Friday August 24, 2012
Anonymous: Por que o cruzamento entre humanos que tem grau de parentesco próximo pode resultar em anomalias e em alguns outros animais o cruzamento entre irmãos, por exemplo, pode ocorrer normalmente?
Esta percepção talvez não seja muito precisa, pois em ambos os casos podem ser gerados descendentes normais como resultado de cruzamentos consanguíneos e em geral é isso o que acontece, mesmo quando o cruzamento é entre parentes bem próximos. Ainda assim é verdade que a proporção das vezes que os cruzamentos dão origem a prole ‘defeituosa’ pode variar entre espécies, como veremos mais ao final da resposta.
O problema da real da consanguinidade é que ela pode aumentar muito as chances de doenças genéticas raras recessivas, isto é, que para serem expressas necessitam que o portador possua o mesmo tipo de alelo nos dois cromossomos (i.e. homozigoto) e isso é mais provável em um cruzamento entre parentes. Mas isso acontece por causa de um fato muito simples que é valido para todas as espécies diploides e são especialmente pertinentes para as características mendelianas, ou seja, que dependem de um único gene em um único locus que possui duas cópias alélicas funcionalmente idênticas. Isso tem relação com a independência ou dependência as probabilidades de duas pessoas diferentes possuírem cada uma, o mesmo tipo de alelo causador de uma condição ou não. Em um cruzamento normal entre indivíduos não-aparentados os dois alelos vem um de cada um dos pais e eles tem origens virtualmente independentes, e como para gerarem um filho afetado é preciso que ambos tenham pelo menos uma cópia do alelo em questão, a probabilidade na população em geral de que estes indivíduos se encontrem, especialmente se a doença for rara, será sempre muito pequena, por que na maior parte das vezes dependerá de dois eventos mutação (‘alozigose’) independentes, um em cada linhagem, ou seja, um na linhagem ancestral do pai e o outro na linhagem ancestral da mãe do indivíduos afetado.
Como quando multiplicamos as probabilidades de dois eventos improváveis e independentes raros, temos um evento mais improvável ainda, fica clara a questão. Porém, por motivos óbvios, não é isso que ocorre no caso do cruzamentos entre parentes próximos. Neste caso os alelos defeituosos que estão nos gametas que vão juntar-se para formar o genótipo específico da prole afetada, ao invés de terem se originado de dois eventos separados - sendo apenas idênticos por causa de seus efeitos (‘idênticos pelo estado’) como é o caso dos cruzamentos entre indivíduos não-aparentados - eles podem também originarem-se de um único indivíduo ancestral, como um avô de ambos os pais, que fosse heterozigoto para o alelo raro e que em homozigose desencadearia a doença. Então, o que acontece é que na realidade os dois alelos de ambos os pais e que resultaram na prole afetada homozigota, no fim das contas, são cópias descendentes do mesmo alelo (são ‘idênticos por herança’, no jargão técnico) herdado do ancestral em comum próximo de ambos, fenômeno chamado de ‘autozigose’. Isto é, a consanguinidade torna mais provável que alelos raros se encontrem em um zigoto por que no final das contas estes alelos não vieram de um estoque aleatório de alelos, originado de forma virtualmente independente, mas vieram da mesma pessoa e por assim dizer podem ser considerados o mesmo alelo. Só foi preciso um evento mutacional para gerá-lo e a proximidade da descendência é que tornou possível que ele se encontrasse em homozigose.
Um outro ponto importante é que as doenças deste tipo (genéticas recessivas) serão proporcionalmente mais frequentes em cruzamentos consanguíneos tanto quanto os alelos em questão forem mais raros, pois neste caso as chances do encontro destes alelos que não são idênticos por descendência, através de cruzamentos normais - isto é, entre indivíduos não aparentados - é muito menor. Caso contrário, isto é, se o alelo for comum na população, a chance relativa de que a doença em questão surja em casamentos consanguíneos, em relação a chance que ela surja como consequência de casamentos entre dois indivíduos aleatórios do resto da população, será em média apenas um pouquinho mais alta, e isso também diminuíra com a distância entre os parentes que estão cruzando. Na figura acima retirada do artigo Bittles e Black [PNAS January 26, 2010 vol. 107 doi: 10.1073/pnas.0906079106] de está a distribuição global de casamentos entre casais aparentados como primos de segundo grau ou mais próximos (F ≥ 0,0156).
Dito isso, entretanto, existe um outro fator que poderia explicar por que aparentemente nossa espécie pode ser (o que eu não tenho tanta certeza assim) tão mais sensível ao risco dos cruzamentos consanguíneos do que outras de animais domésticos, por exemplo. Caso nossa espécie tenha uma quantidade muito maior de variabilidade genética rara desvantajosa, especialmente se ela estiver associada a doenças mendelianas recessivas, então, realmente os efeitos do endocruzamento seriam piores em nós, por que como já explicado quando mais genes recessivos desvantajosos raros pior o problema dos cruzamentos consanguíneos em comparação aos cruzamentos aleatórios.
Agora, a longo prazo e de um ponto de vista evolutivo, a consanguinidade pode levar a diminuição da variabilidade genética das populações. A chamada endogamia pode fragilizar as espécies em relação a mudanças ambientais já que ela produz um aumento generalizado da homozigose em todos os loci, o que é muito ruim caso novas pressões seletivas surjam já que não haverá muita variabilidade para responder a elas ao longo das gerações, limitando as perspectivas de evolução adaptativa.
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Literatura Recomendada:
Hartl, D. L. Princípio de Genética de Populações. Funpec. Ribeirão Preto, 2008. 217 p.
Bittles AH, Black ML. Evolution in health and medicine Sacklercolloquium:Consanguinity, human evolution, and complex diseases. Proc Natl Acad Sci U S A.2010 Jan 26;107 Suppl 1:1779-86. Epub 2009 Sep 23. Review. PubMed PMID:19805052;PubMed Central PMCID: PMC2868287. [Link]
Grande abraço,
Rodrigo