Friday June 17, 2011
Anonymous: Olá! Gostaria muito que vocês comentassem essa entrevista com a Lynn Margulis http://bit.ly/k3fhN4 É díficil dizer que uma mulher com a importância que ela tem dentro da biologia viajou! Mas acho que ela viajou!
Não é tão difícil assim dizer isso, sobretudo quando alguém faz o tipo de declarações que Lynn Margulis proferiu. As ciências têm um caráter iconoclástico e impessoal ainda que sejam levadas adiante pelo trabalho de indivíduos, mas estes indivíduos cooperam e se policiam mutuamente. É isso que garante a objetividade como importante ideal norteador. Poder criticar figuras de “autoridade” é um ingrediente importantíssimo desse sistema de contínua crítica do qual dependem as ciências. A notoriedade acadêmica de Margulis e claro direito que ela tem de aprofundar-se na investigação de suas hipóteses e modelos por mais especulativos que sejam, não deve a imunizá-la das críticas por mais admirável que tenham sido suas contribuições científicas passadas. Cientistas são seres humanos e falam besteiras como poucos, principalmente quando saem de suas zonas de especialidade e especialmente em períodos de suas vidas quando já adquiriram certa fama e estabilidade. James Watson não nos deixa esquecer.
Vejo dois problemas principais na crítica de Margulis, o primeiro é que ela parece ter uma certa obsessão com suas próprias ideias. Embora a teoria da origem de plastídeos e mitocôndrias por endossimbiose esteja firmemente estabelecida e a investigação da origem de outras organelas e estruturas eucarióticas se beneficie muito de hipóteses análogas, muitas das mais recentes ideias de Margulis não têm muito apoio empírico. O segundo problema é que os ataques que ela faz a biologia evolutiva, seguem o mesmo tipo de lógica distorcida dos criacionistas (inclusive ao usar a alcunha de “neo-darwinismo”, um velho expediente criacionista). Os ataques a suposta ortodoxia na realidade parecem ser direcionados a um espantalho, quem sabe, apenas um pouco mais parecido com o que podemos encontrar em obras de divulgação científica de cientistas como Dawkins que realmente concentram-se na evolução adaptativa e quase que exclusivamente no papel da seleção natural. Contudo a biologia evolutiva moderna e isso inclui a genética de populações e genômica comparativa adotam uma perspectiva bastante mais abrangente para a evolução biológica.
A seleção natural é apenas um dos muitos processos evolutivos investigados pelos biólogos evolutivos. Desde a síntese moderna nos anos 40 outros fatores vem sendo estudados com muita atenção. Alguns exemplos são o fluxo gênico, a recombinação, os efeitos estocásticos da deriva genética (especialmente em populações pequenas) e, claro, as mutações. Neste último caso vários mecanismos mutacionais - como ação de elementos genéticos móveis, deslise da polimerase, crossing over desigual - e tipos específicos de mutação como as duplicações de genes e a conversão gênica enviesada (além das mais tradicionais mutações pontuais, inserções e deleções) vem ganhando bastante destaque e vários modelos vem as incorporando como parte dos elementos essenciais para a evolução de características complexas.
Os detalhes demográficos e de estruturação das populações tem levado a modelos cada mais podersosos, bem como a incorporação de regimes de seleção dependentes de frequência e/ou agindo em múltiplos níveis. A dinâmica, estabilidade e robustez das redes de genes e seus produtos que agem durante o desenvolvimento e são modificadas durante a evolução são outro alvo de intensa investigação. Porém, talvez o fato mais importante é que mesmo no caso de um grande evento de simbiogênese esses processos e mecanismos moleculares recém descritos provavelmente estarão envolvidos e ajudarão a definir se a simbiose será o não bem sucedida. As críticas que Margulis faz a genética evolutiva, portanto, são particularmente difíceis de engolir. Mas talvez o que pior ela faça é envolver o nome de uma das grandes figuras desta área, Richard Lewontin, que apesar de ter sido sempre um crítico interno incisivo da biologia evolutiva, dificilmente continuaria a trabalhar em uma área em que não acreditasse. Tanto é assim que um de seus ex-alunos de Doutorado, o geneticista evolutivo Jerry Coyne, ao saber das declarações, foi perguntar o que tinha acontecido ao próprio Lewontin que desmentiu as declarações de Margulis.
Se as declarações de Margulis fossem destinadas a certo tipo de tendência (até bastante comum na divulgação científica, como havia mencionado antes) em super-enfatizar o papel da seleção natural, esquecendo-se de todo o resto da biologia evolutiva moderna, creio que teria sido tudo bem menos polêmico. Muitos pesquisadores como Gould e o próprio Lewontin (criticando o pan-adaptacionismo e enfatizando a importância das restrições de desenvolvimento), além de nomes como Kimura, Otha, Jukes e King (que propuseram as teorias neutra e quase-neutra da evolução molecular) ofereceram críticas fundamentais a certas abordagens da biologia evolutiva, e propuseram novos modelos que alargaram as perspectivas deste campo. Mesmo mais recentemente vários geneticistas evolutivos como Michael Lynch, Al Hughes, Masatoshi Nei e Arlin Stoltzfus e paleobiólogos com David Raup e David Jablonsky continuam fazendo esta crítica interna e explorando modelos mais nuançados e amplos de evolução. Mas o teor das declarações de Margulis realmente deixam uma má impressão sobre ela, especialmente por causa da sua bizarra admissão de que as críticas dos criacionistas teriam qualquer mérito, quando na verdade são baseadas em equívocos e distorções da teorias, hipóteses, conceitos e descobertas científicas. Essas declarações acabam sendo um grande golpe em sua credibilidade científica e lançam dúvidas sobre a capacidade que ela tem de compreender a biologia evolutiva moderna, para além das obras de divulgação mais desatualizadas e voltadas para um público mais leigo.
As declarações sobre o HIV e AIDS são ainda mais tristes, já que ela se aproxima dos negacionistas inclusive utilizando os mesmos tipos de argumentos desinformados sobre retrovírus, epidemiologia e a doença, de novo, aparentemente, para promover sua próprias especulações pessoais.
É sempre deprimente quando pessoas cujas ideias, e histórico de pesquisa, admiramos começam a falar este tipo de besteira, mas ao mesmo tempo isso nos mostra como a manutenção de uma atitude crítica e de um certo distanciamento é sempre muito importante quando lidamos com ciências. Pessoas são criaturas complicadas e ninguém está livre de falar besteiras.
Abraços,
Rodrigo
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Acrescento aqui os links para os artigos de Donald Prothero e da epidemiologista Tara C. Reed sobre as declarações de Margulis. Os dois textos dão um pouco mais de informação de contexto a questão, sobretudo sobre o vergonhoso negacionismo envolvendo o HIV e AIDS que Margulis abraça tão displicentemente.