Friday May 11, 2012
Anonymous: Qual a condição para dois seres vivos gerarem um prole fértil? Como a evolução mudou a quantidade de cromossomos dos seres vivos?
Existem vários fatores que contribuem para que um par de indivíduos de sexos opostos em uma população biológica gere prole fértil, a começar por reconhecerem-se entre si, acasalarem-se, serem capazes de produzir gametas funcionais e, a partir da fusão desses gametas, produzirem um zigoto que se desenvolva até o período reprodutivo e possa fazer o mesmo com outros indivíduos daquela população (ou de outra relacionada), repetindo o processo. Geralmente esses processos podem ser atrapalhados em vários níveis distintos, desde o comportamental e ecológico até os mais relacionados a características biológicas mais específicas, como número e forma cromossômica além de alterações em genes específicos cujos produtos interagem com os produtos de outros genes específicos diferentes herdados cada um de um dos progenitores, como estipulado pelo modelo Bateson-Dobzhansky-Muller para evolução de incompatibilidade reprodutiva entre populações. Essas alterações gênicas - que podem envolver tanto mudanças nas sequências desses genes, como em seu estado de ativação através de modificações químicas em sua estrutura que influenciam a sua expressão - além de perdas ganhos de cromossomos, inversões, deleções, translocações e inserções de porções cromossômicas, ocorrem como parte do fenômeno mutacional, seja ele associado a erros nos sistema de duplicação e reparo do DNA, seja por problemas na disjunção e segregação cromossômica durante a meiose e formação dos gametas.
No caso de alterações cromossômicas fica mais fácil de compreender por que algumas dessas podem tornar a prole de um cruzamento de indivíduos em particular infértil, pois quando esta prole for capaz de acasalar, os gametas gerados por ela podem simplesmente não terem o número apropriado de cromossomos ou possuírem alterações estruturais que comprometam o seu pareamento com os cromossomos do gameta do sexo oposto, tornando a formação do zigoto ou sua divisão mitótica posterior imprecisa ou mesmo impossível. Em relação as modificações em genes específicos, os efeitos seriam mais sutis, provavelmente se mostrando através de mudanças em vias genético-desenvolvimentais específicas que, por exemplo, interfeririam na formação de gametas, nas características das proteínas de superfície das suas membranas que as tornem não reconhecíveis por proteínas complementares do gameta do outro sexo etc.
Em muitos dos casos essas mudanças, entretanto, mesmo as envolvendo alterações cromossômicas, mais do que tornarem os indivíduos que as possuem inférteis (ou incapazes de produzirem prole fértil), o mais provável é que diminuiam sua fecundidade, fertilidade ou a viabilidade da sua prole ou da prole de sua prole.
Em populações onde há o fluxo gênico normalmente quando esse tipo de coisa acontece os indivíduos frutos destes cruzamentos demonstram menor sucesso reprodutivo (ou mesmo nenhum sucesso reprodutivo) e por isso, simplesmente, a característica desaparece da população em uma ou poucas gerações, mantendo a coesão da população e sua intercruzabilidade. Portanto, a chamada seleção purificadora encarrega-se de purgar as alterações cromossômicas e em loci específicos que possam diminuir muito a fertilidade da prole ou da prole da prole. Esse processo é o que também garante que quando duas populações tornem-se isoladas e formem duas subpopulações, possam sofrer mudanças genéticas que as tornem menos propensas a acasalarem e produzirem prole fértil com membros do sexo oposto da outra subpopulação da qual se separam, ao mesmo tempo que mantém a coesão da subpopulação a qual pertencem já que a seleção purificadora só atuará em relação ao acasalamento com indivíduos do sexo oposto mas da mesma subpopulação, já que os da outra subpopulação não fazem mais parte do seu ambiente reprodutivo.
Assim, conforme mudanças genéticas que afastam as subpopulações irmãs uma da outra vão ocorrendo, qualquer mutação (gênica ou cromossômica) que ocorra e impeça indivíduos acasalarem ou gerarem prole fértil com outros indivíduos do sexo oposto da mesma subpopulação não poderão ir muito adiante já que os indivíduos que as portarem não serão férteis ou sua prole não será fértil. E como os indivíduos da outra subpopulação não constituem-se mais como parceiros de acasalamento potenciais, eles poderão divergir sem problemas dos da outra subpopulação.
As alterações cromossômicas mesmo em número podem então serem vistas como parte da variabilidade hereditária das populações biológicas com seu impacto na sobrevivência e reprodução de seus portadores e de sua prole dependente do contexto ecológico e demográfico particular, de forma semelhante a outras mutações genéticas envolvendo segmentos menores de DNA ou mesmo mutações bem localizadas e pontuais.
Uma vez que isto esteja claro, passamos a compreender como as alterações cromossômicas que separam espécies próximas ocorrem a partir de sua divergência de uma população ancestral comum. Como ocorre em relação aos genes específicos, as alterações como fusões, fissões, translocações cromossômicas não necessariamente tornam os indivíduos que as possuem completamente inférteis, muitas delas apenas diminuem sua fertilidade por que atrapalham no processo de pareamento e segregação meióticas e mitótica dos cromossomos, por exemplo, ao diminuirem o número de gametas viáveis. [Apesar de também poderem existir efeitos mais amplos em função de hiperdosagem de produtos gênicos (caso ocorram duplicações) e eventual falta de outros (deleções ou perdas completas de cromossomos), mas neste caso essas alterações por serem incompatíveis com a vida e reprodução não vão adiante.]
Mas o que precisamos lembrar é que os cromossomos representam o padrão de empacotamento dos genes e distribuição desses pacotes, sendo mais relevantes na formação de gametas e do zigoto (e nas divisões subsequentes não necessariamente) do que interferindo com o funcionamento celular e a fisiologia dos organismos, desde que o genoma esteja minimamente completo e acessível a transcrição e regulação.
Algumas alterações cromossômicas não tão raras assim que ocorrem em seres humanos (afetando 1 em cada 1000 recém nascidos), como as translocações Robertsonianas, são um ótimo exemplo do que afirmei, pois as translocações balanceadas não são fatais e o comprometimento fenotípico dos indivíduos é pequeno ou mesmo inexistentes; e; apesar de fertilidade reduzida; os indivíduos que as possuem podem produzir prole fértil.
Em condições ecológicas e demográficas apropriadas, mesmo essas modificações, portanto, podem se espalhar por uma população e fixarem-se, ou seja, passarem a estar presentes em todos os indivíduos e portanto tornando-se a condição normal. Em populações pequenas, isoladas de populações maiores, por exemplo, a deriva genética poderia mesmo fixar este tipo de alteração e aos poucos mutações adicionais e o próprio efeito do endocruzamento poderia homogeneizar os cromossomos dessas populações e os eventuais erros de pareamento e segregação deixariam de ocorrer por causa do fato dos indivíduos terem se estabilizado com novo número e estruturação de porções cromossômicas.

Mas existe um cenário ainda mais simples que é caso dessas alterações cromossômicas estivessem ligadas com alguma mudança fenotípica vantajosa, como no caso de uma combinação inusitadas de cópias gênicas ou mesmo fusão de genes em um novo gene quimérico, aí então essa mudança poderia ocorrer de maneira ainda mais rápida e em populações maiores, pois mesmo que o número de gametas viáveis fosse menor do que dos outros genótipos (e as chances de erros de pareamento e segregação de cromossomos fossem maiores), em um primeiro momento, os indivíduos que descem ‘certo’ em termos da combinação de gametas teriam vantagens adicionais - quem sabe ao viver por mais tempo ou ter mais acesso a alimentos e parceiros - compensando as desvantagens iniciais e, assim, a nova combinação cromossômica se expandiria proporcionalmente mais pela população através das gerações do que os tipos ‘normais’.
Isso poderia ser ainda mais facilitado pela aquisição através de mutações adicionais (ou por aprendizado) da capacidade de escolher parceiros compatíveis, tornando o processo mais rápido e a chance de erros menor, no que alguns chamam de reforço [fenômeno que parece ter alguma importância no processo de especiação onde há zonas de hibridização com a população irmã divergente e que o resultado desses cruzamentos híbridos é uma prole inviável.].
De fato, as translocações Robertsonianas são tidas como as responsáveis pela separação de populações de certos organismos como plantas e algumas espécies de mamíferos e por divergências entre populações de uma mesma espécie.
PZ Myers em seu blog Pharyngula explica em detalhes como os números de cromossomos podem mudar ao longo da evolução dando como exemplo de mecanismos a duplicação do centrômero seguida de quebra cromossômica entre os dois novos centrômeros que geral resulta em dois cromossomos acrocêntricos a partir de um único cromossomo metacêntrico, sem perda de genes e sem grandes problemas de pareamento e segregação. Myers também explica bem direitinho como a fusão de dois cromossomos acrocêntricos pode dar origem a um cromossômico metacêntrico, também, sem muitos prejuízos meióticos e com quase nenhum efeito fenotípico mais sério, com no máximo uma diminuição da fertilidade.
Essas alterações numéricas, como basicamente preservam a ordem e o número dos genes, são facilmente acomodadas durante a meiose pois o pareamento com o cromossomo homólogo não é problemático e a segregação apesar de poder gerar gametas não balanceados, ou seja, com genes e excesso ou em falta, podem gerar também células haplóides completamente adequadas.
Aliás, um tipo de fusão, um pouco diferente das mencionadas (que envolve telômero-telômero)de dois cromossomos, que ocorreu após a separação da nossa linhagem das dos chimpanzés, é hoje muito bem estabelecida como tendo se dado, sendo uma das principais evidências da evolução humana ao nível genético e de nosso parentesco próximo com os primatas da velho mundo, especialmente os grandes macacos sem cauda [Veja aqui].
O nosso cromossomo 2 mostra marcas claras de ter sido derivado da fusão de dois cromossomos menores que nos chimpanzés modernos seriam equivalentes ao 12 e ao 13 (2A e 2B). Entre essas marcas estão sequências remanescentes dos telômeros e centrômeros que acabaram sendo parcialmente erodidos durante a evolução posterior de nossa linhagem.

O ponto que talvez deva ser mais enfatizado é que mesmo alterações genéticas grandes como os rearranjos, fusões ou fissões cromossômicas não são necessariamente grandes em termos de seus efeitos fenotípicos e especialmente no que se refere aos efeitos sobre a aptidão dos indivíduos, ou seja, sua sobrevivência e sucesso reprodutivo, o que são realmente relevantes em termos de evolução, podendo, na verdade, os eventos de mudanças cromossômicas ao invés de eles mesmos gerarem grandes mudanças, abrirem as portas para mudanças genéticas mais graduais que, estas sim, possam ao se acumularem levar a grande diferença em relação as linhagens ancestrais e irmãs.
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Literatura Recomendada:
Myers, PZ [Posted on: April 21, 2008 10:43AM] Basics: How can chromosome numbers change? Pharyngula
Garagna S, Marziliano N, Zuccotti M, Searle JB, Capanna E, Redi CA. Pericentromeric organization at the fusion point of mouse Robertsonian translocation chromosomes. Proc Natl Acad Sci U S A. 2001 Jan 2;98(1):171-5. PubMed PMID: 11136254; PubMed Central PMCID: PMC14563.
Jones, K. 1998. Robertsonian fusion and centric fission in karyotype evolution of higher plants. The Botanical Review 64, no. 3: 273-289.
Slijepcevic, P. 1998. Telomeres and mechanisms of Robertsonian fusion. Chromosoma 107, no. 2: 136-140.
Yunis, J. J., Sawyer, J.R., Dunham, K., The striking resemblance of high-resolution g-banded chromosomes of man and chimpanzee. Science, Vol. 208, 6 June 1980, pp. 1145 - 1148
IJdo et al (1991). “Origin of human chromosome 2: an ancestral telomere-telomere fusion”. Proceedings of the National Academy of Sciences 88 (20): 9051–5. doi:10.1073/pnas.88.20.9051. PMC 52649. PMID 1924367.
Fan Y, Linardopoulou E, Friedman C, Williams E, Trask BJ. Genomic structureand evolution of the ancestral chromosome fusion site in 2q13-2q14.1 andparalogous regions on other human chromosomes. Genome Res. 2002Nov;12(11):1651-62. PubMed PMID: 12421751; PubMed Central PMCID: PMC187548. [Link]
Brideau, Nicholas J. 2010. Two Dobzhansky-Muller Genes. Science 1292, no. 2006.
Grande abraço,
Rodrigo