaptação através de mecanismos naturais, como a seleção natural.
O problema é que estes termos tem significados muito diferentes, quando usados por não cientistas, especialmente por crianças. Estes usos são facilmente co-optados pelo discurso criacionista, e por sua versão mais moderna, a teoria do Design Inteligente, que capitaliza, exatamente, em cima da idéia de “projeto” (design). Os dois termos são relacionados, “propósito” e “design”, com o “design” sendo um meio de alcançar um “propósito”, esta linguagem tremendamente carregada e teleológica, muitas vezes é propensa a gerar ainda mais confusão sobretudo se ocorre equiparação entre o naturalismo metodológico com o naturalismo metafísico. Criando uma sensação de que os estudantes devessem simplesmente optar. Como Mead e Scott colocam, citando Sinatra, aprender evolução não pode ser simplesmente adicionar um novo conhecimento, mas sim repensar o mundo e desenvolver “uma nova forma de conhecer” . Por isso, este tipo de suposta escolha não parece condutivo as ciências e ao aprendizado desta nova forma de ser pensar e conhecer a origem e modificação das funções e estruturas, que é a biologia evolutiva.
Na verdade, a atitude [meta]metodológica naturalista não é diferente da que adotamos ao ensinar (e investigar) sobre o ciclo celular ou sobre as leis de Mendel. Entretanto, a idéia de que a biologia evolutiva exclui a possibilidade de Deus e do sobrenatural, parece tornar este campo mais propício a estas confusões conceituais e epistêmicas.
As autoras sugerem evitar pronunciamentos que pareçam desabonar a existência de qualquer “propósito ultimo”, como se estes fossem logicamente incompatíveis com prática científica, para isso, enfatizando os compromisso e limitações epistêmicas e metodológicas das ciências e como estas, pragmaticamente, tornam a utilização de explicações sobrenaturais e religiosas inadequadas. Ao mesmo tempo que se diferenciam as duas formas de naturalismo e os compromissos conceituais de ambos. Mead e Scott, propõem explicitar as diferenças entre os usos populares e científicos do termo “propósito”, além de substituir a utilização do termo “design”, por equivalente como “adaptação” e “estrutura”, quando estes forem convenientes. Estas propostas dificilmente vão acabar com todos os problemas relativos ao ensino da evolução, já que termos como “adaptação”, como seus múltiplos significados (como os filósofos da biologia e biólogos teóricos não nos deixam esquecer) não são isentos de problemas. Porém, ao evitar termos como “design”, alguns equívocos conceituais muito sérios podem ser minimizados. Em condições ideais, uma “atmosfera” melhor pode ser alcançada. Uma que não coloque o ensino de evolução em choque direto com as tendências cognitivas, ideologias familiares e familiaridade lingüística (semântica e pragmática), por parte dos alunos, como certos termos e seus usos.
Por não conhecer exatamente o contexto do ensino de evolução no Brasil (nos níveis fundamental e médio) não posso afirmar se estes são os mesmos problemas que acometem nossas escolas. Porém, creio que mesmo assim, este artigo (e o que dará continuidade a ele), valha muito a pena ser lido e digerido, pelos educadores, divulgadores e interessados em evolução e seu ensino. Toda a base teórica por trás destas considerações é também de grande importância. Os estudos de antropologia e psicologia cognitiva que inspiram o artigo de Mead e Scott merecem muita atenção. Assim como, estudos de outros autores sobre a origem da religiosidade humana, como Scott Atran, Pascal Boyer e Ilkka Pyysiäinen.
Referências:
Mead, L., & Scott, E. (2010). Problem Concepts in Evolution Part I: Purpose and Design Evolution: Education and Outreach, 3 (1), 78-81 DOI: 10.1007/s12052-010-0210-8
Leituras sugeridas:
Sinatra GM, Brem SK, Evans EM. Changing minds? Implications of conceptual change for teaching and learning about biological evolution. Evol Edu Outreach. 2008;1:189–95.
Livros recomendados:
Boyer, Pascal. The Naturalness of Religious Ideas: A Cognitive Theory of Religion. Berkeley: University of California Press, 1994.
Atran, Scott. In Gods We Trust: The Evolutionary Landscape of Religion. New York: Oxford University Press, 2002
Pennock RT. Tower of Babel: the evidence against the new creationism. Cambridge: Bradford; MIT; 1999.
Pyysiäinen, Ilkka and Veikko Anttonen, eds. Current approaches in the cognitive science of religion. New York : Continuum, 2002.
Scott EC. Creationism vs evolution: an introduction. 2nd ed. Westport: Greenwood; 2009.
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