Evolução cultural e seleção natural na construção de canoas.
As semelhanças entre evolução cultural e evolução biológica são debatidas e discutidas há muito tempo. Porém o número de trabalhos quantitativos, apesar de estar aumentando muito, ainda é relativamente pequeno. Veja alguns exemplos de outros estudos recentes aqui e aqui, em posts anteriores do Eli sobre este tema.
Em estudo publicado em 2008 no PNAS, algumas das semelhanças e diferenças entre a evolução biológica e cultural foram exploradas e algumas perguntas, bem interessantes, começaram a ser formuladas na linguagem quantitativa, e repostas começam a aparecer. O objetivo inicial do trabalho era bastante simples, e mostra, com algumas questões de base, precisam ser bem estabelecidas para tornar o campo menos especulativo e cientificamente mais produtivo. A questão chave que norteou este estudo foi se padrões culturais podem se modificar seguindo modelos teóricos pré-estabelecidos, um requisito fundamental para uma investigação profunda da mudança cultural, utilizando conceitos e modelos evolutivos.
O artigo utilizou-se de um conjunto de dados que reunia os padrões de construção e design de canoas de habitantes da polinésia, uma região repleta de ilhas colonizada por um único grupo há cerca de 2500 anos. Estas condições são bastante propícias para a realização de estudos das mudanças de padrões culturais. A principal hipótese testada é se a taxa de mudança ao longo do tempo (calculada a partir das distâncias em relação as ilhas) seria diferente entre características de construção que fossem funcionalmente relevantes para o desempenho e segurança das canoas, comparadas com características simbólicas e estilísticas, sem impacto na função das canoas. Isto é, os autores compararam características que tenham um impacto direto na sobrevivência e reprodução dos indivíduos das populações que usam etas canoas, com características de impacto eminentemente cultural, potencialmente neutras em relação a sobrevivência e reprodução, mesmo que possam ser alvo de 'seleção cultural', um processo análogo, porém, diferente da seleção natural. Note que no caso das diferenças entre os designs funcionais, estes tem impacto sobre sobre a sobrevivência e reprodução dos indivíduos, portanto tem uma reposta na composição genética das próximas gerações, porém os diferenciais de adaptação são culturalmente transmitidos, por isso os genes pegam carona na cultura, como acontece no fenômeno de "selective sweep".
Os dados revelaram que as características diretamente associadas a segurança, navegabilidade e etc mudam de forma muito mais lenta do que as características simbólicas e estilísticas. Este tipo de resultado quando obtido em estudos de genética evolutiva sugerem que a evolução funcional do design das canoas é fortemente coagida pela seleção natural negativa, ou purificadora, que elimina 'designs' menos efetivos e que incidissem em mais mortes ou menos fecundidade. Já as características simbólicas poderiam ser alvo de seleção cultural, ou viés de transmissão, talvez em função da maximização da identidade de cada grupo ou população. É interessante mencionar que a seleção cultural é um processo distinto da evolução cultural e pode mesmo assumir uma direção contrária a seleção natural. Pense por exemplo, na expansão nos anos 40 e 50 do hábito de fumar, estimulada entre outros fatores pelos filmes de Hollywood. Em outros casos a seleção cultural pode acompanhar a seleção natural, como no caso de que certos designs mais eficientes ajudassem a conquistar e colonizar mais ilhas e fossem adotados por outras populações não geneticamente relacionadas as que desenvolveram aquele design.
Estes resultados, além de mostrarem que padrões de mudança cultural podem mudar de acordo com modelos evolutivos teóricos, mesmo sendo tidos como muito contingentes, reforçando a idéia de que a evolução cultural não é uma mera metáfora ou extrapolação de linguagem. Entretanto, estes resultados também nos mostram como a evolução cultural é diferente da evolução biológica. Por exemplo, mesmo que alterações no design funcional das canoas possa culminar em maior distribuição deste traço nas diversas ilhas e populações, ajudando as migrações e colonizações, parece que as inovações (equivalente as mutações) “cegas”, ou seja, aquelas que acontecem por 'erros', ou imperfeição na transmissão cultural ,tenham um impacto mínimo, sendo muito superado por inovações deliberadas e bem pensadas ou por tentativa e erro. O que pode ser bastante diferente no caso de designs não funcionais, como alterações nos símbolos, nos quais o viés de transmissão e 'erros' neste processo, associados a colonização de novas ilhas podem ajudar a criar diferenças culturais maiores, sem as restrições funcionais habituais.
Os próprios autores são muito claros, em relação as diversas interpretações possíveis para os seus resultados e a importância de estudos futuros, bem como a construção de outros conjuntos de dados culturais como estes, além da comparação de múltiplos modelos, envolvendo seleção positiva e negativa, seleção cultural, deriva, viés de transmissão, etc. A consciência destas questões mostra como a evolução cultural pode ser um arcabouço diversificado e ao mesmo tempo rigoroso para estudar as mudanças culturais, afastando um pouco a ideia de que as ferramentas de análise evolutiva possam simplificar demasiadamente e deixar de lado as complexidades e contingências das mudanças culturais. Estes resultados inciais, as considerações dos autores e o tipo de abordagem parecem fazer juz aos detalhes e complicações daquilo que entendemos por cultura e apresentam um caminho, no mínimo, muito interessante para estudá-la.
Referências:
Rogers DS, Ehrlich PR. Natural selection and cultural rates of change. Proc Natl Acad Sci U S A. 2008 Mar 4;105(9):3416-20. Epub 2008 Feb 19. PubMed PMID: 18287028; PubMed Central PMCID: PMC2265130.
Shennan S. Canoes and cultural evolution. Proc Natl Acad Sci U S A. 2008 Mar 4;105(9):3175-6. Epub 2008 Feb 27. PubMed PMID: 18305151; PubMed Central PMCID: PMC2265163.