Friday March 29, 2013
Anonymous: Quais são as principais diferenças entre o darwinismo e o Lamarquismo ?
Embora outros cientistas e pensadores tenham especulado sobre a questão, Jean Baptiste Lamarck foi, provavelmente, o primeiro cientistas a propor mais seriamente e sistematicamente a ideia que as espécies se transformaram ao longo do tempo e através das gerações, o que na época era chamado de ‘transformismo’ ou ‘transmutacionismo’. Lamarck ficou famoso por, supostamente, ter proposto duas leis, a primeira conhecida como ‘herança de caracteres adquiridos’ (o que alguns chamam de ‘herança suave’) que ocorreria em características adquiridas ou perdidas pelas segunda lei do ‘uso e desuso’ (‘desenvolvimento e atrofia de órgãos em função de seu emprego‘[apud 1]) de partes do corpo, órgãos, sistemas e estruturas dos organismo [1, 2, 3].
A questão é que estas ideias, mesmo sendo usadas nos trabalhos do naturalista francês, não eram originais deles, mas ideias que faziam parte do senso comum da época sobre hereditariedade e que tem suas origens em tempos muito mais antigos. Na realidade, o próprio Darwin não era contrário a estas duas ideias, tendo mesmo proposto uma teoria de hereditariedade denominada de pangênese (hoje desacreditada), pondo-se contra outras duas ideias de Lamarck que eram sim a base da teoria transformacionista que ele propôs 1, 2, 3, 4].
Essas duas outras leis que envolviam uma propriedade intrínseca aos seres vivos que se manifestava como uma ‘tendência para o aumento da complexidade’ e ‘surgimento de órgãos em função de necessidades que se fazem sentir e que se mantêm’ [apud 1]. Lamarck portanto via a evolução como um processo direcional em que as espécies moviam-se para a maior complexidade, ou seja para a maior perfeição. É exatamente neste ponto que as ideia de Darwin e Lamarck começam mesmo a divergir. Como explicam Rodrigues e Silva em seu artigo para a Ciência Hoje:
A contradição entre Lamarck e Darwin encontra-se, de fato, nas duas primeiras leis da teoria lamarckista – ‘tendência para o aumento da complexidade’ e surgimento de órgãos em função de necessidades’. A grande revolução da teoria darwiniana foi entender a especiação como processo de conversão da variação entre indivíduos, dentro de uma população, em variação entre populações diferentes, no tempo e no espaço. Assim, para ele, o processo de especiação é a transformação de variação intrapopulacional em interpopulacional. Se a formação de novas espécies se dá dessa maneira, a regressão desse processo nos leva a conceber uma origem comum para todos os seres vivos. A evolução, portanto, não teria um propósito: seria um processo de leis simples, no qual não existe espaço para a ideia de progresso, mas apenas de mudança ao longo do tempo.[1]
O modelo de evolução proposto por Darwin e por Alfred Russel Wallace em que a variação intrapopulacional é transformada em variação interpopulacional e por interespecífica é chamada por cientistas e historiadores da biologia como Ernst Mayr, como ‘evolução variacional’ e é bem diferente do modelo de mudança linear e direcional que era proposto por Lamarck [3]. Como explica Mayr em seu artigo “Speciational Evolution or Punctuated Equilibria” [4]:
“Como descrito acima, uma das ideias brilhantes de Darwin é que a evolução é variacional em vez de transformacional, como acreditava Lamarck e por muitos anti-darwinistas depois de 1859. Na evolução variacional é a sobrevivência de certos indivíduos favorecidos que leva à mudança evolutiva, a ênfase está no indivíduo e da população.” [4]
Além deste fator, Darwin e Wallace propuseram um mecanismo específico sobre como a evolução variacional poderia produzir o que até hoje chamamos de adaptação, ou seja, a impressionante adequação funcional que os seres vivos manifestam em relação ao seu meio ambiente.
Para Darwin e Wallace como as populações naturais apresentavam variação em relação aos seus fenótipos (variação essa que faria que os indivíduos que as portassem tivessem maior ou menor sucesso na sobrevivência e, principalmente, na reprodução, em um dado meio ambiente e contexto demográfico) e que parte dessa variação era herdável, deveriam acumular-se ao longo das gerações os portadores de variação benéfica em função de suas vantagens reprodutivas.
Deste modo, ao longo do tempo e das gerações, os organismos iriam manter seu ajuste aos ambientes cambiantes ou iriam aumentar seu ajuste em relação aos ambientes que se mantivessem estáveis, pois toda vez que uma variação nova surgisse e que esta trouxesse vantagens reprodutivas aos seus portadores e que pudesse ser herdadas por sua descendência elas iriam se espalhar pela população. Este é o que se convencionou chamar de ‘seleção natural’ [veja também “Equívocos sobre Seleção Natural”] de variantes herdáveis que surgem aleatoriamente com respeito as necessidades dos organismos e das espécies [3, 4, 5, 6, 7].
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Portanto, é aqui que as ideias de Darwin (e Wallace) e Lamack realmente divergem. Enquanto que para Lamarck as transformações das linhagens ocorreriam de maneira em direção a maior complexidade por um impulso quase teleológico dos seres vivos - em que as leis dos ‘uso e desuso’ e da ‘herança dos caracteres adquiridos’ teriam um papel central na adaptação dos seres vivos ao seu meio ambiente -, para Darwin e Wallace o processo de mudanças das linhagens ocorreria em decorrência da variação intrapopulacional herdável que por meio da seleção natural ao contexto ecológico e demográfico local seria resultaria em mudança na frequência de certos tipos de indivíduos com certos tipos de características, como a divergência entre populações sendo a base das mudanças entre as espécies [5, 6, 7].
Este processo, pelo menos de acordo com Darwin, receberia uma certo aporte dos mecanismos ditos ‘Lamarckianos’, isto é, características adquiridas pelo uso e desuso, mas este não seria o principal ‘motor’ da evolução. Mais tarde, naturalistas como o próprio Alfred Russel Wallace e August Weismann, expurgaram estes mecanismos do modelo de evolução variacional Darwiniano no que George Romanes chamaria de ‘Neo-Darwinismo’ e que influenciaria a ‘teoria sintética da evolução’ [veja também “Síntese moderna da evolução”] que se cristalizaria nos anos 30 e 40 do século XX [5, 6], opondo definitivamente o modelo de evolução variacional por meio de seleção natural, de Darwin e Wallace (o Darwinismo), dos mecanismos veiculados a visão Lamarckiana, mas que não eram exclusivos e originais dele, da ‘herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso’.
Na figura acima (que creio ter sido extraída do ótimo livro introdutório sobre evolução de Meyer e El-Hani [6]) podemos observar a característica básica do modelo transformista de Lamarck. Este modelo contrasta bastante com o modelo de evolução variacional, cujas populações dividem-se e ramificam-se, formando novas linhagens, e em que a adaptação ocorre por seleção natural que está no cerne das propostas de Darwin e Wallace e que até hoje são centrais na moderna biologia evolutiva. A figura retirada de Barton et al [8] mostra como este processo funciona:
Infelizmente, o termo ‘Lamarckismo’ ficou vinculado apenas as duas leis (‘uso e desuso’ e ‘herança de caracteres adequridos’) que não eram nem ao menos ideias originais dele (e lamarck jamais clamou pela originalidade das mesmas), além de também não serem centrais a sua teoria transformistas e, por fim, nem mesmo eram o ponto de contraste com a teoria de Darwin em sua concepção original. Como expliquei, apenas mais tarde, com o surgimento do neo-darwinismo e do chamado neo-lamarckismo americano, é que o constraste moderno entre seleção natural Darwiniana e herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso Lamarckiano estabeleceu-se no imaginário popular e mesmo dos professores de ciência [3].
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Literatura Recomendada:
Rodrigues, Rodolfo Fernandes da Cunha; Silva, Edson Pereira da. ‘Lamarck: Fatos e boatos.’Ciência Hoje, São Paulo, n. 285, p.68-70, 26 set. 2011. Disponível em: . Acesso em: 16 jan. 2012. [pdf]
Vieira, Eli e Tidon, Rosana A bicentenária filosofia zoológica de Lamarck. Ciência Hoje , p. 70, nº 265.
Ghiselin, Michael T. The Imaginary Lamarck:A Look at Bogus “History” in Schoolbooks The Textbook Letter, September-October 1994
Mayr, Ernst “Speciational Evolution or Punctuated Equilibria” in Somit, Albert e Peterson Steven [ed] The Dynamics of Evolution, New York: Cornell University Press, 1992, pp. 21-48
Mayr, Ernst O que é evolução? 1ª ed., São Paulo:Rocco editora, 2009. 342 pg.
Meyer, Diogo ; El-Hani, C. N. Evolução: O Sentido da Biologia. 1ª ed. São Paulo-SP: Editora UNESP, 2005. v. 1. 132p .
Brandon, Robert, “Natural Selection”, in Zalta, Edward N. (ed.) The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Fall 2010.
Barton, Nicholas H., Briggs, Derek E. G., Eisen, Jonathan A., Goldstein, David and Patel Nipam H. Evolution New York, Cold Spring Harbor: Cold Spring Harbor Laboratory Press, 2007, 833 p
Grande abraço,
Rodrigo
Crédito das imagens:
SMETEK/SCIENCE PHOTO LIBRARY
GARY HINCKS/SCIENCE PHOTO LIBRARY
evodisku.multiply.com
Site do livro-texto ‘Evolution’