Friday September 09, 2011
Anonymous: Qual é a relevância da teoria sobre a origem da vida relativa a coacervados HOJE em dia? Existe algum estudo recente sobre ou essa teoria foi "abandonada"? Há alguma teoria mais recente sobre a origem da vida dentro das ciencias naturais?
Coacervados são aquelas gotículas formadas em sistemas coloidais que, por sua vez, são um tipo de mistura na qual uma substância é dividida em partículas minúsculas (chamadas de partículas coloidais) e dispersas ao longo de uma segunda substância. As substâncias nestas misturas estão presentes como partículas maiores do que aqueles encontradas em uma solução, mas ainda assim são pequenas demais para serem vistas ao microscópio. Colóides, de acordo com o químico Paul Davis, são maiores do que a maioria das moléculas inorgânicas, portanto são moléculas grandes, como proteínas, ou grupos de moléculas (possuindo muitas propriedades, dependendo da sua grande superfície específica) e continuam suspensas por tempo indeterminado, medindo em torno de 10-9 a 10-6 mm. Um sistema coloidal não é uma solução verdadeira, mas não também não é uma suspensão, porque não se desenvolve como uma suspensão ao longo do tempo. Portanto, tecnicamente, os coacervados (cujo termo vem do latim e significa “agregar-se”) são apenas precipitados líquidos formados por coagulação mutua de sistemas coloidais hidrofílicos, através de um processo chamado de coacervação.
Como os coacervados apresentam-se em geral como pequeníssimas gotas viscosas que podem encapsular e isolar do meio aquoso a sua volta várias moléculas, acabaram-se tornando realmente populares através da proposta do bioquímico russo Alexander Oparin, como parte crucial nas etapas iniciais da origem dos seres vivos; a partir do cenário da “sopa primordial” proposto, de maneira independente, por ele e pelo biólogo evolutivo britânico J. B. S. Haldane. A ideia central por trás do modelo de Oparin é que tais gotículas, os coacervados, seriam capazes de isolar, do meio externo, moléculas orgânicas como polímeros primitivos (por exemplo, peptídeos); criando assim uma ambiente favorável para reações químicas auto-sustentáveis. Desta maneira os coacervados seriam interessantes por que, além de fornecerem um ambiente segregado localmente, poderiam também permitir a absorção seletiva de certas moléculas orgânicas simples a partir do meio a volta, o que é essencial na formação de sistemas proto-bióticos.
Outros tipos de sistemas encapsuladores, como as microsferas protéicas (formadas por aminoácidos que se polimerizam espontaneamente em altas temperaturas, formando esferas quando em solução aquosa) e vesículas lipídicas (formadas por moléculas de gordura anfipáticas, ou seja como uma porção polar, hidrofílica, voltada para o exterior aquoso e uma apolar que mantém a coesão da estrutura por interações hidrofóbicas), como as micelas (e lipossomos), também podem oferecer um ambiente semelhante. Especialmente as vesículas, que parecem gerar condições muito melhores e têm sido muito mais intensamente investigadas que os coacervados, pelo menos, como pensados por Oparin, que hoje seriam mais uma curiosidade, mas que serviram de inspiração para insights muito importantes nesta área da investigação científica.
Atualmente, no campo de pesquisas da abiogênese existem duas linhas de investigação principais, a chamada corrente do “metabolismo primeiro” e a dos “replicadores primeiro”. O modelo de coacervados de Oparin se enquadraria melhor, em um primeiro momento, dentro da linha “metabolismo primeiro”. Para modelos como o de Oparin, o aparecimento do metabolismo - ou seja, de sistemas de reação de síntese, degradação e conversão de materiais e energia auto-sustentados - teria se dado antes que sistemas de transmissão de informação hereditária e de replicação, como o DNA, tivessem se originado. Para Oparin um sistema químico simples poderia ter sido encapsulado nessas gotículas de moléculas orgânicas, sendo isolado do meio externo desenvolvendo autonomia, capacidade de crescimento e eventualmente formas primitivas de reprodução, por divisão da estrutura quando chegasse a um certo tamanho, por exemplo.
No entanto, após ter sido descoberto que as moléculas de RNA são capazes de, além de transmitir informação (ao determinar a sequência de uma nova molécula de RNA em processo de polimerização, ao servir de molde), cumprirem, elas mesmas, funções catalíticas (originalmente atribuídas apenas as proteínas), muitos pesquisadores das origens da vida passaram a perseguir cenários dos “replicadores primeiro”. O chamado “mundo do RNA” é um dos legados desta descoberta e orienta boa parte das pesquisas atuais nesta área, como as desenvolvidas pelo grupo de Jack Szostak [Veja o vídeo abaixo, também disponível em nosso site o evolucionismo.org].
Este cenário ganhou suporte extra com a demonstração experimental que certas ribozimas (“enzimas de RNA”), obtidas em laboratório, são capazes de replicação cruzada, mostrando que tais sistemas podem sofrer amplificação auto-sustentada exponencial, que ocorre em um tempo de duplicação de cerca de 1 hora, na ausência de proteínas ou outros materiais biológicos, podendo ser mantida indefinidamente [veja Lincoln; Joyce, 2009]. Além de investigarem como os primeiros nucleotídeos e polímeros desses nucleotídeos surgiram, estas pesquisas tentam lançar luz sobre como estes sistemas podem ter sido encapsulados por vesículas primitivas, formando as primeiras protocélulas, como o grupo de Pier Luigi Luisi tem investigado, o que guarda ainda algumas similaridades com o modelo original de Oparin.
No entanto, isso nos leva a outra grande interrogação, já que a síntese de novo de RNA utilizando apenas materiais plausíveis no contexto de um química pré-biótica tem se mostrado, para dizer o mínimo, muito difícil - apesar de alguns resultados animadores. Acentuando esta lacuna, investigações experimentais têm fornecido evidências de que as nucleobases (A, G, C e T / U),[desoxi]ribose, a química envolvida nas ligações fosfato-diésteres, e os ácidos nucléicos contemporâneos parecem ser ideais para sua função atual, sugerindo refinamento prévio através da evolução por seleção natural, o que nos faz indagar quais teriam sido os polímeros, e por conseguinte os monômeros primitivos, que teriam iniciado a evolução que culminou com as moléculas hereditárias que conhecemos. Moléculas como o TNA e PNA são alguns dos candidatos a essas formas de moléculas informacionais que teriam antecedido o RNA, no mundo “pré-RNA”
Entretanto, vale aqui lembrar que a abordagem “metabolismo primeiro” é também muito importante, mesmo por que, como enfatizado acima, é preciso que certas moléculas relativamente complexas como nucleotídeos e seus polímeros se formem e se acumulem, abrindo a possibilidade para uma fase pré-biótica em que sistemas de reações auto-sustentadas baseadas em moléculas mais simples tenham precedido o chamado “mundo do RNA”. Na verdade, existem algumas evidências que alguns dos sistemas metabólicos mais básicos presentes em células modernas parecem ter seus precedentes neste tipo de sistemas auto-catalíticos proto-metabólicos, como sugerem os trabalhos do químico Günther Wächtershäuser e como é discutido em um pequeno e interessante artigo de James Trefil, Harold Morowitz e Eric Smith publicado na American Scientist e em outro, de Robert Shapiro, publicado na Scientific American. Algumas dessas pistas podem ser encontradas nos clusters de Fe-S das enzimas da cadeia de transporte de elétrons e em moléculas simples como os cubanos; na ciclo do ácido cítrico inverso etc.
A diferença crucial para o modelos de Oparin, entretanto, é que ao invés de encapsulados em gotículas coloidais, tais sistemas estariam associados à superfícies minerais ou a substratos tridimensionais porosos percoláveis, capazes de organizar o fluxo de moléculas mais básicas, manter ciclos de conversão de energia, catalizar reações de polimerização e acumular as moléculas resultantes para que formassem sistemas auto-reativos confinados, ligados a sistemas geoquímicos semelhantes de hidrotermas batiais e fumarolas abissais.
A disputa entre os defensores do “metabolismo primeiro” e da “replicação primeiro”, portanto, depende da especificação do que realmente está sendo buscado. Não parece haver um limite claro e preciso entre sistemas vivos e não-vivos e ambas as abordagens podem nos revelar muito sobre o processo de origem da vida. Assim, estabelecer o ponto em que a vida realmente se iniciou, talvez, seja uma questão bem arbitrária. Por exemplo, recentemente um artigo recebeu bastante atenção na mídia especializada por supostamente refutar o cenário “metabolismo primeiro”. O estudo publicado na revista PNAS (Vasas; Szathmáry; Santos, 2010) envolvia a análise do que eles chamam de genomas composicionais cuja herança - diferente do modelos de replicadores clássicos (que envolve um sistema de molde e cópia como os envolvendo o DNA e o RNA, em que uma fita do polímero é usada para guiar a polimerização da nova fita) - depende de agregados moleculares que variariam em termos das contagens de diferentes espécies moleculares em “ensembles”. Esses sistemas apesar de serem capazes de propagar informações sobre sua composição (permitindo, assim, em tese, a ação da seleção natural), em nítido contraste com a dinâmica dos sistemas replicativos dependente de moldes, seriam por demais imprecisos do ponto de vista da replicação, não podendo ser mantidos pela seleção e, portanto, não poderiam evoluir da mesma maneira que sistemas baseados em moléculas como o RNA.
Os autores, a partir daí, concluem que esta limitação fundamental dos replicadores composicionais, deveria trazer cautela em relação as modelos do cenário “metabolismo primeiro” para a origem da vida. Porém, os autores desse artigo partem claramente de uma definição de vida bastante específica que coloca a capacidade de evoluir por seleção natural como a condição crucial para considerarmos um sistema como vivo, o que não é de maneira nenhuma consenso na comunidade científica, ainda que seja um posição bastante difundida. Na verdade, os próprios autores não excluem um papel para os sistema auto-catalíticos proto-metabólicos, ao afirmarem que “… antigos sistemas metabólicos poderiam ter fornecido um habitat estável dentro dos quais replicadores poliméricos mais tarde evoluíram.” [veja o abstract de Vasas; Szathmáry; Santos, 2010].
Isso mostra que o temos aqui então é uma discordância sobre a partir de que ponto poderíamos considerar que a vida começou, mas tendo como base uma concepção bem específica do que seria um sistema vivo. Para estes autores seriam apenas os sistemas capazes de variar e herdar esta variabilidade de forma específica, podendo gerar diferencias na replicação em certos contextos, ou seja, evoluir por seleção natural. Mas além da discussão sobre a definição de vida, a abordagem do “metabolismo primeiro” pode significar tão simplesmente que antes do mundo do RNA e mesmo antes do mundo pré-RNA houve uma período em que as condições atmosféricas, geoquímicas e geofísicas deram origem a conjuntos de reações quimiossintéticas auto-sustentadas que geraram um proto-metabolismo que possibilitou o acumulo de moléculas mais complexas e os primórdios do que viria ser o metabolismo celular. E, assim, quando moléculas hereditárias se originaram neste contexto, permitiram a evolução diversificadora e adaptativa que estamos acostumados.
Então, mesmo que o modelo original de Oparin não esteja mais em voga ainda existem ecos dele na moderna pesquisa sobre a origem da vida.
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Literatura recomendada:
Goel, A. Colloidal Chemistry Discovery Publishing House, 2006 254 pg.
Engelhart AE, Hud NV. Primitive genetic polymers. Cold Spring Harb Perspect Biol. 2010 Dec;2(12):a002196. Epub 2010 May 12. Review. PubMed PMID: 20462999.
Joyce GF. Evolution in an RNA world. Cold Spring Harb Symp Quant Biol. 2009;74:17-23. Epub 2009 Aug 10. Review. PubMed PMID: 19667013; PubMed Central PMCID: PMC2891321.
Lincoln TA, Joyce GF. Self-sustained replication of an RNA enzyme. Science. 2009 Feb 27;323(5918):1229-32. Epub 2009 Jan 8. PubMed PMID: 19131595; PubMed Central PMCID: PMC2652413.
Oró J, Miller SL, Lazcano A. The origin and early evolution of life on Earth. Annu Rev Earth Planet Sci. 1990;18:317-56. Review. PubMed PMID: 11538678.
Ricardo A, Szostak JW. Origin of life on earth. Sci Am. 2009 Sep;301(3):54-61. [em PDF]
Robinson R. Jump-starting a cellular world: investigating the origin of life, from soup to networks. PLoS Biol. 2005 Nov;3(11):e396. Epub 2005 Nov 15. PubMed PMID: 16277560; PubMed Central PMCID: PMC1283399.
Shapiro, R. (2007) A Simpler Origin for Life Scientific American, 296, June, 46-53. [em PDF]
Trefil J, Morowitz HJ, Smith E: The Origin of Life. A case is made for the descent of electrons. Am Sci 2009, 97(3):206-213.
Vasas V, Szathmáry E, Santos M. Lack of evolvability in self-sustaining autocatalytic networks constraints metabolism-first scenarios for the origin of life. Proc Natl Acad Sci U S A. 2010 Jan 26;107(4):1470-5. Epub 2010 Jan 4. PubMed PMID: 20080693; PubMed Central PMCID: PMC2824406.
Yarus M. Getting past the RNA world: the initial Darwinian ancestor. Cold Spring Harb Perspect Biol. 2011 Apr 1;3(4). pii: a003590. doi: 10.1101/cshperspect.a003590. Review. PubMed PMID: 20719875.
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Além do vídeo, os links no texto, as referências e os sites dos grupos de Szostak, Luisi e Robert M. Hazen, sugerimos o site Exploring Life’s Origin. Também recomendamos a resposta aqui do tumblr sobre os trabalhos de Urey-Miller relevantes para o modelo da “sopa primitiva” de Oparin e Haldane, no qual se insere o modelo e os experimentos com coacervados. Além disso, existem várias respostas sobre questões associadas a origem da vida dadas ainda no formspring, mas que infelizmente não estamos conseguindo acessá-las agora para fornecer os links, mas que faremos assim que for possível.
Grande Abraço,
Rodrigo
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Após alguns problemas em acessar as respostas do antigo formspring evolucionismo, aqui vão alguns links de respostas sobre a origem da vida lá postadas: form_1; form_2; form_3; form_4.