Friday June 01, 2012
Anonymous: Afinal, o primeiro ser vivo foi autótrofo ou heterótrofo?

Não sabemos e possivelmente jamais saberemos disso com um nível razoável de confiança, uma vez que evidências desses primeiros sistemas vivos devem ter sido muito tênues e, há muito, já podem ter sido destruídas, e encontrá-las, portanto, é uma tarefa muito complicada. Pior ainda são as etapas pré-bióticas que os cientistas acreditam terem antecedido a emergência desses primeiros seres vivos. Estas devido sua própria natureza seriam ainda mais difíceis de encontrar.
Os investigadores que lidam com estas questões estudam as possíveis ‘bioassinaturas’ (marcas de atividade biológica deixadas na composição química de rochas mais antigas) desses eventos, ou pelo menos de outros mais tardios, além de tentarem, através do estudo das biotas modernas, extrair o que há de mais comum e primitivo para ter uma ideia do ancestral ou dos ancestrais comuns mais remotos que podemos reconstituir.
Alguns estudos recentes, bastante complexos, envolvendo amostras de biomoléculas obtidas de vários grupos de seres vivos que cumprem papéis biológicos fundamentais e amplos, como o desenvolvido por Douglas Theobald, indicam que a origem única para os seres vivos é de longe a hipótese mais provável, baseando-se em vários critérios de avaliação de modelos[1,2]. Assim, parece que todos os organismos existentes atualmente (conhecidos), realmente, teriam um único ancestral comum, que, talvez, tenha existido algo em torno de 4 bilhões de anos atrás. Contudo, mesmo esta conclusão provisória não quer dizer que a vida tenha começado com este ancestral e nem que não possa ter tido mais de uma origem, com apenas uma das linhagens chegando até hoje em dia que representaria a biota atual. Além do mais, a transferência horizontal de genes e a endossimbiose tendem a deixar as coisas mais complicadas, reticulando a base da ‘árvore da vida’.

Portanto, o que podemos fazer é testar e comparar cenários compatíveis com as evidências biológicas e geológicas disponíveis e com as leis da física e química, tentando reproduzir as condições que acreditamos terem estado presentes no passado remoto de nosso planeta e que seriam capazes de dar origem as biomoléculas e/ou sistemas químicos similares aos encontrados atualmente nos seres vivos, especialmente os mais conservados que denotariam uma origem mais antigas, respectivamente, constituindo-se nas abordagens da ‘base para cima’ e do ‘topo para baixo’. Ainda que as discussões tenham mudado de foco, de certa forma, os dois principais cenários continuam sendo o da origem ‘heterotrófica’ e o da ‘autotrófica’. Isto é, o primeiro em que a vida teria começado como um sistema simples, valendo-se de um ambiente quimicamente mais complexo, remontando as propostas de J. B. S. Haldane; e o segundo cenário envolvendo o surgimento precoce de sistemas autossustentados calcados na utilização de moléculas mais simples disponíveis, como o proposto por Oparin e mais recentemente reavivado por Wächtershäuser[3, 4].

Esta controvérsia tem fortes paralelos com os debates mais em voga atualmente que polarizam a comunidade de investigadores da área de origem da vida entre os que apoiam o cenário de ‘replicadores primeiros’ (como o finado Leslie Orgel, além de Jack Szostak, Eors Szathmárye muitos outros), em que polímeros autoreplicantes (análogo ao cenário heterotrófico que depende de uma química pré-biótica mais complexa) que não dependeriam de enzimas (veja por exemplo a hipótese do ‘mundo do RNA’); e um segundo cenário cujos defensores (como Wächtershäuser, Horowitz, Russel, Shapiro etc.) apostam na emergência do ‘metabolismo primeiro’, isto é, sistemas de reações químicas autossustentadas que se dariam em condições geoquímicas particulares e ambientes geofísicos específicos (como fumarolas abissais), dando origem primeiro a um núcleo protometabólico de reações que se manteriam a partir das propriedades auto-organizadas dos sistemas desses reações químicas cruzadas[3, 4].

Parte do problema com este debates é que ele transcende a questão das evidências, e depende em vários aspectos da própria definição de ‘vida’ ou de ‘seres vivos’. Como não é postulado por nenhum cientista em sã consciência que os primeiros seres vivos tenham surgido, de uma hora para outra, completamente ‘prontos’ (isto é, com membranas, DNA, RNA e proteínas, a semelhança das células atuais) é mais do que natural que as diversas etapas deste processo – que se iniciaram com sistemas químicos primitivos, passando por sistemas autoreplicantes e/ou autocatalíticos, chegando, então, a sistemas envoltos por membranas e capazes de replicação limitada, para só daí, surgirem os primeiros sistemas protocelulares, e, mais adiante, sistemas celulares, mas que, ainda assim, eram mais simples que os mais simples procariontes hoje existentes - não envolva um ponto de transição claro. Desta maneira espera-se que o ponto de corte, da transição entre o ‘não-vivo’ e o ‘vivo’, seja bastante arbitrário, dependendo da definição adotada.

Com isso em mente, fica claro que para a maioria dos defensores dos modelos ‘replicado primeiro’ (e de certa forma para os defensores da hipótese heterotrófica, portanto), a hereditariedade e a capacidade de evoluir Darwinianamente é o que caracteriza um ser vivo; enquanto para os defensores do ‘metabolismo primeiro’ (e da autotrofía como fase inicial dos sistemas vivos) é a capacidade de ‘ciclar’ moléculas de maneira autônoma, e espaçotemporalmente organizada, que caracterizaria os seres vivos. Outra possibilidade, entretanto, é que apenas quando ambos os processos ou dinâmicas estejam funcionando juntos é que passemos a considerar um sistema como vivo, como propuseram Ruiz-Mirazo, Peretó e Moreno [4, 5], ao definir ‘vida’ como dependendo da ‘autonomia e da capacidade de evolução em aberto’. Com ‘autonomia’ referindo-se a capacidade de utilização da energia e matéria do meio ambiente para sua ‘autoconstrução’ (i.e. sintetizar seus próprios componentes e manter seus próprios processos moleculares), permitindo com que o sistema construa uma identidade autônoma, separada do ambiente em que está inserido, característica que está na base da ideia de autopoiese, além da relação entre o ser vivo e o seu ambiente e seu histórico de modificações mútuas; e o termo “evolução em aberto” apontando para capacidade que os seres vivos têm para explorar novas funções e relações com o ambiente (incluindo os outros seres vivos) e, assim, divergirem e adaptarem-se às diversas situações de uma forma quase ilimitada ao longo das gerações[5].
De qualquer maneira, apesar dos muitos avanços e da profissionalização da comunidade de pesquisadores sobre origem da vida, com muitas hipótese e modelos sendo propostos e testados, ainda sabemos muito pouco sobre a questão e estamos longe de uma resposta consensual, ainda que vários caminhos de investigação promissores tenham sido abertos e estejam dando frutos bastante importantes.
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Literatura Recomendada:
Theobald DL. A formal test of the theory of universal common ancestry. Nature. 2010 May 13;465(7295):219-22. PubMed PMID: 20463738.
Theobald DL. On universal common ancestry, sequence similarity, and phylogenetic structure: the sins of P-values and the virtues of Bayesian evidence. Biol Direct. 2011 Nov 24;6(1):60. PubMed PMID: 22114984; PubMed Central PMCID: PMC3314578.
Kauffman S.A. Approaches to the Origin of Life on Earth. Life. 2011; 1(1):34-48.
Peretó J. Controversies on the origin of life. Int Microbiol. 2005 Mar;8(1):23-31. Review. PubMed PMID: 15906258.
Ruiz-Mirazo K, Peretó J, Moreno A. A universal definition of life: autonomy and open-ended evolution. Orig Life Evol Biosph. 2004 Jun;34(3):323-46. Erratum in: Orig Life Evol Biosph. 2004 Aug;34(4):439. PubMed PMID: 15068038.
Grande abraço,
Rodrigo
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Figuras:
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