Fusão de cromossomos e a evolução humana [Tradução]
O The Tech Museum (com o apoio do Departamento de genética da Escola de Medicina da Universidade de Stanford) possui uma página destinada a sanar dúvidas sobre genética, e uma das respostas deste site me chamou a atenção por esclarecer de maneira muito didática a questão das origens do atual número de cromossomos em nossa espécie a partir de um evento de fusão ancestral. Já me referi e expliquei, em outras ocasiões e meios*, as evidências que tornam esta conclusão muito bem aceita pela comunidade científica e como este tipo de evento está envolvido em processos de divergência e especiação. Mas nunca é demais apresentar boas explicações especialmente quando elas foram construídas de uma maneira tão didática e elegante. Por isso traduzi o texto da geneticista Monica Rodriguez, da Universidade de Stanford, e a pergunta que o suscitou.
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Ask a Geneticist (Pergunte a um geneticista)
por Monica Rodriguez, Stanford University
[Tradução Rodrigo Véras]
"Se as teorias evolutivas estão corretas, como pulamos dos 24, que ocorrem nos macacos sem cauda*, para os 23 pares de cromossomos que ocorrem nos seres humanos? Como é possível que os cromossomos juntem-se em um só, e que a espécie resultante seja capaz de sobreviver e procriar?" [link]
-Um estudante do ensino médio do Reino Unido.
29 de agosto de 2007
Perguntas bem difíceis essas que você acabou de fazer! Primeiro vou começar por dizer que os cientistas não sabem ao certo por que nossos ancestrais se separaram em duas espécies diferentes.
Mas nós sabemos que os cromossomos se uniram. E nós sabemos que as pessoas que têm dois cromossomos grudados geralmente não têm problemas.
Como sabemos disso? Porque há muitas pessoas como estas por aí. Algo como 1 em 1000 nascidos vivos têm esse tipo de mistura de cromossomos.
Então não há realmente um problema com os cromossomos ficando grudados. A parte mais complicada da sua pergunta é como esse cromossomo mudado poderia ter dominado a população e se tornado o padrão mais comum entre as pessoas.
Nós vamos passar por algumas das maneiras pelas quais isso pode ter acontecido mais tarde. É importante dizer de antemão que nós ainda não sabemos exatamente o que aconteceu. E que nós podemos nunca saber com certeza.
Mas antes de irmos para este assunto, vamos falar um pouco sobre como nós sabemos que um dos nossos cromossomos é feito a partir de dois dos dos macacos sem cauda. E por que rearranjos cromossômicos não causam mais problemas.
Você está certo ao afirmar que a teoria da evolução diz que os humanos evoluíram de um ancestral que era um macaco sem cauda que tinha um número diferente de cromossomos que os humanos modernos. Os seres humanos têm 23 pares e os macacos sem cauda têm 24.
A teoria é que, em algum momento, dois cromossomos nos macacos sem cauda fundiram-se formando um único cromossomo humano. Por que achamos isso? Porque quando olhamos para o DNA humano, o cromossomo 2 se parece com dois cromossomos dos macacos sem cauda** grudados.
Todos os cromossomos têm uma estrutura distintiva nas extremidades (chamada telômero) e ao centro (chamada centrômero). Ao olhar para o DNA, vemos que o nosso grande cromossomo mostra evidências de um telômero no centro. E também vemos evidência de dois centrômeros. Então isso significa que provavelmente dois cromossomos fundiram-se um no outro.
Como eu disse, esse tipo de coisa acontece o tempo todo. Cromossomos podem quebrarem-se e eles podem se fundirem. Uma parte de um cromossomo pode virar ao contrário ou uma parte pode se mover para um cromossomo totalmente diferente. Vemos exemplos de todas estas coisas, quando olhamos para os cromossomos humanos e dos macacos (e para qualquer outro).
Você poderia imaginar que a mudança de algo tão importante como um cromossomo seria um desastre. Alguns criacionistas realmente utilizam este ponto como um argumento contra a evolução humana. Mas sabemos que rearranjos cromossômicos não são sempre prejudiciais.
Isto é assim porque os cromossomos são na realidade apenas longas cadeias de informação. Essas seqüências estão em pedaços discretos de forma que há muitos lugares onde eles podem ser quebrados e colados juntos novamente.
Enquanto a informação esteja toda lá, na maior parte do tempo, não importa como ela esteja embalada. A informação que os macacos tem nos dois cromossomos 'divididos' é a mesma que a do nosso grande cromossomo 2. Assim, embora tenhamos menos um cromossomo, toda a informação ainda está lá.
Como eu disse antes, este tipo de rearranjo cromossômico realmente acontece em cerca de 1 em cada 1000 bebês. É chamado de translocação Robertsoniana. Uma parte de um cromossomo se une com outro cromossomo e, assim como nos cromossomos dos macacos sem caud, nenhuma informação é normalmente perdida. Então, essa pessoa é completamente normal apesar de ter a translocação e um cromossomo a menos.
Mas isto pode ser um problema, quando a pessoa tentar ter um bebê. Metade do tempo seus filhos estarão bem. Estas crianças serão normais ou levarão a translocação.
Metade do tempo, porém, um óvulo fertilizado herdará uma parte ausente ou extra de um cromossomo. Mais comumente, isso resulta em um aborto.
Como podemos chegar a 23 pares na população em geral?
Então é fácil ver de onde a translocação veio originalmente. Essas coisas são muito comuns, afinal. Mas como poderia ter se espalhado? Especialmente se essas pessoas estão em desvantagem porque sofrem mais abortos.
Um jeito de podemos todos ter terminado com 23 pares de cromossomos é se houve alguma vantagem em ter os cromossomos fundidos. Isso compensaria a desvantagem do aumento do risco de abortos. Então podemos facilmente ver como ele poderia se espalhar em uma população. Assim é como a seleção natural funciona, afinal. Mas não temos nenhuma evidência para apoiar isso.
Outra maneira seria através do acaso. Acaso é como alterações do DNA podem espalhar-se em uma população, mesmo quando não há alguma vantagem.
Isso soa estranho, mas é realmente comum o suficiente para ter nomes científicos, como efeito fundador e deriva genética. A idéia básica é que em pequenas populações, efeitos aleatórios podem ter consequências profundas.
Se você começar com uma população pequena, então há menos diversidade DNA nessa população. É por isso que, por exemplo, certas doenças são tão comuns nas comunidades Amish. E outras não são conhecidas entre eles.
Quando essa populações foram iniciadas, os membros fundadores ou tinham os genes das doenças ou não. Se eles tinham, então, a doença tornou-se comum. Se eles não tinham a doença não existia para eles. Este é o efeito fundador.
Para fazer isto o mais simples possível, imagine uma situação em que dois dos nossos antepassados tinham um cromossomo fundido. Estes dois deixaram a tribo e fundaram um novo grupo.
Eles têm seis filhos. Dois dos filhos herdam um cromossomo fundido de cada pai. Eles agora têm um menor par de cromossomos.
Os outros quatro ou têm o número normal de cromossomos ou um fundido. Por acaso, três desses quatro morreram antes do parto e o quarta sai para procurar sua sorte. Agora, os dois únicos que restam têm dois cromossomos fundidos. Assim como todos os seus filhos.
Este cenário tem a idéia de deriva genética nele. Por causa da pequena população, a chance pode ter um enorme efeito sobre a tribo. Certas características desaparecem porque as poucas pessoas que a tinham morrem ou não tem filhos. Ou acontece de não passarem a característica adiante.
Voltando para a nossa história, todos na tribo agora têm dois cromossomos fundidos. Eles têm 23 pares de cromossomos em vez de 24. E porque eles ainda têm as mesmas informações, eles estão perfeitamente bem!
Eu quero enfatizar novamente que não sabemos ao certo se é assim que as coisas aconteceram Este é apenas um exemplo de como isso poderia ter acontecido.
E não é apenas algo que estamos inventando. Podemos ver exemplos de mudanças no número de cromossomos que acontecem ao nosso redor na natureza agora mesmo.
Por exemplo, os cavalos selvagens têm 33 pares de cromossomos e os domesticados têm 32. Esta foi uma mudança relativamente recente, que aconteceu por causa do tipo de translocação que estávamos falando. De fato, isso aconteceu recentemente o suficiente para que estes animais consigam se acasalar e terem cavalos férteis.
As borboletas são também outro exemplo. Há muitas espécies intimamente relacionadas de borboletas que têm grandes diferenças no número de cromossomos. Pegue as borboletas Philaethria sul-americanos. O seu número de cromossomos pode variar de 12 a 88! As borboletas estão bem porque todos elas têm a mesma informação. É apenas arranjada de maneiras diferentes.
Mas os cientistas não tem certeza ainda se essas mudanças realmente fizeram as duas espécies divergirem Elas também poderiam ter ocorrido depois da separação entre as espécies. Nesse caso, o número de cromossomos não teria nada a ver com fazer uma nova espécie.
E a mesma coisa acontece com os seres humanos. Nós ainda não temos certeza que o salto de 24 para 23 pares de cromossomos é o que nos tornou humanos. Como eu disse, é certamente possível que tenhamos nos separado de nossos ancestrais símios antes da diferença no número de cromossomos. Em outras palavras, os seres humanos podem ter se tornado uma nova espécie por outras razões que o número de cromossomos.
O que é isso que nos torna humanos?
Nós ainda não sabemos quais diferenças específicas ao nível do DNA são responsáveis por nos fazer diferentes dos macacos sem cauda. Mas os cientistas têm algumas idéias. E muitas dessas idéias giram em torno de mudanças no nosso DNA que deram aos nossos ancestrais humanos alguma vantagem.
Realmente aconteceram um bom número de rearranjos entre alguns cromossomos humanos e dos macacos sem cauda ao longo dos anos. Pode ser que um destes tenha feito que nova informação tenha sido criada. Ou alguma ter sido perdido.
Isso acontece às vezes. Lembre-se, eu disse que a informação está em pedaços discretos. Uma grande parte destas informações são encontradas em nossos genes.
Se algo muda e um desses genes, por causa disso, é usado na hora errada ou no lugar errado, então ele vai mudar alguma coisa nesse animal. Por exemplo, se uma parte de um cromossomo é virada bem no meio de um gene, então, o gene será afetado.
A mistura de cromossomos, por vezes, faz com que ocorram esses tipos de mudanças. E se essa mudança confere uma vantagem, então ele vai se espalhar.
Outra idéia é que pequenas mudanças em seqüências de DNA (mutações) poderia ter feito um gene mudar. Como talvez um gene para o tamanho do cérebro ou falar. Ou pode ser uma combinação de muitas mudanças no DNA.
Os cientistas descobriram vários genes possíveis candidatos para nos tornarem seres humanos. Enquanto a vasta maioria do nosso DNA é exatamente o mesmo que o dos chimpanzés, devem haver diferenças também. Se ele fosse exatamente o mesmo, então não seriamos duas espécies diferentes. Encontrar as diferenças entre o DNA humano e dos chimpanzés é realmente uma área muito vasta de pesquisa para os cientistas. Eles esperam que, ao estudar estas diferenças, possamos descobrir o que nos torna humanos.
Infelizmente, não podemos voltar no tempo e descobrir exatamente o que aconteceu. Mas estudando nosso DNA é a melhor maneira de retraçar a história.
Monica Rodriguez
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* Veja também a resposta em nossa página do tumblr sobre um assunto correlato para maiores detalhes, aqui. Na resposta do Tumblr discuto um pouco mais sobre a questão dos mecanismos de isolamento e o que está em jogo quando falamos de 'interfertilidade', além de também comentar a questão das 'Fusões Robertsonianas', enfatizando que a questão do pareamento e segregação cromossômica são de importância secundária, desde que o complemento total de genes esteja presente mesmo que empacotado de maneira distinta, o que pode, eventualmente, ter um certo impacto na formação de gametas e zigotos balanceados geneticamente, afetando o sucesso reprodutivo. Porém não há uma relação necessária envolvendo esses fatores.
**Adotei a expressão 'macacos sem cauda' como tradução para o termo em inglês 'ape', a partir da sugestão de Roberto Takata em seu blog 'Gene Repórter' para evitar algumas confusões. Por exemplo, os termos 'macaco' e 'monkey' não são completamente equivalentes (o termo macaco, inclui todos os primatas simiiformes, com exceção de nós, seres humanos, enquanto 'monkeys' inclui os simiiformes, excetuando os seres humanos e os demais hominoides, como gorilas, gibões, chimpanzés e orangotangos), sendo, portanto, o termo em português mais inclusivo do que o em inglês, além de não temos um termo equivalente em uso minimamente consensual, especifico, para 'apes' em nossa língua, com várias tentativas (ex: símios, grande primatas, grandes macacos, etc) sendo bastante problemáticas. Este é um problema recorrente entre terminologia técnica e seus (quase)equivalentes da linguagem coloquial que nem sempre andam juntos. Em um certo sentido, muito profundo, continuamos a ser 'macacos', mesmo que a o termo nos exclua arbitrariamente em sua definição vernacular.
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Literatura Recomendada:
Fan Y, Linardopoulou E, Friedman C, Williams E, Trask BJ. Genomic structureand evolution of the ancestral chromosome fusion site in 2q13-2q14.1 andparalogous regions on other human chromosomes. Genome Res. 2002 Nov;12(11):1651-62. PubMed PMID: 12421751; PubMed Central PMCID: PMC187548. [Link]
IJdo et al (1991). “Origin of human chromosome 2: an ancestral telomere-telomere fusion”. Proceedings of the National Academy of Sciences 88 (20): 9051–5. doi:10.1073/pnas.88.20.9051. PMC 52649. PMID 1924367.
Myers, PZ [Posted on: April 21, 2008 10:43AM] Basics: How can chromosome numbers change? Pharyngula.
Yunis, J. J., Sawyer, J.R., Dunham, K., The striking resemblance of high-resolution g-banded chromosomes of man and chimpanzee. Science, Vol. 208, 6 June 1980, pp. 1145 - 1148.
Watanabe H, Hattori M. [Chimpanzee genome sequencing and comparative analysis with the human genome.] Tanpakushitsu Kakusan Koso. 2006 Feb;51(2):178-87. Review. Japanese. PubMed PMID: 16457209.
Pollard KS. What makes us human? Sci Am. 2009 May;300(5):44-9. PubMed PMID: 19438048.
Kehrer-Sawatzki H, Cooper DN. Understanding the recent evolution of the human genome: insights from human-chimpanzee genome comparisons. Hum Mutat. 2007 Feb;28(2):99-130. Review. PubMed PMID: 17024666.
Yoko K, Atsushi T, Hideki N, Asao F. [Comparative studies on human and chimpanzee genomes]. Tanpakushitsu Kakusan Koso. 2005 Dec;50(16 Suppl):2072-7. Review. Japanese. PubMed PMID: 16411432.
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