Friday August 19, 2011
<a href="https://bioevolutiva.tumblr.com/" style="text-decoration:underline;">bioevolutiva</a>: Eu tenho umas dúvidas básicas: Por que homens tem mamilos?Por que muitas plantas ainda utilizam a rubisco?O gene da cor do cabelo influencia nos pelos do resto do corpo? e na textura?E qual a condição (genética ou outra qualquer) que a pessoa deve ter pra ser ruiva?Espero não ter forçado a barra, mas é por que eu não entendo mesmo. Abraços, Barreira de Coulomb
Agora respondendo a segunda pergunta sobre a enzima RuBisCO.
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A RuBisCO (Ribulose-1, 5-Bisfosfato Carboxilase-Oxigenase) é uma das enzimas mais importantes e mais abundantes em nosso planeta, catalizando uma das reações bioquímicas mais fundamentais, permitindo incorporar o carbono inorgânico presente na forma de CO2 em formas biodisponíveis orgânicas como açúcares e outras moléculas sintetizáveis a partir deles. Esta enzima, portanto, está na base da produção de biomassa dos ecossistemas e biomas, mas ao mesmo tempo é uma das mais ineficientes entre todas as enzimas. Enquanto algumas enzimas podem catalizar milhares de reações a cada segundo, a RuBisCO é muito mais lenta, fixando de 3 a 10 átomos de CO2, por molécula por segundo, sendo, portabto, o passo limitante do processo de fixação de carbono no chamado ciclo de Calvin. Outro problema é que a RuBisCO pode tanto fixar carbono como oxigênio, como o próprio nome sugere (Carboxilase-Oxigenase) ao transferir esses átomos para a molécula de ribulose-1,5-bisfosfato (RuBP). O centro ativo da enzima não distingue muito bem entre os dois substratos semelhantes (O = C = O e O = O) e as duas reações catalisadas pela mesma enzima opõem-se uma a outra, e como ambas moléculas, ligam-se ao mesmo centro ativo acabam funcionando como inibidores competitivos uma da outra. Então, como a RuBisCO liga-se tanto ao CO2 como ao O2, mesmo que a afinidade pelo CO2 seja 80 vezes maior do que pelo O2, em baixas concentrações de CO2 e altas concentrações de O2 - o que ocorre, especialmente, em circunstâncias em que o CO2 seja mais rapidamente retirado do sistema (altas temperaturas) ou menos disponível, como quando os estômatos estão fechados (por exemplo, para prevenir o estresse hídrico) – a afinidade, na prática, da RuBisCO pelo CO2 é bem menor sendo facilmente suplantada o resulta na chamada fotorrespiração. [Lembrando sempre que, além do comentado, enquanto as concentrações de O2 estão por volta de 21% as de CO2 estão abaixo de 1%].
A fotorrespiração é uma via de reações que não está acoplada a qualquer sistema de transferência de elétrons e, portanto, não gera ATP, mas faz uso de oxigênio. Esta via reduz a eficiência da fotossíntese, especialmente nas plantas C3 já que ao gerar fosfoglicerato (PGA) e, especialmente, fosfoglicolato (pois enquanto o PGA reentra no ciclo de Calvin e é simplesmente convertido novamente em RuBP), PPG, este, para ser reciclado, precisa mover-se dos cloroplastos para os peroxissomos, e posteriormente para as mitocôndria antes que os átomos possam retornar ao ciclo de Calvin, sofrendo várias reações neste percurso com um gasto substancial de ATP e NADPH, algumas das mesmas moléculas energéticas que são produto do processo de fotossíntese.
Desta maneira, a pergunta é por que, a despeito da limitação de sua ineficiência, o ciclo de Calvin e seu principal fator limitante, a RuBisCO (que leva ao desperdício da fotorrespiração) foram mantidos ao longo da evolução. Estudos da RuBisCO mostraram que durante a evolução das plantas a especificidade da enzima melhorou apenas por um fator de duas vezes quando comparou-se as enzimas de cianobactérias com as das plantas ditas C3 modernas, mostrando assim pouquíssimas diferenças, pelo menos, nesse quesito.
Uma das possibilidades para explicar este fato é que a fotorrespiração seja apenas uma espécie “fóssil metabólico”, uma relíquia de uma época em que a concentração de dióxido de carbono era muito superior à de oxigênio, sendo este último, na melhor das hipóteses, apenas um contaminante na atmosfera primitiva. Neste contexto o sítio ativo da RuBisCO teria evoluído em uma situação em que o oxigênio era raro e o dióxido de carbono mais abundante, portanto, em que a fotorrespiração não teria sido um problema.
A semelhança entre os arranjos atômicos das duas moléculas também pode ter dificultado a evolução de mecanismos de discriminação mais eficazes e o custo da fotorrespiração pode ter permanecido muito pequeno por bilhões de anos. Porém isso pode ter mudado em ambientes mais quentes, secos e populosos nos quais as plantas efetivamente reduziram o teor de dióxido de carbono atmosférico circundante e a competição tendo se intensificado. Contudo, como mudar o centro ativo era complicado, talvez demandando muitas mutações raras em um ordem específica além de outras modificações adicionais para compensar eventuais problemas secundários, os custos evolutivos, talvez, tenham se mantido proibitivos por muito tempo e “o acaso” não trouxe o que seria necessário para uma mudança substancial da RuBisCO.
As coisas são, entretanto, bem mais complicadas, mesmo por que existem outras enzimas capazes de fixar o CO2. No entanto, os sistemas metabólicos capazes de fixar o CO2 atmosférico em formas orgânicas de carbono como as utilizadas por algumas bactérias autotróficas e Archeas - como a via redutora da Acetil CoA, o ciclo do 3-hidroxipropionato e o ciclo de Krebs reverso - respondem apenas por uma pequena fração da produtividade primária em nosso planeta. O grosso do processo ainda depende da RuBisCO. Isso pode ter acontecido por mero acidente histórico ou por que RuBisCO é realmente o melhor que poderia ser produzido por uma processo como a evolução nas circunstâncias em questão, o que nos leva a outra estratégia evolutiva.
Além das chamadas plantas C3 que dependem apenas do ciclo de Calvin, existem as chamadas plantas C4 e as CAM (sigla que deriva da versão em inglês de “metabolismo ácido das crassuláceas”) que evoluíram formas de incrementar o processo de fixação de CO2, aumentando sua eficiência em pelo menos algumas condições, através de uma série de alterações em sua maioria indiretas, como a compartimentalização e isolamento da RuBisCO do O2 atmosférico, uso de enzima adicional como a PEPc (Fosfoenolpiruvato carboxilase) ou abrindo os estômatos apenas a noite, armazenando o carbono na forma de Malato e o liberando nas adjacências da RuBisCO, como fazem as CAM, como cactos, que assim conseguem reduzir a perda hídrica, mantendo os seus estômatos fechados durante o dia, conservando assim a água, porém impedindo a fotossíntese neste período.
As plantas C4 usam a PEPc, uma enzima que tem uma maior afinidade para CO2 em um primeiro momento, o que gera um composto intermediário de quatro carbono (daí C4) que é, por sua vez, transportado para o local em que ocorre o ciclo de Calvin, onde é então descarboxilado, o que libera o CO2 , aumentando assim a concentração deste gás local, o que compensa a baixa especificidade da RuBisCO.
As plantas C4 estão entre os cultivares mais importantes (além de muitas das economicamente mais impactantes ervas daninhas). Alguns exemplos são o milho, sorgo e painço, fontes de alimento muito importantes nos trópicos, e a cana de açúcar que tem uma importância comercial bem conhecida. Além disso, 14 das 18 piores ervas daninhas também encontram-se nessa categoria. O mais interessante é que apesar disso apenas 4% das espécies de plantas usam a via C4, entretanto, são responsáveis por 20% da produção primária líquida de todas as plantas.
O sistema C4 evolui a partir da via C3 de forma independente pelo menos 30 vezes nos últimos 25-35 milhões de anos, particularmente, no período em que a vegetação passou por uma grande mudança cerca de 8 milhões de anos atrás, que criou o bioma savana, quando as plantas C4 passaram a ocupar a posição dominante em ecossistemas sub-tropicais, em função de alterações no nível do CO2 atmosférico, de fatores de perturbação como o fogo e herbivoria, além de várias mudanças climatológicas.
Existem também evidências que a própria RuBisCO mesmo sendo uma enzima extremamente conservada e que manteve-se em um patamar de baixa eficiência durante bilhões de anos, também sofreu seleção natural positiva nas plantas C4. Estudos mostraram que o principal componente da RuBisCO, sua subunidade maior, codificada por uma única cópia de um gene (rbcL) localizado no genoma do cloroplasto, evoluiu sob intensa seleção positiva na maioria dos grupos de plantas terrestres. Este surpreendente fenômeno parece refletir a adaptação da RuBisCO à mudanças na concentração de CO2 e variações nas temperaturas ao longo de milhões de anos de evolução.
Em um estudo que utilizou-se de análises filogenéticas de um grande conjunto de dados provenientes de plantas monocotiledôneas C3 e C4, mostrou-se que o gene rbcL evoluiu sob seleção positiva em várias linhagens C4 de maneira independente, o que confirmaria a mudança nas pressões seletivas sobre RuBisCO a partir da evolução das estratégias de compartimentalização das plantas C4 e da incorporação da PEPc, culminando em um microambiente com alta concentração de CO2 predominante em tecidos fotossintéticos. Isso mostra que a história é ainda mais complicada do que se suspeitava.
O mesmo estudo revelou que oito códons da subunidade maior da RuBisCO (rbcL) evoluíram sob forte seleção positiva em clados de plantas C4. Os aminoácidos codificados por estes códons são responsáveis potencialmente pelas alterações cinéticas da RuBisCO nessas linhagens de plantas C4. Muitos cientistas, inclusive, a partir daí, esperaram poder - ao identificar e caracterizar tais mutações - desenvolver novos caminhos para a engenharia de variedades de RuBisCO mais eficientes e através da introgressão de plantas com estas características típicas de alta eficiência da RuBisCO das C4 e aumentar significativamente o rendimento das culturas plantas C3 em atmosferas enriquecidas de CO2 em consequência do aquecimento global. Isso é tremendamente importante por que tentativas de alterar a RuBisCO em laboratório uma mutação de cada vez e analisando seu efeito na afinidade em relação ao CO2 e O2 e velocidade de catálise in vitro, mostraram-se bastante frustrantes. Outra abordagem promissora, adotada pelo grupo de Ichiro Matsumura da Emory University, é utilizar os princípios de evolução por seleção natural para apressar o processo, ajudando-nos a triar formas mais eficientes da enzima, usando a chamada evolução direcionada. O procedimento basicamente envolve isolar o gene de interesse, mutá-lo aleatoriamente e, em seguida, inserir o gene mutante em bactérias, como a E. coli, quepossuem um outro gene mutante de uma enzima que converta o produto da RuBisCO em uma forma de energia utilizável pela bactéria em seu crescimento. Ao cultivar as diversas cepas com diferentes enzimas RuBisCO mutadas na presença da enzima auxiliadora e em meios com nutrientes limitados, fazendo com que as bactérias dependessem da RuBisCO e do CO2, passa a ser possível aos pesquisadores separar formas mais eficientes da enzima, simplesmente, ao escolher as bactérias que cresciam de maneira mais rápida nas condições mais restritivas usadas no processo.
Mas as coisas não terminam por aí, pois talvez a fotorrespiração não seja o vilão que muitos suspeitavam e tenha de fato um papel adaptativo importante, fazendo o melhor uso do pior. Sendo assim sua eliminação, com o eventual aumento de especificidade da enzima pelo CO2 ou aumento da taxa de fixação de carbono, poderia trazer consequências nefastas à planta, especialmente nas condições em que as plantas do tipo C3 abundam. Caso isso seja verdade é ainda mais importante compreendermos os detalhes do funcionamento das reações tanto de carboxilação como de oxigenação da RuBisCO e o contexto em que evoluíram.
Uma das evidências que apóia esta possibilidade é que apesar de uma parca melhora de apenas duas vezes na especificidade da RuBisCO ao CO2, em bilhões de anos de evolução (tendo em mente as plantas C3), apesar disso, estudos recentes revelaram variações importantes da relação entre as taxas máximas de oxigenação e de carboxilação (VO/VC). Usando estratégias de modelagem de dados in vivo dastrocas gasosas em plantas, foi possível mostrar que a reação de oxigenação da RuBisCO desempenha um papel regulador quando a energia fotoquímica excede a capacidade de carboxilação. O autor do trabalho (André, 2011) sugere que tais observações reforçam a hipótese da co-evolução planta-atmosfera e sustentam um papel mais complexo da RuBisCO, que não teria sido apenas selecionada para uma maior afinidade ao CO2, mas também para uma maior capacidade de oxigenação que, algo importante em certos contextos como durante o estresse hídrico e condições de alta irradiância, condições comuns vivenciadas pelas plantas em ambientes terrestres. Tais observações ajudam a explicar certas deficiências das plantas C4, a contínua supremacia de plantas perenes CAM e C3 em ambientes áridos (com exceção das gramíneas e semelhantes), além de permitir vislumbrar as eventuais limitações de produzir por engenharia genética plantas C3 com enzimas RuBisCO mais afins ao CO2, mas como capacidade de oxigenação reduzida. Além disso, um papel na absorção e fixação de nitrogênio foi levantado em alguns estudos mais recentes e também foi proposto que a fotorrespiração ao interferir com o balanço de oxirredução, teria um papel na modulação de vários sistemas de sinalização redox, inclusive envolvendo várias vias hormonais nas plantas.
Como vc pode ver a história evolutiva da fixação de CO2 e da RuBisCO é bastante complicada e ainda sabemos pouco sobre os detalhes dessa história, mas algumas lições gerais já podem ser antevistas, como a de que algumas coisas são relíquias de outros tempos, ou seja, são acidentes congelados e que, dado o tipo de organização resultante desse processo, talvez, simplesmente, tenha sido muito complicado alterar tal relíquia. A outra conclusão é que, em muitas situações, parecem existir caminhos evolutivos alternativos “mais fáceis” (de menor resistência, envolvendo menos mutações delétrias) através dos quais é possível superar as limitações, mas de forma indireta, sem envolver a substituição de toda a enzima (o que explicaria a convergência das C4), mesmo que tornem os caminhos da evolução de certas moléculas e bio-sistemas ainda mais tortuosos. Outra conclusão é que ao longo do tempo mesmo o desperdício e a ineficiência podem estar tão entranhados no sistema e mesmo adquirindo funções parciais, o que dificulta ainda mais certos remodelamentos futuros. Isso tudo evidencia a falta de planejamento e contingência histórica característica do processo de evolução, tornando-o pródigo em gerar gambiarras. :)
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Literatura recomendada:
Andre, Marcel J. Modelling 18O2 and 16O2 unidirectional fluxes in plants: II. Analysis of Rubisco evolution, Biosystems, Volume 103, Issue 2, Computational Models of Photosynthesis, February 2011, Pages 252-264, ISSN 0303-2647, DOI: 10.1016/j.biosystems.2010.10.003.
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Kapralov MV, Kubien DS, Andersson I, Filatov DA. Changes in Rubisco kinetics during the evolution of C4 photosynthesis in Flaveria (Asteraceae) are associated with positive selection on genes encoding the enzyme. Mol Biol Evol. 2011 Apr;28(4):1491-503. Epub 2010 Dec 16. PubMed PMID: 21172830.
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Abraços,
Rodrigo