Friday July 08, 2011
Anonymous: Lamarck estava certo. Da para dizer isso diante das descobertas da epigr. ética?
Em relação ao que exatamente? É bom sempre lembrar que a herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso não é uma ideia original de Lamarck, apenas um apêndice de sua teoria transformista. Era parte do senso comum de sua época e foi defendida mesmo por Darwin que inclusive propôs uma teoria hereditária que a incorporava e explicava, a pangênese, que se mostrou incorreta.
Para Lamarck, a evolução se dava a partir de um processo linear de mudança que envolvia uma tendência inerente ao aumento de complexidade por parte dos organismos, quase como um impulso intencional por parte dos mesmos. E era a isso que Darwin se opunha, não a herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso de partes do corpo e coisas do tipo.
A confusão e a equiparação da herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso e Lamarckismo se deu provavelmente após a cristalização do neo-darwinismo (em função dos trabalhos de Weisman sobre a “segregação do germoplasma”) e do surgimento, no final do século XIX, de escolas de pensamento evolucionista como a ortogênese e especialmente o neo-lamarckismo americano que rivalizavam com neo-darwinismo.
Outro ponto fundamental é que a barreira de Weisman (entre soma e germe, ou seja, tecidos somáticos e gaméticos) é notoriamente “porosa” em várias espécies multicelulares como as plantas e outras capazes de se reproduzir por brotamento, por exemplo. Além disso, é completamente inexistente em seres unicelulares. A herança de mudanças induzidas de padrões citoplasmáticos por ciliados (como o paramécio) sem alterações no material genético é bem conhecida, apenas para citar um exemplo notório.
O que tem ocorrido nas últimas décadas é que os estudos em fenômenos epigenéticos transgeracionais - por exemplo, envolvendo a herança de epialelos (estados de ativação e inativação de alelos) e o fato de modificações nesses padrões poderem ser induzidas por alterações ambientais (como dieta) especialmente durante a fase pré-natal em animais - mostram que mesmo em animais está barreira não é completamente invulnerável. Esses fenômenos se dão em geral através de mudanças químicas que ocorrem sobre as sequências de DNA (ou do empacotamento da cromatina em certas regiões dos genomas) que afetam todo o individuo, afetando os tecidos gaméticos, podendo, assim, em algumas circunstancias serem transferidas a descendências que poderá herdar o padrão fenotípico associado aquele padrão.
Tudo em relação a esta questão, entretanto, ainda é muito especulativo, pois não há ainda mecanismos que transduzam diretamente uma real vantagem adaptativa (ex: fisiológica) adquirida, por exemplo, por exercício seja passada preferencialmente do que qualquer outra característica não-adaptativa que tenha também uma base epigenética passível de chegar as próximas gerações. A assimilação genética, o efeito Baldwin e, principalmente, a cultura são o que mais se aproxima disso. No caso do efeito Baldwin e da assimilação genética, ambos fenômenos dependem da seleção natural. Apenas permitem que a plasticidade fenotípica possa - ao originar-se primeiro - definir o novo contexto seletivo, assim tornando mais vantajosos certas características genetica ou epigeneticamente “codificadas”.
No entanto, a relevância desses processos epigenéticos para a evolução como um todo ao enviesá-la parecem ser também bastante interessantes, mas ainda assim, o fato principal é que apesar do fenômeno de herança epigenética transgeracional ser genuíno não compreendemos bem qual o seu papel na evolução.
Discutimos essas questões em respostas do formspring (aqui e aqui) onde são dadas algumas referências também.
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Literatura recomendada:
Vieira, Eli e Tidon, Rosana A bicentenária filosofia zoológica de Lamarck. Ciência Hoje , p. 70, nº 265.
Ghiselin, Michael T. The Imaginary Lamarck:A Look at Bogus “History” in Schoolbooks The Textbook Letter, September-October 1994
Jablonka, Eva e Lamb, Marion J. (Tradução Claudio Angelo) Evolução em Quatro Dimensões - DNA, comportamento e a história da vida (2010) Companhia das Letras ISBN 9788535915907
Abraços,
Rodrigo