Filogenia Mastigada 1: Princípios de Filogenia e conceitos básicos
Veja também: Filogenia Mastigada 2
Se você gosta de evolução e quer entender um pouco mais filogenia e como interpretar cladogramas e filogramas, é nosso convidado. Essa série tentará ser o mais didática possível para que não biólogos possam desfrutar de um assunto que é um tantinho complicadinho. Essbees são conceitos fundamentais pra nossas discussões em evolução!
Princípios de Filogenia*
Primeiramente... o que é filogenia?
Filogenia é o conjunto da história da ancestralidade entre todas as espécies de seres vivos que existem (ao assumirmos que a vida se originou uma única vez). Damos o nome de filogenia também ao diagrama que representa essa história.
Nosso conhecimento sobre a filogenia dos grupos de seres vivos é incompleto e recuperar toda a história de relações entre os seres é impossível. Primeiramente, é impossível pois a grande maioria dos seres que já existiram não foram preservados em fósseis e, portanto, jamais os conheceremos. Por outro lado, conhecemos uma parcela ínfima dos seres vivos de hoje e muitos vão desaparecer sem que os conheçamos... Assim nossas reconstruções de filogenias contam com apenas uma parte modesta dos organismos que existem e que já existiram.
Comparando estruturas e pensando em evolução...
O conceito de homologia e o conceito de homogenética
O que é homologia? como aprendemos na escola, homologia se refere à estruturas que se desenvolveram a partir de uma mesma estrutura ancestral. Assim dizer que uma estrutura é homóloga à outra é dizer que as duas espécies se derivaram a partir de um ancestral comum. As estruturas homólogas não são necessariamente iguais... mas vieram de uma mesma origem.
Como saber se uma estrutura é homóloga à outra? Estruturas homólogas podem ser inferidas por formas parecidas, topologia (posição relativa a outras estruturas do corpo) e ontogenia (desenvolvimento embrionário semelhante, por exemplo derivados de mesmo grupo de células). Entretanto, é necessário estudos mais aprofundados da filogenia do grupo para a melhor compreensão das homologias.
O conceito de homologia é anterior à teoria da evolução e dizia respeito somente à topologia do órgão (ou seja, posição espacial) no corpo de um ser. Esse conceito era contraposto ao de analogia, que seria somente estruturas com mesma função... possuindo ou não a mesma posição.
Após a teoria da evolução ficou evidente que muitas vezes semelhanças de função e posição refletem um ancestral comum. E o termo homologia passou a ser usado com um sentido filogenético, portanto, é necessário empregá-lo corretamente.
Ray Lankester fez uma distinção entre as expressões homologia e homogenética. Para ele, como o conceito de homologia já se referia na literatura tradicional à semelhança de topologia entre estruturas, seria melhor usar o termo 'homogenético', com a visão evolucionista por detrás, deixando o conceito de 'homologia' em sua versão tradicional. Entretanto, o conceito de homologia ganhou espaço nos livros e seu uso fez com que a proposta de Lankester não fosse acatada por todos.
Qual a diferença entre carácter e estrutura?
Essas duas expressões muitas vezes são usadas aleatoriamente nos textos mas elas refletem conceitos diferentes.
Estrutura: é qualquer parte do corpo, qualquer expressão fenotípica (seja ela morfológica, comportamental, fisiológica).
Caráter: é o estado da estrutura. Falamos em carácter quando falamos em diferenças entre estruturas homólogas.
Por exemplo: Quando estamos falando sobre membros anteriores em tetrapoda, o 'membro anterior' é a estrutura e 'asa' é um carácter, assim como 'pata' para crocodilia seria outro carácter dessa estrutura. Entretanto, quando falamos em diferenças de asas entre passeriformes, a asa é a estrutura e os caracteres podem ser, por exemplo, ‘cor da pena’ ou ‘extensão do rádio’. Com esse exemplo podemos perceber que carácter e estrutura dependem da escala na qual estamos conversando, se formos conversar na escala ‘tetrápode’ ou se formos conversar na escala ‘passeriformes’.
O mesmo ocorre com homologia, depende do nível no qual está a conversa. A clássica comparação de homologia entre o ‘braço’ do homem e a ‘asa’ do morcego, encontrada em livros textos de biologia do Ensino Médio, nunca me pareceu bem trabalhada pelos livros e professores. Seriam essas estruturas homólogas? O que os livros estão comparando quando dizem que o ‘braço’ do homem é homólogo a ‘asa’ do morcego está no nível "membro superior" assim se compara as estruturas formadoras desses dois caracteres. A estrutura óssea e muscular do braço do homem é homóloga à estrutura óssea e muscular da asa do morcego.
Entretanto, já me deparei com pesquisas que apontam que as asas em morcegos teriam evoluído duas vezes, assim as asas desses dois grupos seriam homólogas? E como seria a relação de homologia entre as asas dessas duas linhagens de morcegos e o braço humano? Suponhamos que as asas dos morcegos tenham tido duas origens evolutivas. Neste caso as asas desses dois grupos de morcegos não seriam homólogas pois teriam surgido a partir de estruturas diferentes, entretanto a estrutura óssea dos dois grupos de morcegos seria homóloga... e quanto à homologia entre as estruturas ósseas das asas desses dois tipos de morcegos e o braço humano, poderíamos dizer que são homólogas dentro do grupo Mammalia. Daí a importância de se considerar escalas.
Propondo evolução de estruturas...
O que são plesiomorfias e apomorfias?
Plesiomorfias: a condição plesiomórfica é a condição mais antiga e que estava presente no ancestral.
Apomorfia: é a condição mais recente, surgida por modificação na condição plesiomórfica.
Por exemplo, em tetrapoda a condição plesiomórfica do membro anterior é ‘pata’ e a condição apomórfica derivada em aves é ‘asa’.
Simplesiomorfias= compartilhamento de condição plesiomórfica. Por exemplo, o homem, o jacaré, a sapo e a tartaruga compartilham a condição antiga para ‘membro anterior de tetrapoda’ que é a ‘pata’, portanto para todos esses animais e todos os demais tetrápodes que compartilham essa estrutura, a ‘pata dianteira’ é condição simplesiomórfica.
Sinapomorfia: Compartilhamento de condição apomorfica. Por exemplo, dentre o grupo dinossauria, as aves e alguns terópodes possuem (e possuíam) penas... assim ‘pena’ é uma sinapomorfia do grupo.
Autapomorfia: é um tipo especial de sinapomorfia. São caracteres apomórficos compartilhados por um grupo terminal em um cladograma. Assim, ‘asa’ é uma autapomorfia de aves porque somente esse grupo, dentro de archosauria (precisamos de uma escala, lembrem-se), possui essa estrutura e esse é um grupo terminal.
Obviamente os termos 'apomorfias' e 'plesiomorfias', assim como seus derivados, são dependentes da escala da análise.
Voltamos a conversar sobre filogenia em próximas postagens, Na segunda postagem da série veremos séries de transformações e polarização dessas séries, assim como conceitos importantes como arqueomorfia e homoplasia.
Veja também: Filogenia Mastigada 2
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Texto por Ester Helena de Oliveira
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Para saber mais:
Amorim, Dalton de Sousa. Fundamentos de Sistemática Filogenética (1º edição), Editora Holos, 2002.