Evolução paralela em peixes esgana-gatas revelada por novo estudo genômico
Os peixes esgana-gatas são um dos mais poderosos modelos para o estudo da evolução morfológica e adaptativa já que em poucos milhares de anos várias populações de esgana-gatas de três espinhos (desde a última glaciação, 10000 anos atrás) recolonizaram, repetidas vezes, ambientes de água doce. A forma ancestral do esgana-gatas de três espinhos (Gasterosteus aculeatus) de aguá-doce, portanto, era um peixe marinho coberto por uma "armadura" óssea protetora, mas cujos descendentes, em seus novos habitats de água doce, por diversas vezes e de maneira independente, evoluíram novas adaptações morfológicas e fisiológicas, como a perda do revestimento ósseo e dos espinhos, além de mudanças na tolerância à salinidade (1, 2, 3)*.
O estudo dos genomas desses animais têm revelado algumas mutações que parecem ter permitido a várias populações dessas populações uma rápida evolução adaptativa que foi necessária na mudança do ambiente marinho para o de água doce.
A velocidade da evolução desses peixes é impressionante, já que em cerca de 10 gerações os esgana-gatas marinhos podem perder suas armaduras e espinhos defensivos, substituindo-os por uma estrutura corporal mais leve e mais adequada a vida em água doce (1).
Muitos dos trabalhos feitos usando os esgana-gatas vem sendo conduzidos pelo biólogo evolutivo David Kingsley e seu grupo. Eles têm identificado as diferenças genômicas entre as variedades marinhas e de água doce, muitas das quais parecem ser as mesmas, ou pelo menos muito semelhantes umas as outras, tendo ocorrido de maneira independente muitas vezes nos diversos eventos de colonização.
Kingsley e seu grupo recentemente seqüenciaram os genomas completos de 21 esgana-gatas oceânicos e de água doce provenientes de três continentes diferentes, publicando-os em um abrangente artigo na revista Nature.
O estudo de autoria de Jones e colaboradores (2) envolveu o sequenciamento total de alta qualidade de todo o genoma de um esgana-gata do Alasca - em que cada nucleotídeo de DNA, presente nas sequências de leituras utilizadas para montar a sequência do genoma, foi sequenciado, em média, nove vezes (cobertura de 9x do genoma). Adicionalmente, o time de pesquisadores também produziu seqüências completas, com cobertura de 2,3 vezes, de outros 20 peixes esgana-gata de populações adicionais espalhadas pelo mundo: 10 em água doce e 10 em ambientes marinhos, o que, sem dúvida, permitiu uma análise bastante completa de como adaptações genéticas semelhantes podem ter surgido repetidamente em populações isoladas (2,3).
Por meio do detalhado genoma de referência obtido a partir do espécimen do Alasca, os biólogos evolutivos identificaram um conjunto de loci (genes) em todo o genoma, cujas diferenças estavam, consistentemente, associadas a divergência entre populações marinhas e de água doce. Esse estudo revelou que, em grande parte de seus genomas, os esgana-gatas de água doce eram bem mais similares as variedades oceânicas de esgana-gatas vizinhas mais próximas do que a outros esgana-gatas de água doce, vivendo em ambientes semelhantes, o que é consistente com a origem comum. Porém, em alguns trechos específicos dos seus genomas, cerca de 150 sequências de DNA (exatamente as associadas ao crescimento da 'armadura' e ao processamento de sal pelos rins), os esgana-gatas das populações de água doce e de salgada eram mais parecidas com as de suas contrapartidas em ambientes similares ao redor do mundo. Isto é, nesses trechos os esgana-gatas de água doce eram mais parecidos com outros esgana-gatas de água, enquanto esses mesmos trechos em esgana-gatos de água salgada eram mais parecidas com as de outros esgana-gatas de água-salgada, mesmo eles sendo menos aparentados.
Greg Wray, pesquisador na Universidade Duke em Durham, Carolina do Norte, não envolvido na pesquisa, afirmou:
"São uma série de adaptações que afetam muitos aspectos do organismo: a forma do peixe, seu comportamento, dieta e preferências de acasalamento" (1)
Isso acaba por confirmar um princípio muito geral da evolução biológica, já que baseado nessas semelhanças específicas entre os peixes de água-doce derivados de populações independentes, parece claro que os esgana-gatas não evoluíram novas funções a partir do zero cada vez que seus ancestrais entravam em novos ambientes, mas, ao invés disso, alguns poucos peixes oceânicos mantinham antigas adaptações genéticas a água doce que lhes permitem colonizar novos sítios, com as primeiras gerações, após a incursão em novo ambiente, exibindo características mistas ou intermediárias, mas, que eventualmente, acabam sendo superadas pelas características que favorecem a adaptação a água doce. Em conjunto esses resultados indicam, portanto, que os esgana-gatas reutilizam a variação genética compartilhada globalmente já existente - o que inclui até inversões cromossômicas - e estas, de modo geral, parecem ser muito importantes para a manutenção de ecótipos divergentes durante as fases iniciais de isolamento reprodutivo.
Estudos anteriores, muitos deles conduzidos pelo próprio Kingsley, já haviam mapeado algumas dessas mutações em alguns genes, mas uma polêmica ainda dividia (e divide) a comunidade científica em relação ao tipo de mutações que predominariam neste tipo de evolução adaptativa. Porém, este novo estudo traz evidências que esclarecem a situação - pelo menos, em relação aos esgana-gatas e aponta formas de decidi-la em relação a outros modelos de evolução adaptativa. A polêmica, já discutida aqui de maneira superficial no nosso post “É a evolução genética previsível? Parte II ou Além da genética parte I”, diz respeito a contribuição de mutações ocorridas nas regiões regulatórias dos genes (como elementos promotores, sequências amplificadoras/reforçadores e outros elementos cis-regulatórios) em contraste com a contribuição de mutações em regiões codificadoras que codificam proteínas envolvidas no controle da expressão gênica, como os fatores de transcrição, elementos trans-ativos, que se ligam a sequências regulatórias de outros genes, ligando ou desligando-os em tecidos e momentos específicos e controlando os níveis dos seus produtos.
A figura abaixo esquematiza um gene eucariótico típico cujas sequências codificadoras dos aminoácidos, os exons, estão inter-espaçadas por sequencias não codificadoras, os introns, que precisam ser removidos após a transcrição para formar os RNAs mensageiros (mRNA) maduros cujos codons serão 'lidos' pelos ribossomos e traduzidos em uma sequência polipeptídica. São também mostradas as regiões regulatórias proximais e distais, como promotores e reforçadores/amplificadores, em que se ligam fatores de transcrição e outras proteínas regulatórias e repressoras e associadas ao complexo de transcrição.
O novo estudo publicado feito pelo grupo de Kingsley mostrou que cerca de 80% das alterações genéticas associadas as adaptações a água doce são provavelmente situados em regiões regulatórias, com apenas, cerca de 20%, afetando diretamente as regiões codificadoras dos genes, potencialmente alterando as proteínas por eles codificadas. A abordagem utilizada foi bastante simples, como explica a bióloga evolutiva Hopi E. Hoekstra, da Universidade de Harvard, em um artigo comentários sobre o trabalho de Jone et al (2,3), caso não houvessem regiões codificadoras nas porções variantes analisadas, então as mutações causais ali eram consideradas 'regulatórias', com o grupo de Kingsley encontrando mutações desse tipo em 41% dos casos. Por outro lado, caso a região analisada e detectada como variante contribuinte para a divergência oceano-água doce contivesse tanto regiões codificadoras como não-codificadoras, mas se ainda assim não existisse nenhuma diferença na composição de amino-ácidos do polipeptídeo codificado consistente entre populações marinhas e de água doce, estas eram consideradas, como “susceptíveis de serem regulatórias", o que constituía 43% dos casos. E, por fim, caso as mutações fossem nessas mesmas porções, mas consistentes com diferenças nos amino-ácidos codificados, os autores classificavam-nas como "codificadoras" (17% dos casos) (3).
Este tipo de mutação em regiões regulatórias teria uma vantagem ao não interferir na proteína codificada, mas apenas no seus padrões de expressão tecido e tempo específicos, sendo portanto mais suportáveis de um ponto de vista adaptativo e potencialmente mais circunscritas a uma fase do desenvolvimento ou tecido em particular, especialmente, se envolvesse, como muitas envolvem, a extinção da expressão em uma região ou momento particular. Essas mudanças regulatórias poderiam, portanto, acelerar a adaptação dos esgana-gatas, com cada mutação controlando a expressão do gene nos múltiplos tecidos associados ao elemento regulatório afetado Veja mais informações sobre as consequências de mutações em "Como distorcer a genética e a biologia evolutiva: Muita ignorância e pouca humildade".
O estudo também mostra que a evolução dos esgana-gatas ocorre mais pela existência de variação genética prévia, do que por novas mutações aleatórias surgidas de novo, como enfatiza o biólogo Greg Wray. Portanto, a variabilidade genética de uma população mesmo que a afaste de um ótimo adaptativo local pode ser fundamental para a evolução futura, equilibrando assim fatores seletivos com a pressão de mutação e processos estocásticos e contingentes que não permitem a total substituição de variantes menos vantajosas por mais vantajosas, o que contribui para tornar as populações mais variáveis mais adaptáveis e exemplificando a complexa interação de fatores qe acontece durante a evolução adaptativa.
Hopi E. Hoekstra - que defende a importância de mutações codificadoras e que trabalha com a evolução adaptativa de pelagem de roedores - reconhece a pertinência dos novos dados (1):
"Acho que o artigo é muito bom, e estou convencido pelos dados"
Porém, acrescenta:
"Poderia ser muito diferente - em termos da fração de mutações que são codificadoras ou regulatórias – em um organismo que tenha um genoma muito mais simples, ou que tenha se adaptado muito mais lentamente."
O ponto principal, entretanto, é que o mesmo método pode ser aplicado a outros organismos que evoluíram várias vezes em resposta a alterações ambientais semelhantes, como afirma Wray. Este estudo abre novas questões e ajuda a construir uma agenda para pesquisas futuras sobre esta questão que vão desde descobrir se este padrão se repete em outros organismos vivos em situações semelhantes até determinar, nos casos que isso ocorra, por que elas ocorrem em determinadas regiões mais do que em outras, de forma paralela e repetitiva.
Algumas dessas perguntas já possuem algumas respostas provisórias como as oferecidas por pesquisadores como David Stern e Virginie Orgogozo . A partir de seus estudos em Drosófilas [veja por exemplo "É a evolução genética previsível? Parte I"] e outros feitos em nematodes, alguns cientistas defendem que evolução paralela deve ocorrer por causa do menor impacto de mutações em certos sítios que teriam papeis mais circunscritos e menos pleiotrópicos, portanto com menos risco de interferirem com vários sistemas ao mesmo tempo (o que chamei de “caminhos mutacionais de menor resistência”), como é o caso dos quimiorreceptores srg-36 e 37 em nematóides [Veja por exemplo, "O verme que veio do espaço ou É a evolução genética previsível? Parte III"]. Além disso, genes que ocupassem um nível hierárquico intermediário e integrador, em termos da arquitetura das redes gênicas e bioquímicas a que pertencem, o que Stern e Orgogozo chamam de 'genes de input-output' (como o gene 'shavenbaby' em D. melanogaster e D. simulans) também seriam outros fortes candidatos a serem mais bem sucedidos caso mutados, já que também teriam menos efeitos colaterais negativos e contribuiriam para mudanças consonantes em mais de um lugar ao mesmo tempo por serem uma espécie de circuito mestre integrador de múltiplas vias 'acima 'e com múltiplos alvos 'abaixo' mas cuja atuação se dá em uma característica particular, modular.
Estudos como esse, apoiados na novas, rápidas e mais baratas plataformas de sequenciamento e re-sequenciamento - associadas a outras engenhosas metodologias como a 'síntese funcional' que permitem 'ressuscitar proteínas ancestrais', de Joe Thornton - prometem responder a essas, e a outras questões, nos dando um panorama cada vez mais completo do processo de evolução.
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Shen, Helen Stickleback genomes reveal path of evolution Nature | News 04 April 2012 doi:10.1038/nature.2012.10392.
Jones FC, Grabherr MG, Chan YF, Russell P, Mauceli E, Johnson J, Swofford R, Pirun M, Zody MC, White S, Birney E, Searle S, Schmutz J, Grimwood J, Dickson MC, Myers RM, Miller CT, Summers BR, Knecht AK, Brady SD, Zhang H, Pollen AA, Howes T, Amemiya C; Broad Institute Genome Sequencing Platform & Whole Genome Assembly Team, Baldwin J, Bloom T, Jaffe DB, Nicol R, Wilkinson J, Lander ES, Di Palma F, Lindblad-Toh K, Kingsley DM. The genomic basis of adaptive evolution in threespine sticklebacks. Nature. 2012 Apr 4;484(7392):55-61. doi: 10.1038/nature10944. PubMed PMID: 22481358.
Hoekstra, Hopi E. Genomics: Stickleback is the catch of the day Nature 484, 46–47 05 April 2012 doi:10.1038/484046a Published online: 04 April 2012 http://www.nature.com/nature/journal/v484/n7392/full/484046a.html.
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*Outro estudo com esgana-gatas, mas desta vez usando pares de populações aparentadas próximas, ambas descendentes de populações marinas, investigou os padrões de adaptação específico a ambientes de água-doce lacustres e de corredeiras. Os pesquisadores Marius Roesti, Walter Salzburger, Daniel Berner, todos da Universidade Basel (em Vesalgasse, na Suíça) e Andrew P. Hendry (da universidade McGill, no Canadá) publicaram também recentemente no periódico Molecular Ecology um artigo em que identificaram diferenças em múltiplas regiões, bem separadas ao longo dos genomas, correlacionadas com o nível de divergência morfológica em múltiplos pares dessas populações descendentes de ancestrais comuns de esgana-gatas que haviam sofrido seleção divergente e adaptado-se a ambientes lacustres e de corredeiras.
Dentro dos pares, a divergência genômica total estava associada com a magnitude da divergência entre os fenótipos que já sabia-se estarem sob seleção divergente. Esse padrão de diversificação genômica crescente, torna-se cada vez mais enviesado em direção ao centro de cromossomos em oposição às regiões mais periféricas. Os autores do artigo atribuíram este padrão cromossômico a variação na extensão do ‘efeito carona’ - em que variantes neutras próximas aos genes realmente vantajosos e que sofrem um processo de varredura seletiva (‘selective sweep’) e que, por isso, aumentam rapidamente de frequência na população, arrastando as variantes - principalmente nas regiões onde há menos recombinação como é o caso dos centros dos cromossomos. Ao corrigir para este efeito, entretanto, tornou-se mais claro que um grande número de genes, amplamente distribuídos por todo o genoma, estão envolvidos na divergência entre populações que habitam lagos vs as que habitam corredeiras. Além desse resultados, os cientistas analisando pares extras de populações alopátricas e conseguiram mostrar que a forte divergência em algumas regiões genômicas tem sido impulsionada, também, por seleção não-relacionada as diferenças entre ambientes de corredeira e lagos. Esse estudo destaca a importante contribuição da grande variação na taxa de recombinação que gera padrões de divergência genômica heterogêneos, indicando que a base genética de divergência adaptativa pode ser mais complicada do que atualmente reconhecido. [Adaptado do texto já publicado em nosso Facebook]
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Roesti M, Hendry AP, Salzburger W, Berner D. Genome divergence during evolutionary diversification as revealed in replicate lake-stream stickleback population pairs. Mol Ecol. 2012 Mar 2. doi: 10.1111 j.1365-294X.2012.05509.x. [Epub ahead of print] PubMed PMID: 22384978.
Créditos das figuras:
SIMON BOOTH/SCIENCE PHOTO LIBRARY