Friday August 23, 2013
Anonymous: o que e especie
Existe um grande debate sobre o que seriam exatamente as espécies ou, mais precisamente, como coloca De Queiroz, sobre como diferenciá-las umas das outras. Nesta perspectiva, a principal controvérsia seria mais sobre os critérios diagnóstico das espécies (o que é particularmente importante quando lidamos com várias espécies ou populações próximas) e menos do que propriamente sobre o que seria uma espécie.
Então, embora haja um certo acordo sobre o fato das espécies constituírem-se em um tipo de grupos de indivíduos ligados por relações de ancestralidade e descendência e, de modo mais geral, por parentesco genético, e que são, ao mesmo tempo, distintas de outras destas linhagens, a maioria dos critérios usados pelos biólogos para distingui-las lança mão de alguma ou algumas propriedades contingentes que surgem durante o processo de separação e formação de novas linhagens. O conceito mais conhecido e disseminado envolve é o chamado ‘conceito biológico de espécie’ pelo qual espécies são encaradas como populações mendelianas intercruzantes isoladas reprodutivamente de outras populações, este conceito foi popularizado pelo biólogos Ernst Mayr. Estes critério, apesar de muito utilizado, apresenta, pelo menos, três problemas óbvios.
Em primeiro lugar, ele é difícil de aplicar, pois seriam sempre necessários estudos de hibridização e de fecundidade cruzada entre membros de duas populações próximas candidatas para julgarmos se elas seriam espécies distintas ou não.
O segundo problema é que o isolamento reprodutivo não é um processo simples e estanque mais pode ocorrer em um contínuo e envolver vários mecanismos pré e pós-copulatórios e ser bastante poroso, além de não ser diretamente equivalente às mudanças fenotípicas, genéticas, comportamentais e ecológicas [Alguns grupos de animais e plantas são bastante propensos a formarem híbridos, inclusive férteis, ao acasalarem-se/cruzarem com membros de linhagens relativamente distantes e bem diferenciadas, como é o caso dos canídeos.] que ocorrem entre as linhagens candidatas - apesar do isolamento reprodutivo poder ter um papel chave na estabilização de certas mudanças evolutivas.
Por fim, o conceito biológico de espécie ignora completamente as milhões de espécies que não se reproduzem sexuadamente, como é o caso de muitos microrganismos, embora estudos mais recentes tenham mostrado que o nível de recombinação e transferência horizontal de genes pode criar agregados de grupos de microrganismos mais ou menos isolados uns dos outros, a semelhança do que ocorrer com espécies de animais e plantas tipicamente sexuadas.
Além do conceito biológico de espécie existem vários outros, alguns bem próximos, como o 'conceito de coesão de espécie’ e o 'conceito de isolamento de espécie’, bem como outros que destacam mais a questão das relações evolutivas entre as linhagens, como o 'conceito cladístico de espécie’, o 'conceito filogenético de espécie’ e o 'conceito evolutivo de espécie’, além de outros que destacam mais os aspectos ecológicos das linhagens, como o 'conceito ecológico de espécie’, o 'conceito competitivo de espécie’ e o 'conceito de reconhecimento de espécie’, por fim existindo aqueles mais tradicionais baseados em uma visão essencialista das espécies, como o 'conceito tipológico de espécie’ e termos bem específicos usados em áreas como a paleontologia, como 'morfoespécie’ e 'cronoespécie’.
Apesar das discussões sobre o que seriam exatamente espécies e sobre a melhor forma de diferenciá-las ser tremendamente importante, na prática pode ocorrer um grande acordo entre os critérios, com alguns deles podendo ser incluídos como parte uns dos outros dando origem a uma certa hierarquia, exatamente, por causa do acordo tácito que eu havia mencionado sobre o que seriam as espécies de maneira geral. Esta situação é, na verdade, esperada ao pensarmos na natureza fluida e contingente das entidades biológicas e no fato de nossos sistemas de classificação e ordenação estanques não capturarem esta natureza dinâmica, acabando por serem bastante arbitrários e dependentes de nossos interesses e aparatos de investigação. Esta constatação nos leva a outras questões de natureza mais filosófica associadas com o status ontológico desta categoria taxonômica. Estas considerações levaram alguns filósofos e cientistas a defenderem que as espécies são unidades puramente pragmáticas de ordenação da diversidade biológica e não têm elas mesmas uma natureza metafísica muito bem definida, sendo nossa forma de lidar com a variabilidade e a dinâmica dos sistemas biológicos.
Ainda dentro desta perspectiva mais filosófica, sem entrar na questão do status ontológico das espécies, é possível considerarmos de maneira mais ampla um dos principais problemas com as definições, ou seja, exigir critérios necessários e suficientes. Uma alternativa a este tipo de postura e que também nos coloca diante de uma perspectiva mais pluralista sobre o que seriam espécies e a metáfora do jogo de Ludwig Wittgenstein, tendo como base a ideia de 'semelhança familiar’ em que apesar de grupos de entidades possam partilhar várias similaridades entre si, não há uma necessidade que todas elas partilhem todas estas semelhanças ao mesmo tempo [Veja o artigo de Pigliucci, por exemplo]. Estas duas últimas posições levam alguns cientistas a advogarem uma posição pluralista e bem pragmática sobre o que seriam espécies que acomodaria a utilização de diversos critérios de acordo com os grupos estudados e as necessidades dos cientistas. [Dê uma olhadinha também nesta resposta de nosso antigo formspring]
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Literatura Recomendada:
Ereshefsky, Marc, “Species”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy in Zalta, Edward N. (ed.), Spring 2010 Edition.
De Queiroz K. Species concepts and species delimitation. Syst Biol. Dec;56(6):879-86. PubMed PMID: 18027281.
De Queiroz K. Different species problems and their resolution. Bioessays. 2005 Dec;27(12):1263-9. PubMed PMID: 16299765.
Zimmer, Carl (2011) O que é uma espécie? scientific American Brasil edição 111 - Agosto 2011 [reimpressão do artigo de junho de 2008 – PDF] [tradução do original: Zimmer, Carl What Is a Species? May 19, 2008 Scientific American Magazine, disponível;, acessado em 04/04/2011.]
Pigliucci M. Species as family resemblance concepts: the (dis-)solution of the species problem? Bioessays. 2003 Jun;25(6):596-602. PubMed PMID: 12766949.
Grande abraço,
Rodrigo
