Evolução da multicelularidade em laboratório
Compreender como a exuberante vida multicelular originou-se da disseminada e extremamente bem sucedida vida unicelular é uma das muitas questões que ocupam as mentes e o tempo dos biólogos evolutivos. Como o que podemos descobrir sobre essa questão através dos fósseis é bastante limitado, os cientistas precisam lançar mão da análise comparativa e da experimentação em laboratório como forma de suprir estas lacunas. Alguns experimentos investigando potenciais cenários para a origem da multicelularidade em que a pressão seletiva era a predação, como os realizados com as algas Chlorella vulgaris por Martin Boraas, são bem conhecidos e tem nos permitido vislumbrar como este fenômeno pode ter acontecido em tempos remotos. Um novo estudo deste tipo, desta vez com a levedura unicelular Saccharomyces cerevisiae (sim a mesma usada para fazer cervejas e um dos organismos modelo mais utilizados em pesquisa básica e aplicada), foi recentemente relatado por William Ratcliff, pesquisador do grupo de Michael Travisano da Universidade de Minesota, em uma reunião da Sociedade para o Estudo da Evolução realizada em Norman, Oklahoma (Evolution 2011).
Em apenas algumas semanas leveduras unicelulares evoluíram em agregados multicelulares exibindo várias das características fundamentais de organismos multicelulares, inclusive a divisão de trabalho entre as células. Indicando, talvez, que o “salto evolutivo” da unicelularidade para a multicelularidade pode ser apenas um “pequeno pulo”, como sugere a reportagem do site da revista New Scientist [“Leveduras de laboratório dão salto evolutivo para a multicelularidade"]. Segundo esta mesma matéria a multicelularidade evoluiu pelo menos 20 vezes desde a origem da vida, tendo ocorrido pela última vez cerca de 200 milhões de anos atrás.
Para investigar este fenômeno que nos deixou pouquíssimas pistas, Ratcliff e colaboradores, utilizaram-se de uma abordagem bastante simples ao cultivarem as leveduras em um meio líquido que era delicadamente centrifugado uma vez ao dia. Após a centrifugação uma nova cultura era inoculada com as leveduras que sobravam no fundo de cada tubo. Este processo permitia a seleção de grupos de células maiores que não se separavam formando pequenos aglutinados. Em apenas 60 dias (o equivalente a aproximadamente 350 gerações) – as 10 linhagens cultivadas haviam evoluído formando agregados, semelhantes a "floco de neve".
Um dos pontos principais do experimento é que esses agregados formaram-se a partir de células geneticamente relacionadas que não se separaram durante o processo de divisão, portanto, sendo geneticamente idênticas, em um caso extremo de seleção de parentesco, originadas do mesmo clone. A clonalidade que é como é chamada esta característica é um dos ingredientes que pode permitir a eventual evolução da cooperação, da divisão de trabalho e do “altruísmo” (Veja As cinco regras básicas para a evolução da cooperação) típico dos seres multicelulares, controlando a competição e o conflito de interesses genéticos intra-grupais possibilitando novos níveis de seleção entre os diversos grupos clonais.
"O passo fundamental na evolução da multicelularidade é uma mudança no nível de seleção de seres unicelulares para os grupos. Uma vez que isso ocorre, você pode considerar as agregações como sendo organismos multicelulares primitivos", diz Ratcliff. [*]
Como relatado no resumo da apresentação, os pesquisadores observaram a rápida evolução de genótipos de agregação em aglutinados multicelulares que exibiam uma nova dinâmica histórica de vida, tipicamente multicelular, em que a reprodução acontecia através da formação de propágulos multicelulares, quando os agregados atingiam um certo tamanho, além de apresentarem uma fase equivalente a juvenil e crescimento determinado. Posteriormente os pesquisadores também puderam observar a evolução de divisão de trabalho entre as células. Os agregados multicelulares que inicialmente eram constituídos por células individuais não diferenciadas, todas muito semelhantes umas as outras, depois de várias centenas de gerações adicionais de seleção, passaram a apresentar morte celular programada (apoptose), processo em que certas células dentro dos agregados multicelulares “suicidam-se”. O suicídio de células individuais pode parecer um contra-senso (e muito custoso) para as células que expressam tal comportamento, porém, ao regular o tamanho dos propágulos beneficiando as células viáveis, constituem-se em uma importante adaptação do ponto de vista do organismo multicelular. A clonalidade aqui é a característica chave, já que minimiza os potenciais conflitos de interesse permitindo a evolução de novo nível hierárquico já que as células são geneticamente idênticas e mesmo que uma delas morra, as características passadas as próxiams gerações serão as mesmas.
Estes experimentos mostram como diversos dos ingredientes essenciais para a multicelularidade podem facilmente evoluir em eucariontes unicelulares nas condições apropriadas. Contudo, um problema óbvio foi diagnosticado por vários outros pesquisadores que foram abordados pela reportagem da New Scientist.
O problema principal é com o organismo modelo utilizado, Saccharomyces cerevisiae. Este fungo unicelular é descendente de linhagens de fungos multicelulares e, talvez, jamais tenha perdido totalmente o potencial para a multicelularidade, mantendo certos genes, como os associados a proteínas adesivas de membranas e também ao controle da apoptose, que podem ter sido co-optados novamente na evolução da multicelularidade, mas que estavam sendo utilizados em outras funções. Isso poderia então ter “viciado o baralho” em direção da multicelularidade, explicando inclusive a extrema velocidade do processo.
"Eu aposto que as leveduras, tendo uma vez já sido multicelulares, nunca perderam isso completamente", afirma Neil Blackstone, biólogo evolutivo da Universidade Northern Illinois” Ele acrescenta: “Eu não acho que se você pegasse algo que nunca tivesse sido multicelular conseguiria isso tão rapidamente” [*]
No entanto, como chama a atenção outro pesquisador, Ben Kerr da Universidade de Washington, isso não é muito diferente do que seria esperado mesmo em organismos que jamais tivessem sido multicelulares, já que boa parte da evolução ocorre através da cooptação de características pré-existentes, mas que passam a ser empregadas para novos fins:
“Eu não esperaria que essas coisas todas aparecessem sempre de novo, mas para que as células teriam muitos dos elementos já presentes por outros motivos”[*]
Ratcliff e de seus colaboradores pretendem enfrentar esta limitação do estudo em questão ao fazer experimentos semelhantes, mas desta vez com a alga unicelular Chlamydomonas cujos ancestrais não eram multicelulares. Enquanto isso, o grupo continua com os experimentos com as leveduras, com o objetivo de identificar como a divisão do trabalho deverá evoluir nos agregados multicelulares.
A evolução experimental - tão bem ilustrada nos experimentos com Escherichia coli de Richard Lenski e em diversos outros utilizando eucariontes, como este com leveduras - nos oferece uma incrível janela para a investigação da evolução, em que o rigor experimental e a replicabilidade dos protocolos nos permitirão desvendar cada vez mais do nosso passado e especialmente como ocorreram as grandes transições evolutivas.
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Referências:
Holmes, Bob [23 de junho de 2011] Lab yeast make evolutionary leap to multicellularity New Scientit Issue 2818. Acessado em 23 de junho de 2011. *
Boraas, M. E., Seale, D. B., & Boxhorn, J. E. (1998). Phagotrophy by a flagellate selects for colonial prey: a possible origin of multicellularity. Evolutionary Ecology, 12(2), 153-164. Springer
Ratcliff, William C., Denison, R. Ford, Borrello, Mark, Travisano, Michael (2011) Experimental evolution of multicellularity. Oral Paper Session 008 [Saturday, June 18th, 2011 Time: 10:30 AM Number: 008001 Abstract ID:382] Evolution 2011. Acessado em 23 de junho de 2011.
Créditos das figuras:
DAVID SCHARF/SCIENCE PHOTO LIBRARY
SINCLAIR STAMMERS/SCIENCE PHOTO LIBRARY
FRANCIS LEROY, BIOCOSMOS/SCIENCE PHOTO LIBRARY