Entendendo a evolução do desenvolvimento através da evolução de organismos digitais
Entendendo a evolução do desenvolvimento através da evolução de organismos digitais
O desenvolvimento ontogenético que caracteriza o ciclo de vida dos organismos multicelulares, especialmente dos animais e plantas, inicia-se a partir de um estágio de uma única célula que multiplica-se, dando origem a um embrião que, ao crescer e alterra-se, vai adquirindo progressivamente as características ao longo do tempo em um processo epigênico, em que cada fase serve de base para a seguinte. Esse fenômeno é um dos mais intrigantes e complexos de toda a biologia e sua evolução sempre foi alvo de muitos debates e polêmicas.
Essas discussões vêm tendo lugar desde as propostas de Haeckel - de um modelo de recapitulação, em que os estágios adultos das linhagens ancestrais eram conservados nos estágios embrionários das linhagens descendentes, que ficou conhecido como ’lei biogenética’ e as propostas derivadas das ideias do embriologista Karl von Baer que postulam que as fases dos processos de desenvolvimento embriológico decorriam do fato de começarem das características mais gerais (i.e. mais ancestralmente definidas nos membros mais antigos das linhagens) e continuavam até as mais específicas, denotando os pontos de divergência entre as linhagens mais recentes e, portanto, o surgimento das características mais novas [veja aqui].
A versão recapitulacionista de Haeckel, na forma da lei biogenética, enfatizando a ‘absorção’ de estágios adultos ancestrais no desenvolvimento embrionário de espécies derivadas, acabou sendo considerada inadequada em vrtude das mudanças que ocorriam em várias fases do desenvolvimento, especialmente nas fases inciais associadas a adaptações do zigoto; particularmente àquelas ligadas à proporção de vitelo. Porém, ao compararmos as características do desenvolvimento de muitas linhagens animais específicas, como é o caso das chamadas fases ‘filotípicas’ - cujo exemplo mais conhecido é a ’faringula’, em nós vertebrados - podemos observar uma relativa conservação de muitas características, além de um padrão de divergência geral, a partir daí, mais ou menos claro (apesar de existirem alguns debates sobre o quão parecidos seriam os embriões nesta fase), inclusive do ponto de vista da expressão de grandes conjuntos de genes e de seus transcritos, naquilo que os especialistas convencionaram chamar de 'modelo da ampulheta’ [Para maiores detalhes veja aqui].
No entanto, outras questões permanecem ainda obscuras; algumas em função, exatamente, da conservação de certas estruturas e da ordem de seu aparecimento e desaparecimento, muitas das quais não parecendo ter qualquer utilidade direta, talvez, no máximo, existindo como forma de 'preparar o terreno’ para os estágios subsequentes e para o aparecimento de estruturas posteriores, mas, ainda assim, isso parecia ocorrer de uma forma bem pouco econômica e eficiente. Essas características do desenvolvimento animal são uma das demonstrações do peso da história na evolução das características dos seres vivos e da forma como elas se originam durante a ontogenia.
Os seres vivos evoluem a partir da modificação de moléculas, estruturas, sistemas, órgãos e comportamentos ancestrais, de acordo com a variabilidade originalmente existente naquelas populações, e em função das pressões ecológicas e das característicad demográficas em que estes organismos estavam inseridos. Dessa maneira, o processo de evolução biológica de novas moléculas, estruturas, órgãos, sistemas e comportamentos é muito mais análogo a um processo de 'bricolagem’ - em que adições são feitas a partir do que já existe, com os materiais disponíveis e sem planejamento futuro - do que o que seria esperado caso fossem projetadas do zero, de maneira a prever eventuais necessidades e situações futuras, como faria um bom engenheiro cheio de recursos, amplos conhecimentos técnicos e com perspectivas de longuíssimo prazo.
A manutenção destes estágios e estruturas embrionários é em geral explicada de duas formas principais pelos biólogos:
Forte seleção natural contra alterações no desenvolvimento dos primeiros estágios porque eventuais modificações tenderiam a impedir o desenvolvimento de estágios posteriores;
Seguindo as intuições de von Baer, estruturas mais simples frequentemente precederiam as mais complexas, tanto na ontogenia como na filogenia, especialmente com as primeiras (mais simples) e serviriam de blocos de construção para o segundo tipo, mais complexas.
Contudo, ambas as perspectivas são muito difíceis de serem testadas principalmente por métodos experimentais, por motivos óbvios. Felizmente, nas últimas décadas uma série de plataformas computacionais para estudos de ecologia e evolução de organismos digitais têm possibilitado explorar cenários dos tipos propostos e testar a plausibilidade de cada um deles com grande precisão.
Um estudo, usando esta abordagem, foi realizado por uma equipe de pesquisadores da Universidade do Estado de Michigan, que incluía o microbiólogo Richard Lenski, o cientistas da computação Charles Ofria, o filósofo Robert Pennock e o ex-estudante de doutorando Jeff Clune (agora pós-doutorando na Universidade de Cornell), primeiro autor do artigo que foi publicado na edição mais recente do periódico The American Naturalist.Nele os pesquisadores, também associados ao BEACON center (consórcio do qual fazem parte as Universidades do Estado de Michigan e a do Estado da Carolina do Norte, Universidade de Idaho, Universidade do Texas e a Universidade de Washington), investigaram as razões evolutivas por que os organismos passam por fases de desenvolvimento que parecem desnecessárias. Como Clune explica enfatizando alguns pontos já mencionados:
“Muitos animais constroem tecidos e estruturas que não parecem ser utilizadas que depois desaparecem” [1]
Clune, acrescentou:
“É comparável a construir uma montanha-russa, destruí-la e construir um arranha-céu no mesmo lugar. Porque não simplesmente pular direto para a construção do arranha-céu?” [1]
e continua:
“Um engenheiro poderia simplesmente ignorar a etapa da montanha-russa, mas a evolução é mais um 'bricoleiro’ e menos um engenheiro” [1]
“Ela usa quaisquer peças que estão em volta, mesmo que o processo que gera partes seja ineficiente.” [1]
O grupo de cientistas utilizaram para responder estas questões uma das plataformas computacionais mencionadas, o software AVIDA, em que os organismos digitais, ou 'Avidianos’ – formas de programas de computador autorreplicantes - mutam, competem por recursos computacionais como memória e assim evoluem, mimetizando os efeitos da seleção natural que ocorre em organismos reais. Como parte do estudo, os pesquisadores registraram a ordem em que os organismos digitais evoluíam novas e diferentes tarefas lógicas enquanto o software rodava, e verificaram mais tarde, em várias linhagens descendentes, se a ordem dessas tarefas era mantida ou não nessas gerações posteriores, no final das rodadas do programa.
Assim, os autores do artigo puderam observar que características que surgiram antes na história de uma linhagem também tenderam a ser expressas no início do desenvolvimento dos indivíduos de linhagens descendentes, com a complexidade relativa das características contribuindo substancialmente para essa correlação. Porém, mesmo após controlar as análises tendo em vista a complexidade das características, mesmo assim, os cientistas continuaram a observar uma tendência significativa à recapitulação. De acordo com os pesquisadores, esse resultado oferece evidências adicionais de que a seleção contra a interrupção do desenvolvimento também contribuiu para a conservação dos estágios iniciais de desenvolvimento em seres multicelulares.
Este estudo e outros realizados com plataformas computacionais como a própria AVIDA, além do Polyword e Tierra, t?m permitido expandir os estudos evolutivos e experimentar com organismos digitais de uma forma sem precedentes e enriquecedora, pois nos dá a liberdade de avaliar detalhes dos processos, mecanismos e padrões evolutivos aos quais não teríamos acesso de outra forma.
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[1] Michigan State University (2012, August 10). Why do organisms build tissues they seemingly never use?. ScienceDaily. Retrieved August 12, 2012,
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Referência:
Clune, Jeff, Pennock, Robert T., Ofria, Charles, Lenski. Richard E. Ontogeny Tends to Recapitulate Phylogeny in Digital Organisms. The American Naturalist, 2012; 180 (3): E54 DOI: 10.1086/666984
Crédito das Figuras:
HERVE CONGE, ISM /SCIENCE PHOTO LIBRARY
MICHEL DELARUE, ISM /SCIENCE PHOTO LIBRARY
Grande abraço,
Rodrigo