Friday February 03, 2012
Anonymous: O que os antropólogos evolucionistas querem dizer quando dizem que a Religião é um "subproduto" da Evolução?
Parece ser consenso atualmente que existem certas predisposições psicológicas humanas que estão bastante entranhadas na arquitetura de nossos sistemas sensoriais e cognitivos que nos tornam mais suscetíveis à religiosidade, tais como a busca por transcendência pessoal e, principalmente, certa tendenciosidade em concluir pela presença de agentes conscientes por trás de certos eventos, mesmo quando nenhum estaria presente, e que estaria na base da ideia de causação sobrenatural. Porém, estas tendenciosidades não teriam evoluídos “para a” religiosidade, ou seja, não teria sido a religiosidade que teria conferido vantagens aos portadores dessas características. Assim como é a capacidade de corte e mastigação de nossos dentes um produto da evolução por causa de seu óbvio impacto na nossa alimentação, e não sua coloração branca, estes pesquisadores argumentam que a tendência dos seres humanos de formarem religiões e crerem no sobrenatural seria análoga a coloração dos dentes, isto é um produto secundário que originalmente não era funcionalmente importante, mas que mais tarde acabou ganhando um importante papel cultural, como atualmente dentes brancos são sinal de cuidado e higiene.
De maneira análoga, estes vieses cognitivos e os substratos neurológicos que lhes dão base seriam produtos diretos da evolução por que trariam vantagens aos seus portadores independentes da religiosidade. Assim, mesmo um mecanismo que gera falsos positivos pode ser melhor que uma que às vezes não identifique ameaças potenciais de origem animal ou humana (i.e. que envolvem intencionalidade). Por isso concluir que existe um predador ou um inimigo a espreita, sempre que fosse ouvido um barulho ou fosse visto um agalho mexendo, é melhor que ignorar tais “sinais” de intencionalidade, mesmo que na maioria das vezes fossem alarmes falsos.
Portanto, nesta perspectiva, as características humanas associadas as crenças e as práticas religiosas, devem ser entendidas não como sendo elas mesmas funcionais, mas como tendo sido produzidas por mecanismos cognitivos humanos que são, estes sim, funcionais fora do contexto da religião e que, ao terem um impacto positivo em termos de reprodução e sobrevivência, por causa dessas outras funções é que foram selecionados em nossos ancestrais. Entre esses diversos sistemas, módulos ou construtos mentais enviesados, estariam “o dispositivo de detecção de agentes hiperativo” e “os conceitos minimamente contra-intuitivos”, apenas para citar dois exemplos dos mais discutidos na literatura [veja o verbete da wiki para maiores detalhes] que mais tarde teriam nos inclinado na direção de criar religiões.
Essas tendenciosidades a medida que forma surgindo foram intensificadas pela evolução de capacidades outras capacidades mentais, ditas metacognitivas, como autoconsciência, a teoria da mente, a consciência de futuro e a capacidade de abstrair nossos próprios sentimentos e analisá-los, que são extremamente úteis do ponto de vista da sobrevivência dos indivíduos em ambientes em constante modificação - e em que as relações sociais são mais complexas -, mas podem também, por outro lado, nos fazer perceber a nós mesmos como (ou desejar que fossemos) algo mais do que nossos corpos mortais. Assim, mesmo que não houvessem pressões seletivas específicas e diretas para a religiosidade, essas tendenciosidades sensoriais e cognitivas e nosso comportamento gregário, nos predisporiam a aceitar a existência de uma realidade transcendente, povoada por agentes intencionais invisíveis e inefáveis - relativamente antropomórficos, mas mais abstratos - como anjos, demônios e deuses, além de buscar um propósito maior. Isso, conjuntamente com outras questões socioculturais e políticas, tornariam o surgimento das religiões muito provável, não como resultado direto do processo evolutivo, mas como um subproduto de diversas outras faculdades mentais, elas sim produtos diretos da evolução biológica de nossos cérebros, que, conjuntamente a um processo de evolução cultural de nossas sociedades, resultaria nas religiões, como as conhecemos.
Essa distinção é importante pois outros antropólogos e psicólogos evolutivos postulam que as religiões, podem ter sido elas mesmas resultados diretos da evolução biológica por seleção natural a partir de seu efeito na coesão grupal, por exemplo. Desta forma ao invés de subprodutos, elas seriam elas mesmas (na realidade nossa propensão em associarmo-nos em religiões e a pensar em transcendência e preferir explicações sobrenaturalistas) adaptações que teriam sido úteis aos nossos ancestrais ao aumentar seu sucesso reprodutivo e sobrevivência.
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Literatura recomendada:
Barrett JL. Exploring the natural foundations of religion. Trends Cogn Sci. 2000 Jan;4(1):29-34. PubMed PMID: 10637620.
Boyer, P Why Is Religion Natural? Skeptical Inquirer Volume 28.2, March/April 2004
Boyer, P. 2001. Religion Explained: Evolutionary Origins of Religious Thought. New York: Basic Books, 403.
Boyer P. Religious thought and behaviour as by-products of brain function. Trends Cogn Sci. 2003 Mar;7(3):119-124. PubMed PMID: 12639693.
Pyysiäinen I, Hauser M. The origins of religion: evolved adaptation or by-product? Trends Cogn Sci. 2010 Mar;14(3):104-9. Epub 2010 Feb 9. PubMed PMID:20149715.
Gontijo, Daniel e Rabelo, André [18 de setembro de 2011] Ciência Cognitiva da Religião Bule Voador; Acessado em 24 de outubro de 2011.
Likerman, Alex [29 de maio de 2011] A Neurologia das Experiências de Quase Morte Ceticismo Aberto [Publicado originalmente em Happiness in this World;
Traduzido por colaboração de Rodrigo Véras e André Rabelo; Original aqui] Acessado em 24 de outubro de 2011Hood, Bruce M. Supersentido (2010) ed Novo Conceito ISBN: 978-85-63219-05-3.
Pigliucci M. When Science Studies Religion: Six Philosophy Lessons for Science Classes. Science & Education. 2011 Apr;p. 1-19.
Grande abraço,
Rodrigo