De onde vêm a gula e a obesidade na evolução?
Quem não conhece nossa página de perguntas e respostas (formspring) pode até pensar que o Evolucionismo não se atualiza com frequência. Mas basta fazer uma visitinha por lá para ver que perguntas são um verdadeiro fermento na produção de conteúdo por aqui, que tem no formspring o biólogo Rodrigo Véras como estrela maior.
Infelizmente, o formspring já deu cabo de dezenas de respostas antigas, praticamente todas até a época em que fui entrevistado pela Ciência Hoje por isso ser novidade na divulgação científica na rede lusófona. É para não perder o que se produz por lá que lanço este post coletando, editando e ampliando as primeiras sobreviventes das minhas respostas com referências científicas.
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A explicação da psicologia evolutiva para a gula é que ela é a expressão de instintos nossos que foram moldados pela seleção natural num ambiente em que nossos ancestrais viviam, e este ambiente era escasso em energia em comparação ao ambiente da vida moderna com geladeiras, granjas, supermercados ou - nem é preciso ir tão longe - lavouras.
Ter um apetite insaciável é algo vantajoso para a sobrevivência numa savana que seja modesta na produção de caça, frutos e raízes, como era o ambiente em que nasceu a humanidade há cerca de 200 mil anos no leste africano. Se as pessoas variassem em apetite, e se esta variação tivesse base genética, teriam maior sucesso na sobrevivência e reprodução as pessoas com maior apetite.
Mas não é só o ambiente o responsável, a via é de mão dupla: uma vez que novidades foram surgindo na nossa linhagem, como nosso grande cérebro, a demanda por comida era maior, favorecendo assim a seleção favorável ao comportamento mais, digamos, guloso. Enquanto hoje gastamos a quantidade exorbitante de 20% da energia que consumimos, em média, apenas no cérebro, o chimpanzé só precisa de cerca de 9% da energia que come, em média. Nosso cérebro já era uma fornalha dezenas de milhares de anos atrás e demandava ser alimentada!
O ambiente mudou rápido (porque a cultura evolui rápido independente dos genes), e o instinto que foi esculpido por milênios não teve como mudar junto. Então, na época da bonança (ao menos bonança para quem está nas regiões desenvolvidas ou em desenvolvimento sócio-econômico hoje) este instinto pode levar ao excesso de peso, quiçá à obesidade e outros problemas de saúde relacionados à dieta opulenta. Toda essa história é muito bem contada e melhor referenciada no livro "El mono obeso" (O macaco obeso, tradução livre) de José Enrique Campillo Álvarez.
Em 2010, os pesquisadores Francisco Mauro Salzano, Maria Cátira Bortolini e Tábita Hünemeier, do Laboratório de Evolução Molecular e Genética de Populações Humanas da UFRGS, publicaram um estudo inédito, em parceria com dezenas de outros pesquisadores ao redor do mundo, identificando uma nova variante do gene ABCA1 em nativos americanos. Este gene codifica uma proteína ligada à membrana celular que faz parte de um sistema de expulsão do colesterol para fora das células.
Os pesquisadores descobriram que este alelo do ABCA1 - chamado de alelo C230 - é exclusivo de povos ameríndios, particularmente aqueles cuja dieta dependia do consumo do milho (que foi domesticado e selecionado neste continente). As técnicas de evolução molecular mostraram que o alelo C230 foi um alvo da seleção natural positiva*. É o primeiro caso documentado de seleção positiva em nível molecular atuando no genoma humano nesta região do planeta.
E o interessante é que este alelo está associado a um alto índice de massa corporal (IMC) em seus portadores modernos! Células que têm este alelo em vez do alelo selvagem mostraram 27% de redução no efluxo (saída) de colesterol de dentro delas.
Deve ser um dos poucos estudos já publicados que corroboram com tanta clareza a hipótese dos psicólogos evolucionistas.
Mas há nuances: uma implicação interessante a ser discutida, que tem a ver com a própria cultura agrícola do milho, é que aparentemente a sedentarização dos ameríndios em civilizações dependentes da cultura do milho piorou a situação das populações em termos de nutrição energética num primeiro momento, quando poderia ter acontecido esta seleção natural.
É em parte verdade que somos o que comemos: não é a primeira vez que há indicação de que a dieta adotada por populações humanas pode ter modificado parte do genoma. Também em 2010, Angela Hancock e colaboradores detectaram mudanças sutis de frequências de genes (evolução) em populações humanas ao redor do globo, e esta evolução em cada caso pode ser creditada à dieta e ao ambiente (ecorregião). Por exemplo, as mudanças nas frequências de alelos de genes do metabolismo do amido foram associadas ao consumo de tubérculos e outras raízes em populações humanas específicas.
Uma reflexão importante remonta a quantos de nós ainda estamos à mercê da carestia dos nossos antepassados. À parte fontes concebíveis de seleção como o sedentarismo e a dieta, vale lembrar que bilhões de pessoas vivem em situações deploráveis: fome, falta de abrigo, vulnerabilidade a microorganismos patogênicos, etc. Segundo a ONU, uma em quatro crianças no mundo em desenvolvimento é desnutrida.
Retratado como obeso por alguns seguidores, o Buda sempre dizia que o caminho correto é o caminho do meio. Que o futuro reserve o caminho do meio para a mesa do Homo sapiens, distante tanto da obesidade quanto da fome.
* A seleção positiva é aquela que gera novidades, também chamada de darwiniana. A seleção negativa é a seleção natural que conserva 'o que está dando certo' (em time que está ganhando não se mexe), também chamada de seleção purificadora. Antes de Darwin, o ornitólogo Edward Blyth (1810-1873) pensou na seleção purificadora em aves, porém não teve a sagacidade de Charles Darwin, Patrick Matthew e Alfred Russel Wallace para imaginar que a seleção negativa era uma das faces da moeda da seleção natural, que também poderia ser positiva.
Referências
1. Álvarez, J.E.C. El mono obeso: la evolución humana y las enfermedades de la opulencia : diabetes, hipertensión, arteriosclerosis. Editorial Critica, 2004. 235 pp.
2. Acuna-Alonzo, V., Flores-Dorantes, T., Kruit, J., Villarreal-Molina, T., Arellano-Campos, O., Hunemeier, T., Moreno-Estrada, A., Ortiz-Lopez, M., Villamil-Ramirez, H., Leon-Mimila, P., Villalobos-Comparan, M., Jacobo-Albavera, L., Ramirez-Jimenez, S., Sikora, M., Zhang, L., Pape, T., Granados-Silvestre, M., Montufar-Robles, I., Tito-Alvarez, A., Zurita-Salinas, C., Bustos-Arriaga, J., Cedillo-Barron, L., Gomez-Trejo, C., Barquera-Lozano, R., Vieira-Filho, J., Granados, J., Romero-Hidalgo, S., Huertas-Vazquez, A., Gonzalez-Martin, A., Gorostiza, A., Bonatto, S., Rodriguez-Cruz, M., Wang, L., Tusie-Luna, T., Aguilar-Salinas, C., Lisker, R., Moises, R., Menjivar, M., Salzano, F., Knowler, W., Bortolini, M., Hayden, M., Baier, L., & Canizales-Quinteros, S. (2010). A functional ABCA1 gene variant is associated with low HDL-cholesterol levels and shows evidence of positive selection in Native Americans Human Molecular Genetics, 19 (14), 2877-2885 DOI: 10.1093/hmg/ddq173
3. Hancock, A., Witonsky, D., Ehler, E., Alkorta-Aranburu, G., Beall, C., Gebremedhin, A., Sukernik, R., Utermann, G., Pritchard, J., Coop, G., & Di Rienzo, A. (2010). Colloquium Paper: Human adaptations to diet, subsistence, and ecoregion are due to subtle shifts in allele frequency Proceedings of the National Academy of Sciences, 107 (Supplement_2), 8924-8930 DOI: 10.1073/pnas.0914625107
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