De determinantes 'genéricos' aos 'genéticos': A importância da física nos primódios da evolução animal.
O biólogo do desenvolvimento Stuart Newman*, professor de biologia celular e anatomia do New York Medical College representa uma tradição de biocientistas que remonta ao famoso D'Arcy Wentworth Thompson (e mais recentemente, na década de 1950, ao matemático Alan Turing, como seu modelo morfogenético de reação e difusão) que encaram os sistemas biológicos a partir de suas propriedades físicas e químicas e as interações que emergem nos diversos níveis de organização espacial e temporal, tentando modelá-los matematicamente e compreendê-los de maneira mais ampla e menos contingente, buscando por exemplo, leis da forma biológica e que estariam por trás das transformações que se sucedem durante o desenvolvimento ontogenéticos dos indivíduos e como estas características e processos influenciam na evolução das populações e linhagens de organismos.
Já abordamos algumas das visões de Newman e de outros biólogos teóricos que se alinham a esta tradição, conhecida por alguns como 'estruturalismo de processo', em artigos anteriores (Veja por exemplo: “É a evolução genética previsível? Parte II ou Além da genética parte I” e “Viva Turing ou como os camundongos conseguem seu palato enrugado.”), mas agora em um número especial [1] da revista Science que lida especificamente com as forças que agem durante o desenvolvimento embriológico, Newman novamente expõem suas interessantes ideias de como propriedades genéricas físicas e geométricas teriam entrado em ação quando os primeiros seres unicelulares eucariontes começaram a organizarem-se em conjuntos multicelulares.
O modelo de evolução animal proposto por Newman é um tanto diferente da perspectiva tradicional que encara a evolução como uma processo contingente e que portanto ocorrendo de maneira oportunista através de pequenos passos que originalmente ocorrem ao acaso e que são mantidos e disseminadas nas populações ou não de acordo com as vantagens funcionais conferidas ao seus portadores frente aos demais indivíduos em um dado contexto ecológico e demográfico. Todava, para Newman, as coisas devem ter sido bem diferentes nos momentos iniciais da evolução de organismos multicelulares. As ideias de Newman tẽm suas raízes em duas fontes principais. A primeira fonte é a incrível gama de evidências e informações sobre a genética dos nossos ancestrais unicelulares mais remotos, mas a segunda é que o coloca na tradição de Thompson e Turing, pois Newman, embasa sua perspectiva nas propriedades de certos materiais e na dinâmica física da"mesoescala" [2].
Os corpos de animais - e, claro, os embriões que os geram - exibem toda uma variedade de “motivos morfológicos" recorrentes que de acordo com as evidências obtidas através da análise do registro fóssil, teriam aparecido pela primeira entre 550 e 650 milhões de anos atrás. Nos animais, durante o seu desenvolvimento embrionário, as células se organizam em tecidos formando camadas que não se misturam e que possuem cavidades internas. Os embriões animais também exibem padrões arranjados de tipos celulares que podem formar segmentos, exoesqueletos e vasos sanguíneos, além de durante o processo ontogenético, os embriões em desenvolvimento passam por várias mudanças 'morfogenéticas' que envolvem o seu dobramento, elongamento, projeção de apêndices, e, em algumas espécies, a formação de endosqueletos a partir de elementos repetitivos como, por exemplo, é o caso da mão humana. [3] Assim, de acordo com o seu modelo alternativo, os motivos estruturais que estão na base da forma animal até hoje são de fato bastante previsível e, na realidade, refletem a dinâmica física das interações dessa 'mesoescala' e provavelmente entraram em ação de maneira mais ou menos súbita do que as perspectivas mais tradicionais da Evo-Devo tendem a reconhecer, com transformações morfológicas bruscas tendo sido favorecidas durante este período inicial de evolução animal. Este modelo é explicado em detalhes no artigo "Physico-Genetic Determinants in the Evolution of Development" da já mencionada edição especial da revista Science disponível online a partir do dia 12 de outubro e no podcast com uma entrevista com o próprio Newman que acompanha esta edição online [2, 3].
O modelo de Newman tem como base a constatação que esses motivos que aparecerem recorrentemente durante os desenvolvimento animal são na realidade muito semelhantes às formas assumidas por materiais não-vivos que são tipicamente estudados por áreas da física com a da matéria condensada, e que são observados em sistemas quimicamente ativos, como meios excitáveis e em materiais viscoelásticos, embora os motivos dos embriões vivos sejam, via de regra, muito mais complexos e sutilmente controlados.
Então, a partir desta constatação, Newman propõe que os ancestrais dos animais atuais adquiriram essas formas estereotipadas quando os antigos organismos unicelulares dos quais evoluíram passaram a viver em aglomerados multicelulares, período em que os processos físicos relevantes para a matéria nesta nova escala (para a vida celular) espacial passaram a ser imediatamente mobilizados [2].
Como os estudos genéticos e genômicos comparativos e as análises filogenética indicam, os progenitores unicelulares dos organismos multicelulares já possuíam vários dos genes do chamado "kit de ferramentas de genético-desenvolvimental" com o qual todos os animais de hoje orquestram o seu desenvolvimento embrionário. Acontece que no passado estes genes e seus precursores eram empregados para funções típicas de organismos com uma única célula, mas foram precisamente estes genes e seus produtos, entretanto, que permitiram que os recém formados grupos ancestrais de organismos multicelulares aproveitassem dos efeitos físicos da 'mesoescala' que produziram os motivos morfológicos e desenvolvimentais característicos. A partir daí estes diversos agregados originais devem ter evoluído paralelamente recrutando conjuntos distintas dos genes ancestrais, formando os circuitos e vias de desenvolvimento, para o controle e estabilização desses diversos 'novos' processos e motivos que surgiram quando os organismos adentraram nesta nova escala espacial e geométrica. [2, 3]
Na perspectiva de Newman, a seleção natural teria agido a partir daí, atuando por centenas de milhões de anos desde a ocorrência desses eventos de originação, levando, de acordo com a hipótese de Newman, a maior complexidade dos processos de desenvolvimento que aos poucos foram tornando a embriogênese muito menos dependente dos, potencialmente, inconsistentes determinantes físicos, embora esses motivos e processos físicos “genéricos” ainda estejam no cerne dos processos e mecanismos do desenvolvimentos animal, embora estejam sobre camadas e camadas de controle genético mais fino [2, 3].
Esta perspectiva, como enfatizado por Newman em seu artigo, oferece interpretações bem naturais para aspectos intrigantes dos primórdios da evolução animal, incluindo o aumento "explosivo" das formas corporais complexas que teria ocorrido durante o período cambriano, além de nos ajudar a compreender a conservação do mesmo conjunto de genes de controle do desenvolvimento em todos os filos animais, mesmo os mais morfologicamente distintos, além da chamada "ampulheta embrionária" [4, e veja também o artigo “Por que cinco dedos?”] que é a observação por parte de gerações de embriologistas comparativos e biólogos do desenvolvimento que as espécies de um dado filo mesmo passando por trajetórias ontogenéticas de embriogênese muito diferentes uma das outras (por exemplo, rãs e ratos) passando por pontos de partida embrionários bem distintos, e, ainda assim, passarem por fases intermediárias de desenvolvimento muito semelhantes , como as conhecidas fases 'filotípicas', mantendo seu 'plano básico de desenvolvimento' [2, 3, 4].
As perspectivas de Newman enriquecem a moderna biologia evolutiva e nos leva um pouco mais próximos a compreender mais a fundo como as formas emergem durante o desenvolvimento ontogenético e como se modifica durante a evolução, integrado áreas bem distintas das ciẽncias de uma forma fértil, e fazendo uma ponte entre uma visão mais nomológica da vida com a mais contingente e histórica, ampliando o leque de explicações evolutivas de modo a tornar mais claro este belo entrejogo entre 'acaso e necessidade' que caracteriza a vida e sua evolução.
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*Newman oferecerá em novembro deste ano, na Universidade Federal da Bahia, um curso sobre Evo-Devo contando com a organização do professor Charbel Niño El-Hani, como já noticiado aqui em nosso site.
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Referências:
Purnell, Beverly A. Forceful Thinking Science 12 October 2012: 338 (6104), 209. doi:10.1126/science.338.6104.209
Newman, Stuart A. Physico-Genetic Determinants in the Evolution of Development. Science, 12 October 2012: 217-219 doi: 10.1126/science.1222003
New York Medical College (2012, October 11). Developmental biologist proposes new theory of early animal evolution that challenges basic assumption of evolution. ScienceDaily. Retrieved October 12, 2012 [Link]
Irie N, Kuratani S. Comparative transcriptome analysis reveals vertebrate phylotypic pe.... Nat Commun. 2011;2:248. PubMed PMID: 21427719.
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Referências Adicionais Recomendadas:
Müller, Gerd B. and Newman, Stuart A. [Edited by] Origination of Organismal Form: Beyond the Gene in Developmental and Evolutionary Biology, The MIT Press, February 2003. 368 pages.
Forgacs, Gabor, Stuart A. Newman Biological Physics of the Developing Embryo , Cambridge University Press, November 2005. 346 pages.