Filosofia da biologia: Leitura obrigatória
Duas semanas atrás, passeando por uma livraria em um shopping de Florianópolis, notei em uma das estantes uma nova obra de filosofia (creio que era sobre filósofos modernos) publicada pela Artmed, o selo de livros técnicos e acadêmicos do Rio Grande do Sul. Entreguei o volume para o meu irmão (professor de direito e como eu muito interessado em filosofia) que me acompanhava que, prontamente, o abriu e procurou por mais informações em sua orelha (a do livro, claro). Ao invés de um resumo, típico das orelhas de outros livros, havia a lista de livros publicados e a publicar, estes últimos marcados com um asterisco. Entre estes vi de relance um título que me chamou a atenção, “Filosofia da Biologia”, organizado pelo professor da UnB, Paulo César Abrantes. Como o livro estava marcado com um asterisco, apesar de bastante empolgado, deixei de lado o acontecido, esperando encontrá-lo nas livrarias nos meses seguintes. Saímos da livraria e fomos para a casa de nossos pais.
No dia seguinte, desta vez perambulando pelo centro de Floripa, folheando os livros da estante de uma outra livraria (De um jeito ou de outro, acabo voltando a elas, principalmente àquelas que têm um bom expresso), para minha grande surpresa, encontro o livro anunciado na orelha do livro examinado no dia anterior. Estava lá ele, esperando que eu o examinasse. Apenas o plástico impedindo-me de folheá-lo e lê-lo.
Passei o livro pelo leitor de código de barras e vi que o preço era compatível com o meu apertado orçamento, o abri, li alguns trechos e verifiquei a lista de autores que contribuíram para o volume, muitos já bem conhecidos de leituras anteriores e que já vêm fazendo um grande trabalho ao discutir diversos aspectos da filosofia da biologia e biologia teórica em língua portuguesa, produzindo artigos e livros muito interessantes.
Nomes como o de Gustavo Caponi (UFSC), Diogo Meyer (USP), Karla Chediak (UERJ) e Ricardo Waizbort (Fiocruz) e Charbel El-Hani (UFBA/UEFS) - além do próprio organizador, P.C. Abrantes - já me indicaram que ali encontraria o trabalho de diversos intelectuais (biólogos e filósofos) de primeira linha. Além desses autores mais conhecidos, os demais pesquisadores, a maioria de universidades e institutos de pesquisa de países vizinhos da América do Sul (Sergio F. Martinez, Pablo Lorenzano, Favio Gonzáles, Natalia Pabón-Mora, Maximiliano Martinez Bohórquez, Eugenio Andrade, Estela Santili, Jorge Martínez-Contreras, Alejandro Rosas, juntamente com os brasileiros Cláudia Sepúlveda, Filipe Cavalcanti e Fábio Portela) tornam este volume ainda mais interessante e, portanto,uma leitura imperdível e que revela o panorama da filosofia da biologia na América Latina. O grupo Bogotá de Pensamento Evolucionista formado em um colóquio na Colômbia realizado em 2006 é o germe inciador deste projeto que acabou por agregar outros pesquisadores (Veja também o volume editado em 2007 Filosofía, darwinismo y evolución).
Este lançamento nos faz parabenizar a Artmed e o grupo A pela iniciativa e esperar por mais publicações desse gênero.
Paulo C. Abrantes é professor da UnB ligado ao depto. de filosofia e instituto de ciências biológicas e ex-professor e um dos mentores intelectuais do Eli (que inclusive está nos agradecimentos). Não podia deixar de mencionar.
Ao começar a ler o livro chamou-me a atenção a muito bem escrita, acessível e densa introdução do professor Abrantes que resume as contribuições do volume ao mesmo tempo que faz um apanhado, indispensável aos novatos, das principais questões da filosofia da biologia. Dado o amplo escopo e apresentação sucinta e elegante dos tópicos e das principais discussões sobre os temas filosoficamente e conceitualmente mais discutidos em ciências biológicas, a introdução do professor Abrantes é uma excelente iniciação ao tema, inclusive contextualizando a filosofia da biologia em relação a filosofia geral da ciência e do desenvolvimento histórico de sua problemática nas últimas décadas.
Em “Filosofia da biologia” fica clara a importância da evolução para as ciências biológicas e como esta funciona como elemento norteador de muitas das discussões metodológicas, epistemológicas, conceituais e metafísicas que permeiam as ciências da vida.
Este volume denota a maturidade das ciências biológicas, especialmente da biologia evolutiva como disciplina científica. Mais do que isso, demonstra que os brasileiros e sul-americanos, de modo mais geral, também têm contribuições importantes à área, algo imprescindível, já que as ciências necessitam, ao se desenvolverem, de cada vez mais reflexão conceitual e aprofundamento teórico. As reflexões sobre suas pressuposições, comprometimentos e implicações axiológicas, metodológicas, epistemológicas, éticas e metafísicas acabam se tornando inevitáveis. Esse olhar crítico é o que oferece de mais importante, a filosofia da Biologia.
Os temas tratados no livro são bastante variados, indo desde a existência (ou não) de leis em ciências biológicas, passando por discussões sobre a adequação dos modelos filosóficos de explicação em biologia evolutiva (nomológico-dedutivo, causal-funcional centrado em narrativas históricas etc), as diferenças entre causas próximas e últimas, os debates sobre o conceito de espécie, as mudanças entre o pensamento tipológico/essencialista e o populacional, as relações entre funcionalismo e estruturalismo em biologia e como encaixar a nova evo-devo nesta discussão, chegando até os modelos em etologia e evolução cultural humana. Portanto, os tópicos discutidos têm relevância à áreas como a antropologia e psicologia.
Um tema que parece permear todo o livro é a questão do pluralismo epistemológico e metodológico nas ciências biológicas. O tema do reducionismo vs pluralismo (e dos diversos tipos de redução e sua apropriação ou não) aparece em vários dos capítulos. Na introdução, o professor Abrantes, aponta para fato do reducionismo hoje ser visto mais como uma estratégia investigativa do que como um fim em si mesmo, uma obrigação de todo esquema teórico e campo científico que deveria ser invariavelmente buscado. Contudo, apesar do poder do reducionismo, concebido como uma estratégia heurística, não poder ser subestimado, visões mais sistêmicas e pluralistas, sobretudo em temas como os níveis e os alvos da seleção natural e nas discussões sobre adaptacionismo, acabam por exigir que avancemos, pelo menos em certas situações, para além dele. Um exemplo é o próprio conceito de função biológica empregado em estudos evolutivos, como abordado no artigo de Chediak que já aparece em seu livro homônimo da coleção “Filosofia Passo-a-passo”(CHEDIAK, K. Filosofia da biologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.).
O livro toca em diversas outras questões bastante atuais, como a importância da idéia de dupla herança (genes e cultura) na investigação da evolução da mente humana, a existência de sistemas multiplos de herança e o confronto entre as visões centradas nos genes ("genistas") e a teoria dos sistemas em desenvolvimento (TSD, voltando ao tópico do reducionismo vs pluralismo).
A gama de questões tratadas nesta obra pode ser melhor apreciada simplesmente lendo os 14 capítulos que o constituem:
Capítulo 1. Introdução: o que é filosofia da biologia? (P.C. Abrantes)
Capítulo 2. Reducionismo em biologia: uma tomografia da relação biologia sociedade (Sergio F. Martinez)
Capítulo 3. Leis e teorias em biologia (Pablo Lorenzano)
Capítulo 4. Função e explicações funcionais em biologia (Karla Chediak)
Capítulo 5. O problema da espécie 150 anos depois de A origem (Favio Gonzáles)
Capítulo 6. A classificação biológica: de espécies a genes (Natalia Pabón-Mora e Favio Gonzáles)
Capítulo 7. A contingência dos padrões de organização biológica: superando a dicotomia entre pensamento tipológico e populacional (Maximiliano Martinez Bohórquez e Eugenio Andrade)
Capítulo 8. Adaptacionismo (Cláudia Sepúlveda, Diogo Meyer e Charbel Ninõ El-Hani)
Capítulo 9. Níveis e unidades de seleção: o pluralismo e seus desafios filosóficos (Estela Santili)
Capítulo 10. Aproximação epistemológica à biologia evolutiva do desenvolvimento (Gustavo Caponi)
Capítulo 11. O modelo primatológico de cultura (Jorge Martínez-Contreras)
Capítulo 12.Genes, seleção natural e comportamento humano:a mente adaptada da psicologia evolucionista (Ricardo Waizbort e Filipe C. da Silva Porto)
Capítulo 13. Evolução humana: a teoria da dupla herança (P.C. Abrantes e Fábio Portela L. Almeida)
Capítulo 14. Ética evolucionista: o enfoque adaptacionista da cooperação humana (Alejandro Rosas)
O tempo ainda não me permitiu ler os demais capítulos e apreciá-los da forma que merecem, mas não posso deixar de recomendar enfaticamente este livro a todos aqueles realmente interessados em ciências biológicas, especialmente, em suas bases e implicações filosóficas. Biólogos, estudantes de biologia, deveriam ser obrigados a ler este livro em seus cursos de filosofia da ciência, assim como os filósofos e estudantes de filosofia que se interessam pelo tema.
Em posts futuros, pretendo continuar a discutir os tópicos expostos neste volume (e a visão de cada autor) que tenham relevância direta ou indireta ao estudo da biologia evolutiva, usando seus capítulos como guias, tentando, desta forma, fazer jus a essa iniciativa e ao importante trabalho de seus autores.
Por enquanto fica a recomendação desta mais do que necessária obra e a certeza que ela deverá estimular mais pessoas a interessar-se por esta área tão importante da fronteira entre as ciências biológicas e a investigação filosófica.
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Referências:
Abrantes, Paulo C. & Cols. Filosofia da Biologia (2011) Porto Alegre Editora Artmed 1º Edição ISBN : 8536324511 ISBN13 :9788536324517
Chediak, K. (2008) Filosofia da biologia. Rio de Janeiro: Zahar, EAN:9788537800546 ISBN: 978-85-378-0054-6
Rosas, Alejandro (ed.). Filosofía, Darwinismo y Evolución. Bogotá: Unibiblos, Universidad Nacional de Colombia, 2007. 346 p. Ideas y Valores, Sep./Dec. 2007, vol.56, no.135, p.115-119. ISSN 0120-0062.