Filogenia Mastigada 4 : Interpretando uma árvore filogenética – parte 1/2
Veja também: Filogenia Mastigada 5
Eventualmente a interpretação (leitura, análise) de uma árvore por estudantes de biologia pode se revelar uma tarefa um tanto complicada. O mesmo exercício, para um leigo em biologia, pode se revelar ainda mais maçante. O objetivo desta postagem é facilitar ao máximo a compreensão de qualquer leigo ou estudante sobre o assunto e possibilitar o aprofundamento do estudo da evolução e filogenia por qualquer interessado.

(Figura 1). Relações de diversas raças de cachorros e lobos
Muito se diz da contribuição de Darwin e Wallace quanto à mutabilidade das espécies e do surgimento delas pela seleção natural. Entretanto já na época desses autores a mutabilidade das espécies não era tanta novidade, sendo essa proposta por autores anteriores a eles. A grande relevância do trabalho de Darwin e Wallace se centra na robusta descrição do processo de seleção das espécies através da seleção natural e da grande sacada de que todos os organismos (eu repito com maior ênfase: todos) evoluíram do mesmo ancestral comum. Ou seja, todas as espécies estão interconectadas por meio de espécies ancestrais e, portanto, integram a mesma árvore evolutiva. Notem que este é o ponto das maiores discussões filosóficas que se sucederam ao “A origem das espécies” e aos trabalhos de Wallace. Este é o ponto chave que vai de encontro à visão criacionista do mundo: a ancestralidade de todos os seres vivos, a ideia de uma única árvore da vida e não uma escala crescente como a "scala naturae " propunha.

(Figura 2) A árvore de Darwin em seus cadernos de notas, com a poética inscrição "I think", "Eu penso"
Anteriormente a Darwin e Wallace outros autores já haviam comentado sobre aspectos da geração de novas raças ou variedades, dando a ideia de que as espécies não eram imutáveis, mas nenhuma dessas teorias chegou à compreensão mais profunda do processo evolutivo, e portanto os criacionistas jamais se encrencaram com elas. Entretanto a teoria de Darwin e Wallace não somente dizia que as espécies não eram imutáveis, como também propunha o surgimento de novas espécies, desaparecimento de espécies antigas e a interconexão de (ou conexão entre) todas as espécies (incluindo a humana) na mesma árvore de descendência (agora o homem é incorporado e deixa de ser uma criação especial). O Darwinismo também destruiu a ideia platônica de “tipo” (organismo que fixa o nome e a descrição de uma espécie) como o ideal da espécie enquanto que às variações intraespecíficas restaria o status de "cópias imperfeitas". Veremos isso com mais cuidado em uma futura postagem sobre o tipo e a transformação da taxonomia. Na visão darwinista, as variações fazem parte do processo de evolução das espécies e são imprescindíveis ao trabalho da seleção natural.
A ideia central de Darwin e Wallace é a filogenia. Os autores propõem a existência de uma filogenia de raiz única para todos os organismos, que os interconecta. Falar em ancestralidade de espécies e falar em filogenia é a mesma coisa.

(Figura 3) Única figura de "A origem das espécies" em sua primeira edição (1859) mostrando inter-relações entre espécies.
HISTÓRICO DAS ÁRVORES FILOGENÉTICAS
As representações diagramáticas de espécies ou clados, conhecidas atualmente como árvores filogenéticas, são razoavelmente antigas. Entretanto até 1950 as árvores filogenéticas eram utilizadas como diagramas ramificados que expressavam como os autores achavam que os táxons relacionavam-se em termos de ancestralidade (a ideia de ancestralidade e mudança das espécies não era tão absurda assim na época, como já comentamos). As árvores não eram acompanhadas de uma explicação sobre a escolha da utilização daqueles critérios. Ninguém se preocupava em averiguar a existência de homoplasias e em garantir que os critérios selecionados refletissem homologia, não havia preocupação com a polarização correta de séries de transformação, com a seleção satisfatória de grupos internos e grupos externos, com hipótese prévia de ancestralidade comum... Nada disso existia. Essas árvores refletiam a opinião intuitiva dos autores quanto à semelhança entre os táxons. Portanto, são pouquíssimo informativas e interpretá-las é um trabalho duro e, em certos aspectos, impossível. Não se pode precisar se em certos pontos o autor infere politomia (veja próxima postagem da série), quando sugere uma espécie como mais terminal ou mais basal, o que significa a espessura ou a distância dos ramos (se é que significam alguma coisa além de estética...), etc.
O primeiro diagrama representando relações entre seres vivos foi publicado em 1801 pelo botânico Augustin Augier. Lamarck publicou a primeira representação diagramática dos animais em 1809 em seu "Philosophie Zoologique". Em 1840 o geólogo americano Edward Hitchcock publicou a primeira árvore da vida baseada em dados paleontólogicos em seu "Elementary Geology". Ernest Haeckel construiu várias árvores filogenéticas após a publicação de "A origem das espécies".

(Figura 4) Diagrama de Hitchcock em "Elementary Geology"

(Figura 5) Árvore representativa da vida na Terra por Haeckel ("Monophyletischer Stambaum der Organismen") no livro 'Generelle Morphologie der Organismen' (1866) com os ramos Plantae, Protista e Animalia.
Nenhuma dessas representações apresentadas até agora são baseadas no método filogenético (que sequer existia) e possuem todos os problemas mencionados acima, são ditas árvores "pré-hennigianas". Com o aperfeiçoamento da filogenia, as árvores agora podem sistematizar e representar uma vasta gama de informações e tornar acessíveis detalhes da evolução dos grupos.
CONCEITOS
Para iniciar nosso estudo na interpretação das árvores temos de fazer algumas distinções conceituais:
A FILOGENIA é um objeto transtemporal - ou seja, cuja existência atravessa os tempos - existente na natureza que corresponde às relações entre espécies. Podemos compará-la à genealogia de uma família, a qual existe independente de alguém traça-la num diagrama ou não. O termo Filogenia também é usado para se definir o processo científico de se inferir uma filogenia (cujo melhor nome seria “inferência filogenética” ou “método filogenético”) ou até mesmo o diagrama usado para sua representação (o “diagrama filogenético”).
TÁXONS TERMINAIS são aqueles que são conectados a outros em uma Filogenia, mas que não se subdividem. Esses podem ser espécies recentes, fósseis, espécies extintas, grupos supra-específicos (gênero, ordem, família) de espécies recentes, extintas ou misto...
Chama-se DENDROGRAMA qualquer representação em forma de árvore que organiza fatores e variáveis em vários ramos do conhecimento. Em filogenia chama-se dendrograma qualquer diagrama ramificado que conecta espécies (Amorim, 2009). Atualmente também utiliza-se o termo “Árvores Filogenéticas” especificamente para os dendrogramas da Filogenia, apesar de alguns autores utilizarem “árvore filogenética” como sinônimo de Filograma.
Existem dois tipos básicos de Árvores Filogenéticas: os cladogramas e os filogramas.
Os CLADOGRAMAS (figura 6) são simplesmente uma topologia de relações entre os táxons terminais, ou seja, o comprimento de seus ramos não representa unidades de tempo ou mudanças decorridas. Os FILOGRAMAS se diferenciam nesse quesito, visto que seus ramos de diferentes tamanhos podem representar tanto as linhagens em relação ao tempo geológico, quanto o número de mudanças ocorridas entre elas ou o tempo gasto em sua divergência. O filograma que representa as linhagens no tempo geológico terá todos os ramos viventes (não extintos) terminando na mesma altura, pois esta representa o tempo atual, enquanto que os táxons extintos serão representados por um ramo que termina em determinada época geológica (figura 8). Os filogramas de tempo de divergência entre clados terão uma escala de tempo transcorrido entre as separações dos ramos (figura 7). Por fim, o filograma de quantidade de mudança (fig. 9) terá os ramos terminando em diferentes alturas representando a quantidade de modificações, portanto os ramos mais curtos representarão táxons que são mais semelhantes ao seus respectivos ancestrais.
Assim, podemos concluir que os filogramas possuem muito mais informação do que os cladogramas. Um modo fácil de checar à primeira vista se a árvore filogenética em questão é um cladograma ou um filograma é checar se os ramos diferem de tamanho entre si em relação a uma escala. O melhor é estar sempre atento às legendas das figuras e metodologia dos trabalhos.

(Figura 6). Na figura vemos exemplos de dendogramas. A, B e C nos fornecem a mesma informação, a diferença entre eles é estética. B é outro tipo de representação gráfica de A. Em C houve o alinhamento dos ramos terminais no topo por estética. Retirado de Lopes e Ho.

(Figura 7). Nessa representação há uma escala de tempo indicada pela linha (0,2 milhão de anos). O tamanho de cada ramo representa o tempo envolvido na diferenciação da espécie em questão. Assim interpretamos que a espécie A levou um pouco mais de 0.4 mi anos para se divergir do ancestral a'; que a'' levou menos de 0.2 mi anos para se divergir de a'; que B levou cerca de 0.6 mi anos para se divergir do ancestral a'' e por aí em diante. Modificado de Lopes e Ho.

(Figura 8). Filograma de ordens extintas e viventes de insetos em relação aos períodos geológicos e informações dos principais eventos de cada período.

(Figura 9). Analise a árvore acima. Essa foi retirada de um artigo científico publicado na revista Nature em 2010 por Regier e colaboradores sobre a evolução dos artrópodes. Segundo a legenda da figura, esse diagrama mostra as relações filogenéticas de 75 grupos de artrópodes (o grupo interno) e 5 grupos externos. Ela foi baseada numa análise de 62 genes nucleares e os ramos são proporcionais à quantidade de mudança na sequência desses genes, sendo que a barra da escala indica número de nucleotídeos modificados por sítio, 0.03 nucleotídeos. O que você pode interpretar sobre essa árvore?
Outro dendograma utilizado é chamado de CENÁRIO EVOLUTIVO, nesse a construção é mais complexa e você encontrará diversos tipos de informações como idade dos táxons, distribuição geográfica das espécies, grau de diferenciação entre os ramos, mudanças ambientais, entre outras (não quer dizer que um cenário evolutivo obrigatoriamente terá todas essas informações). Você poderá ter uma ideia de um cenário evolutivo de uma forma divertida e didática neste link do Smithsonian National Museum of Natural History sobre a evolução humana.
As árvores que somente expressam semelhanças fenotípicas sem supor filogenia do grupo são chamadas de fenogramas (figura 5). As primeiras árvores que apareceram quase sempre são simplesmente fenogramas.

(Figura 10). Exemplo de Fenograma com quociente de semelhança que indica somente a divergência de formas (morfologia) entre organismos e não propõe filogenia.
Além de tudo isso um dendograma simples e grosseiro pode ser usado por você somente para estudar rotineiramente e para visualizar melhor o conteúdo estudado, ou por mim para compartilhar contigo um pouco da ideia de filogenia como venho fazendo em todos os dendogramas toscos altamente simplificados que publico aqui. Lembre-se de não chamar isso de cladograma ou filograma...rs.
Todas as árvores mostradas até agora são enraízadas, isto é, possuem uma raíz, uma origem. Por isso consegue-se encontrar nessas árvores o ponto de início que é o ancestral mais antigo. Mas reparem nesta figura abaixo:

(Figura 11). Essa é uma árvore não enraizada das famílias de besouros (Coleoptera), ou seja, não há uma raiz e todos os ramos partem de um ponto central, veremos mais sobre sua utilização principalmente nas postagens sobre filogenia molecular. Essa árvore foi retirada do artigo de Caterino e colaboradores, publicado em 2011 na revista Zoologica Scripta.
A FILOGENIA É UMA HIPÓTESE
A inferência filogenética deve ser vista como uma hipótese. É muito fácil visualizar uma hipótese quando se tratam de trabalhos em ecologia, comportamento, fisiologia, genética e etc. Geralmente escreve-se essas hipóteses de trabalho em forma de uma frase bem simples que representa a chamada H’ (hipótese alternativa), que é contraposta a H0 (hipótese nula) da estatística. A ideia é simples. A estatística rejeita ou aceita a possibilidade de sua variação na amostra ser em função do acaso (a H0 é o acaso, a casualidade, os eventos randômicos, etc). Algumas vezes a hipótese de trabalho pode ser a própria H0 no caso de partir-se da ideia de que a variação na amostra é puramente uma variação casual sem influência de qualquer outro fator. Rejeitar a H0 JAMAIS implica na aceitação da H’. Nunca se aceitará a H’ num trabalho científico. Se a H0 for rejeitada, ou seja, se for constatado que existe um fator influenciando a variação da amostra que não a pura casualidade, pode-se propor discussões e teorias a respeito desse fator que a influencia, propostas que estarão ali previamente pensadas na sua H’. Mas as hipóteses não são aceitas, pelo contrário, sempre se tenta refutá-las. Quando uma hipótese se mostra sólida frente a diversas tentativas de refutação se diz que ela é “corroborada pela comunidade científica”.
Com a Filogenia e até mesmo a Taxonomia ocorre o mesmo. Geralmente os alunos de biologia tem dificuldade em enxergar qual seria a hipótese de uma inferência filogenética ou a hipótese de uma descrição de espécie. Pois bem, as hipóteses desses trabalhos são exatamente o resultado da inferência filogenética e a delimitação da espécie em si _ espécies são hipóteses que vão sendo testadas aos poucos e sofrendo modificações. Em essência é a mesma ideia de qualquer trabalho de ecologia, fisiologia, etc. Ou seja, existe uma hipótese inicial que no caso da Inferência Filogenética é a relação entre os grupos terminais que se supõe através dos estudos de homologias e etc. Ao escolher os grupos terminais (tanto o grupo externo quanto o interno), ao escolher os caracteres utilizados ou os genes, estaremos moldando a hipótese inicial. Assim ao final da inferência teremos uma hipótese mais robusta, a própria árvore filogenética, da filogenia do grupo. O trabalho de inferência filogenética é, portanto, um trabalho de refinamento de hipóteses e de construção de hipóteses robustas que sustentem outras hipóteses (pode-se criar em cima dessa hipótese de filogenia uma hipótese para a evolução de algum caractere específico, ou da dispersão geográfica do grupo, etc). Assim como trabalhos de ecologia propõem uma hipótese inicial, a qual é contraposta a uma hipótese nula e se refina em uma hipótese “conclusiva”, que por sua vez serve de base para hipóteses posteriores. Ambos os trabalhos _ assim como quase todo estudo científico_ são testados estatisticamente. Sim, a Filogenia também tem estatística, e muita, e veremos aos poucos aqui no blog.
Veja também: Filogenia Mastigada 5
E não deixem de visitar a série, e outros textos, no meu Blog pessoal BioSubverso.
-----------------------------------------------------------
texto por Ester Helena de Oliveira.
------------------------------------------------------------
Para Saber Mais
Amorim, Dalton de Sousa. Fundamentos de Sistemática Filogenética (1º edição), Editora Holos, 2002.
Site "Understanding Evolution"
Lopes & Ho. "Noções básicas de Sistemática Filogenética"
Livro: Amorim, Dalton de Sousa. Fundamentos de Sistemática Filogenética (1º edição), Editora Holos, 2002.
Literatura Citada:
Caterino et al. Basal Relationships of Coleoptera inferred from18S rDNA sequences. Zoologica Scripta, 31, 1, 2002. pp. 41-49.
Regier et al. Arthropod relationships revealed by phylogenomic analysis of nuclear protein-coding sequences. Letters to Nature, 2010.