Fatores não adaptativos e a evolução da regulação gênica em procariontes.
Dois pesquisadores da universidade Rice, o professor de ciência da computação e ecologia e biologia evolutiva, Luay Nakhleh, e o doutorando em bioinformática, Troy Ruths (o primeiro autor do trabalho), publicaram um novo estudo, na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, onde mostram que mesmo na ausência de pressões ambientais específicas, a combinação de dois processos estocásticos, as mutações e a deriva genética, são ainda capazes de produzir muitos padrões das redes cis-regulatórias genéticas que são fundamentais no controle da expressão gênica [1].
Talvez o sistema mais conhecido deste tipo sejam os operons das bactérias, como o operon lac que tornou a bactéria Escherichia coli tão conhecida e que abriu os horizontes para o estudo do fenômeno da regulação gênica. Os genes bacterianos encontram-se normalmente organizados em grupos de genes co-regulados, chamados de operons que, além de estarem posicionados fisicamente muito próximos uns dos outros no genoma, têm seus estados de expressão ('ligado' e 'desligado', por exemplo) determinado pelo estado de expressão de outro gene que é modulado por algum fator ambiental [2]. É este mecanismo de genes relacionados sob um mecanismo de controle comum que permite as bactérias adaptarem-se tão rapidamente às mudanças ambientais.
A imagem abaixo, retirada e traduzida da imagem do livro de Benjamin Pierce 'Genetics: A Conceptual Approach, 2nd ed.' (New York: W. H. Freeman and Company) obtida via Nature Scitable [2], resume a relação entre os 'genes estruturais', que estão associados a codificação de proteínas que agem no citosol, como enzimas que fazem parte de vias bioquímicas, e os 'genes regulatórios' que codificam proteínas capazes de ligarem-se a certas regiões não-codificadoras dos genes, como os promotores e outros elementos cis-regulatórios, e que, ao fazerem isso, alterarem a expressão dos genes estruturais, ativando ou inativando sua leitura por parte da enzima RNA polimerase [2].
O estudo realizado pelos dois cientistas envolveu a simulação de 1000 modelos computacionais aleatórios da evolução de redes regulatórias de bactérias Escherichia coli que se estenderam por milhões de gerações. Nestas simulações, os autores não programaram nenhum tipo de pressão seletiva específica que pudesse levar a produção de novas redes cis-regulatórias e nem a complexificação das já existentes. Estas simulações e modelos constituem-se em modelos de nulidade da evolução, isto é, modelos neutros, onde apenas a pressão de mutação (especialmente duplicação gênica), recombinação e a fixação e remoção aleatória destas mutações, por meio da deriva genética, é que definem a arquitetura genotípica das populações virtuais de bactérias, além, é claro, da ubíqua seleção purificadora que elimina eventuais variantes genéticas incompatíveis com a sobrevivência.
De acordo com Nakhleh, o autor sênior do trabalho, ele e Ruths decidiram adotar uma perspectiva diferente da empregada pela maioria dos cientistas que habitualmente investigam estas questões - que basicamente presumem que estas redes são em sua maior parte produtos da evolução adaptativa, ou seja, da evolução guiada por algum tipo de seleção natural positiva [1].
"As redes são sistemas biológicos complexos, e a comunidade tem respondido através do desenvolvimento de diversas ferramentas de análise computacionais e matemáticas sofisticados para entender essas redes"[1].
Para fazer isso, ao invés de investigarem diretamente os 'motivos proteicos' (sequências curtas que aparecem mais frequentemente entre os membros das redes de interação do que seria esperado pelo simples acaso) das proteínas envolvidas nas redes de interação, os dois cientistas preferiram investigar a dinâmica dos genomas dos organismos, sobre a qual temos muito mais informação e conhecimento [1]:
"Em vez de saltar diretamente para a rede, a qual nós não entendemos muito, decidimos olhar para trás, para nosso amplo conhecimento sobre o genoma e vinculá-lo a essas redes" [1]
"Neste trabalho, nós nos aprofundamos na questão de quanto do que vemos na rede é o resultado da evolução neutra, onde não há seleção envolvida. Quanto do que estamos vendo é um efeito colateral, por assim dizer, de mutações aleatórias e da deriva genética?" [1]
No artigo do PNAS, os pesquisadores concluem que estes mecanismos não-adaptativos conseguem dar conta de boa parte do que vemos em termos das redes cis-regulatórias de bactérias, quando comparamos os experimentos computacionais in silico aos dados advindos de experimentos com bactérias E. coli reais.
"Há dois lados neste artigo", disse Nakhleh. "Uma é que muitos desses motivos não têm nada adaptativo em sua origem. Eles surgem porque a mutação é um processo aleatório.” [1]
"O segundo e, penso eu, a parte mais poderosa da história é que, pela primeira vez, a extensão da neutralidade na rede foi quantificada. Nosso modelo ... nunca será capaz de dizer: 'Eu posso refutar a adaptação disso. "O que estamos dizendo é que você não precisa invocar a adaptação para explicar o que você está vendo.” [1]
"Agora podemos começar a compreender como mudanças ao nível do genoma podem resultar na formação destas redes, o que alguns pesquisadores estão chamando dos 'princípios de design' por trás dessas redes", disse Nakhleh.[1]
Porém, como vários outros pesquisadores, que estudam a evolução da complexidade biológica ao nível da estrutura dos genes, redes cis-regulatórias, genomas, proteomas e interatomas, têm mostrado, talvez, boa parte destes sistemas não precisem de quaisquer 'princípios de design', entendidos aqui, que fique bem claro, como decorrências da ação seleção natural associada a condições ecológicas e demográficas específicas:
"Eu não acho que há alguma coisa sendo projetada aqui, por assim dizer. Padrões emergem em resposta a mutações, deriva genética e a seleção, em seguida, afeta as frequências desses padrões. Nós mostramos que a deriva genética pode explicar muito dessas frequências." [1]
Em artigos anteriores já havia comentado os trabalhos de Michael Lynch e seus colaboradores (“Além da seleção natural ou a importância da evolução neutra” e “O preço da complexidade”) e, mais recentemente, discutido os trabalhos inspirados na ideia de 'lei evolutiva de força zero' desenvolvidos por Dan Mcshea, Wim Hordijk e pelo filósofo Robert Brandon (“Complexidade por subtração da complexidade”). Também já citei os trabalhos de Shozo Yokoyama e Joe Thornton (“Complexidade por subtração da complexidade” e “Incoerência irredutível”) que empregam a refinada abordagem de 'síntese funcional', na qual, por meio de métodos filogenéticos moleculares, reconstroem os estados de sequências de biomoléculas ancestrais e as sintetizam e expressão em sistemas modernos, usando métodos de química quântica, biofísica, bioquímica e farmacologia para caracterizar as propriedades estruturais e funcionais destas moléculas, permitindo que compreendamos como processos evolutivos como mutação, deriva genética e seleção natural deram origem as versões modernas destas moléculas. Estas abordagens, juntamente com abordagens semelhantes (com as desenvolvidas por Nakhleh e Ruth), são essenciais se quisermos destrinchar os processos e mecanismos adaptativos e não adaptativos por trás da evolução da complexidade biológicas ao nível molecular.
Por isso, ter uma ideia do que estas diferentes 'forças evolutivas1 podem fazer (e quantificar estas capacidades) é um passo importante para poder realizarmos análises funcionais dos diferentes componentes destes sistemas cis-regulatórios, de modo que possamos projetar experimentos de perturbação destas redes de regulação, além de podermos construir redes sintéticas [3]. Além disso, como não existem testes específicos para a diferenciação da evolução neutra da evolução adaptativa (análogos aos testes estatísticos usados para regiões codificadoras dos genes. Veja "Marcas da adaptação: A teoria neutra e as assinaturas moleculares da seleção natural" e "A evolução do receptor TAS2R38 em primatas: O amargor da seleção natural") nestas redes cis-regulatórias, tornam-se ainda mais relevantes estudos do tipo do realizado por Ruth e Nakhleh que mapeiam o tipo de padrões e características que podem emergir, nestas redes, por meio da evolução neutra.
Este artigo é mais um que mostra que muitas das características biomoleculares que vemos nos seres vivos são muito mais prováveis do que muitos considerariam, emergindo da própria imprecisão dos processos de replicação, da contingência histórica e do fato de que, muitas vezes, não é o mais apto que sobrevive e se reproduz mais, o que permite que a complexidade evolua secundariamente, a partir da agregação e melhoria de soluções que originalmente estão bem longe de um ótimo, em um constante jogo de bricolagem, como diria o finado biólogo François Jacob.
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Referências:
Williams, Mike 'Minus environment, patterns still emerge' Rice University News & Media, May 21, 2013.
Ralston, A. (2008) Operons and prokaryotic gene regulation. Nature Education 1(1).
Ruths, T., Nakhleh, L. Neutral forces acting on intragenomic variability shape the Escherichia coli regulatory network topology. Proceedings of the National Academy of Sciences, 2013; 110 (19): 7754 DOI: 10.1073/pnas.1217630110