'Desapatação', adaptações fisiológicas e uma pequena molécula: A evolução dos sistemas cardiovasculares dos peixes-do-gelo.
No artigo anterior deixamos uma pergunta em aberto:
O que poderia ter servido de impulso específico para a evolução das diversas adaptações fisiológicas características compensatórias que podem ser averiguadas em todos os níveis de organização biológica exibidas pelos peixes-do-gelo?
Os grandes corações que incluem alterações na estrutura e ultra estrutura do miocárdio, inclusive uma muito maior densidade de mitocôndrias, além dos enormes volumes cardíacos e a altíssima densidade vascular (especialmente em órgãos como a retina e as escamas) e maior tamanho das luz desses vasos que faz com que o sangue e o O2 nele diluído possam ser muito bem distribuídos por todo o corpo desses animais.
Acima a provável e assumida organização hierárquica dos circuitos homeostáticos e de transdução do sinal associados aos processos envolvidos na resposta à perda de pigmentos respiratórios. O diagrama baseado em vários trabalhos científicos mostra alças complexas ativado em diferentes níveis que proporcionam uma oxigenação celular mais eficiente. Esta cascata de múltiplos níveis homeostáticos incluem:
Sistemas de detecção tecido específicos de oxigênio/estado redox de (por exemplo heme-oxigenases heme, Lushchak e Bagnyukova, 2007)];
Vias de transdução de sinal [por exemplo, sistemas de resposta a hipóxia (Hochachka et al, 1999; Heise et al, 2007)];
Genes de resposta hipóxia/estado redox [por exemplo, VEGF, eNOS, HIF-1-genes (Meeson et al., 2001)];
Respostas fenotípica morfofisiológicas compensatórias [circulatório, vascular, cardíaca e modificações].
Todos os resultam em cascatas de cima para baixo de reajustes adaptativo cardio-circulatórios que ajudam a evitar o risco de hipóxia hipoxêmica e intracelular. [Traduzido e modificado de Garofalo F, Pellegrino D, Amelio D, Tota B. The Antarctic hemoglobinless icefish, fifty five years later: a unique cardiocirculatory interplay of disaptation and phenotypic plasticity. Comp Biochem Physiol A Mol Integr Physiol. 2009 Sep;154(1):10-28. Epub 2009 May 3. Review. PubMed PMID: 19401238. ]
Ao contrário do que possa se pensar, um único fator, representado pela ação de uma única molécula, pode ajudar a explicar, se não todas, pelo menos uma grande maioria dessas adaptações que nos permitem ligar diretamente a perda da expressão da hemoglobina e da mioglobina e estas incríveis adaptações.
Como uma pequena molécula pode ter permitido todo um grande leque de adaptações evolutivas que possibilitaram a emergência de um dos grupos de vertebrados mais impressionantes, os peixes-do-gelo?
Uma pequena e altamente difusível molécula produzida em tecidos biológicos denominada de óxido nítrico (NO) pode ser a chave da questão. Sintetizada por um grupo de enzimas conhecidas como óxido nítrico sintases presentes em pelo menos três formas (uma variedade endotelial, eNOS, outra neuronal, nNOS, ambas normalmente expressas constitutivamente, e uma terceira, iNOS, indutiva e relacionada a resposta inflamatória entre outras coisas) a partir do aminoácido L-arginina e de doadores de potencial redutor como NADPH e FADH, o NO adquiriu nos últimos 30 anos uma grande importância tanto por sua ação vasodilatadora, como por seu papel como molécula microbicida e, principalmente, por sua ação como mediador da sinalização entre diversos sistemas e órgãos, como o cérebro, o endotélio, a musculatura lisa etc.
Mas talvez o fato mais intrigante é que a descoberta do papel biológico do NO nos obrigou a avaliar o papel de outra classe de moléculas, as globinas, especialmente, a hemoglobina. Antes apenas encaradas como ligantes e transportadores de CO2 e O2, hoje as hemoglobinas tendem a ser vistas como incorporando apenas secundariamente este papel durante a evolução. Parece claro que uma atividade ainda mais ancestral da hemoglobina e de outras globinas seja a ligação com o NO e sua transformação em nitrato, a chamada função NO-oxigenase, importante no controle dos efeitos do NO em tecidos biológicos.
Vários estudos fisiológicos e farmacológicos comparativos com várias espécies de vertebrados, inclusive peixes-do-gelo mostram que o NO é capaz de induzir várias das modificações associadas as adaptações evolutivas exibidas pelos peixes-do-gelo, mas nestes outros organismos alcançadas como parte do repertório fisiológico e desenvolvimental destas criaturas.
Os estudos com os peixes-do-gelo mostrado que o NO regula várias atividades cardiovasculares, incluindo a dilatação dos vasos branquiais, o volume de ejeção cardíaca e sua potência, mas o mais curioso é que esta moléculas nesses animais, tem um efeito inotrópico positivo sobre a função cardiovascular, em contraste com o efeito inotrópico negativo que tem em outros peixes e mamíferos.
O óxido nítrico foi inicialmente estudado por causa de sua função como um vasodilatador, tendo sido apontado como famoso (e durante muito tempo misterioso) fator de relaxamento dependente do endotélio, descoberto e caracterizados ainda nos anos 50. O NO é capaz de aumentar o fluxo sanguíneo e, como isso, incrementar a oferta de oxigênio aos tecidos, mas, além desse efeito direto e imediato, o NO também é implicado na promoção do crescimento das redes de capilares (angiogênese), processe que envolve, o crescimento, expansão e remodelamento dos vasos sanguíneos em uma rede capilares pré-existentes, que se dá através do crescimento de novos vasos a partir das extremidades e laterais ou através da divisão longitudinal dos já existentes.
Este efeito do NO em grande parte deve ser dar pela ativação ('upregulation') de um dos mais potentes fatores de proliferação de vasos sanguíneos, o fator de crescimento vascular endotelial (VEGF) que, por sua vez, também é capaz de promover, angiopoietina-1, o alargamento do diâmetro da luz desses pequenos vasos que compõem a microvasculatura. Desempenhando aparentemente um papel na angiogênese tanto induzida por hipóxia como por exercício.
Mas, além desses papéis, o NO parece também ser capaz de estimular e manter altas densidades de mitocôndrias em vários tecidos diferentes, através de uma via bioquímica cGMP-dependente dependente da ativação da enzima guanilato ciclase, um dos principais alvos (receptores) moleculares desta molécula em eucariontes. O NO também exerce um papel na manutenção de níveis e densidades constitutivas de mitocôndrias. Estudos mostram que camundongos mutantes nulos para a eNOS, i.e. que não expressam esse gene, têm baixos níveis de DNA mitocondrial, assim como também exibem baixos níveis de mRNA da subunidade IV da enzima citocromo-oxidase (COXIV) e do citocromo c (moléculas da cadeia respiratória) em comparação aos níveis eximidos no cérebro, fígado e e tecido cardíaco de camundongos selvagens.
O óxido nítrico (NO) regula muitos dos processos fisiológicos que são detalhes característicos dos peixes do gelo. Estimula a angiogênese por meio da ativação do fator de crescimento vascular endotelial (VEGF). Promove a biogênese mitocondrial pela ativação do receptor Y coativador 1α proliferador-ativado do peroxissoma (PGC-1). Induz a hipertrofia muscular, embora esta via molecular ainda não tenha sido definida. [Figura original retirada de Scienceslides, Visiscience Corp, a qual cabem todos os direito de criação desta figura.
Altos níveis de NO podem também induzir a hipertrofia cardíaca em animais desprovidos de mioglobina. O índice coração/massa corporal aumenta em 33% em camundongos sem mioglobina que super-expressam a iNOS, em comparação com animais selvagens com hemoglobina, embora ainda sejam desconhecidos os detalhes moleculares da regulação do processo.
O NO também induz a hipertrofia muscular e ativa as células satélite no músculo esquelético de mamíferos (referências). A nNOS é parte do complexo protéico distrofina-glicoproteína que ligam a actina aos componentes da lâmina basal. O eNOS é ativado por força mecânica e pressão e a subseqüente produção de NO induz a expressão de duas proteínas do citoesqueleto, a talina e vinculina, que resultam em hipertrofia muscular.
Vários processos biológicos regulados pelo NO, especialmente aqueles associados homeostasia e adaptação fisiológica cardiovascular, estão intimamente relacionados à características fenotípicas evolutivamente fixadas nos peixes-do-gelo, sugerindo uma via evolutiva bastante interessante. Ao invés de se postular que as adaptações fisiológicas da família Channichthyidae teriam evoluído ao longo do tempo exclusivamente como respostas as pressões seletivas surgidas em função da perda das globinas, tais ajustes podem ter começado como fisiológicas diretas a perda de expressão de Hemoglobina e Mioglobina.
Em um comentário publicado no Journal of Experimental Biology em 2006, Sidell e O'Brien, propuseram que quando as mutações levando à perda de expressão de hemoglobina e mioglobina ocorreram durante evolução dos peixes da família Channichthyidae, as principais vias de degradação de NO foram eliminadas, promovendo a expressão elevada constitutiva desta moléculas sintetizadas pelas diversas isoformas de NOS o que é corroborado por dados preliminares que sugerem que níveis basais NO seriam pelo menos duas vezes mais altos nos tecidos desses animais do que os seus presentes nos seus parentes de sangue vermelho que expressam Hemoglobina e Mioglobina.
Os autores sugerem que estes níveis mais altos de NO levaria a praticamente todas as modificações características que são descritas nos peixes-do-gelo, como a elevada densidade vascular no tecido retiniano, e aumentou do lúmen dos vasos sanguíneos nos músculos com alta demanda oxidativa que é consistentes a superativação das vias de sinalização responsáveis pela angiogênese que seria de esperada em resposta a expressão constitutivamente mais alta de NO. O mesmo seria esperado em relação as densidades mitocondriais e outras modificações da morfologias mitocondrial, inclusive as diferenças de tamanho entre as mitocôndrias de tecidos com maior demanda oxidativa, uma vez que as mitocôndrias de peixes que não expressam Hemoglobina e Mioglobina são significativamente maiores do que as dos nototenióides de sangue vermelho. Esses resultados também são consistentes com os estudos que mostram que uma diminuição na produção de NO reduz o tamanho mitocondrial O aumento dos níveis NO também explicaria o tamanho aumentado do coração dos peixes do gelo, como os grupo de Siddell tendo encontrado em seus estudos um correlação da relação coração/massa corporal com a expressão Hemoglobina e Mioglobina, com as espécies de nototenióides de sangue vermelho sendo as menores, os peixes-do-gelo que expressam mioglobina sendo intermediárias, e as dos peixes-do-gelo que não expressam mioglobina, sendo as maiores. O que é está em pleno acordo com as observações do papel do NO na indução de hipertrofia cardíaca em camundongos sem mioglobina.
Estas modificações e ajustes fisiológicos, ocorridos em função da capacidade de regulação interna a partir de sistemas de sinalização como os do NO, podem ter estabelecido o contexto ecológico-demográfico direto que determinaram com a seleção seleção natural nos ancestrais da família Channichthyidae se deu. De acordo com esta proposta, esses ajustes fisiológicos e bioquímicos que se seguiram a perda de vias de degradação de NO, ou seja hemoglobina e mioglobina, forma diretamente induzidas por níveis mas altos de NO que ocorriam durante a ontogenia dos indivíduos, permitidas pela plasticidade fenotípica inerentes aos organismos multicelulares, especialmente os mais derivados como os vertebrados.
Apenas mais tarde, indivíduos cujas diferenças genéticas ou epigenéticas estabilizassem as mudanças fisiológicas, as tornando mais rapidamente alcançadas durante o desenvolvimento, mais acentuadas e menos energeticamente custosas , “assimilando geneticamente” os gatilhos e indutores ambientais, já que a estabilidade das condições oceanográficas assim o permitiam, podem ter passado a ter mais vantagens que os demais indivíduos co-específicos que dependiam apenas de seus sistemas de adaptação fisiológica.
Com o aporte de nova variação hereditária, introduzidas por mutações ou por liberação de variabilidade genética críptica (incrementada pela possibilidade do acúmulo dessa variação em função do afrouxamento da seleção natural, principalmente, devido a baixa competição e pelas condições físico-químicas favoráveis das águas geladas), a conquista do cada vez mais frios oceano austral pode continuar. Conforme as condições mudavam,fragmentando-se com os escudos de gelo avançando e recuando, novas ondas de colonização e diversificação puderam ocorrer e novas adaptações surgiram a partir de 'desapatações'.
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Referencias:
Garofalo F, Pellegrino D, Amelio D, Tota B. The Antarctic hemoglobinless icefish, fifty five years later: a unique cardiocirculatory interplay of disaptation and phenotypic plasticity. Comp Biochem Physiol A Mol Integr Physiol. 2009 Sep;154(1):10-28. Epub 2009 May 3. Review. PubMed PMID: 19401238.
Sidell BD, O'Brien KM. When bad things happen to good fish: the loss of hemoglobin and myoglobin expression in Antarctic icefishes. J Exp Biol. 2006 May;209(Pt 10):1791-802. Review. PubMed PMID: 16651546.
Créditos das figuras: