Incoerência irredutível
Em 1996, um professor de bioquímica de uma universidade dos EUA (veja o "aviso legal", em sua página pessoal, na Universidade de Lehigh que, aliás, não endossa suas ideias), chamado Michael Behe, publicou um livro em que desenvolvia uma crítica à biologia evolutiva, especialmente à visão Darwiniana da evolução, a partir de uma perspectiva supostamente nova. Essa crítica, segundo Behe, só era possível graças aos conhecimentos da impressionante complexidade e intrincamento dos sistemas biomoleculares revelados pelas modernas bioquímica e biologia molecular. Essa complexidade, entretanto, por não ser conhecida por Darwin, e seus contemporâneos, teria impedido o grande naturalista de perceber as limitações de sua teoria. O livro chamava-se (oportunamente), "A Caixa preta de Darwin", publicado em 1996 e, no Brasil, em 1997 pela editora Jorge Zahar. Behe intencionava, com esta obra, oferecer um novo argumento que tomaria a forma de um desafio à moderna biologia evolutiva, o que ele chamou de “complexidade irredutível”.
O livro de Behe recebeu grande atenção, não só dos tradicionais bajuladores criacionistas e dos defensores do então jovem Criacionismo do Design Inteligente (CDI), mas também de acadêmicos sérios das áreas de biologia evolutiva e filosofia que levantaram várias objeções. O geneticista evolutivo H. Allen Orr em sua resenha do livro para o Boston Review escreveu:
< align="justify"p class="western" style="margin-bottom: 0cm;" xml:lang="pt-BR" lang="pt-BR">
“O último ataque à evolução é inteligentemente argumentado, biologicamente informado e errado”(Allen Orr, 1997)
O conceito de Complexidade Irredutível (CI), desde então, tem desempenhado um papel fundamental no ressurgimento do movimento criacionista nas últimas duas décadas e Behe teve participações importantes (ainda que vexatórias) em muitos episódios importantes destes embates, como no julgamento Kitzmiller vs. Dover , em 2005 ( Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
O argumento de Behe se propunha, ao revelar irredutibilidade de certos sistemas bioquímicos, a demostrar que estes não poderiam ter evoluído de forma natural, a menos que eventos muito improváveis acontecessem como mutações simultâneas em diversos dos componentes destes sistemas biomoleculares, o que segundo Behe apontaria para a necessidade de um Designer. Obviamente, a suposta demonstração do "design inteligente" por Behe foi amplamente rejeitada por biólogos evolutivos e filósofos da natureza. Porém, as diversas linhas de crítica pareciam em muitos casos contraditórias. No entanto, estas supostas contradições seriam fruto da própria incoerência presentes nas definições de Behe de CI. É exatamente isso que três filósofos defendem em um artigo publicado no The Quarterly Review of Biologydeste mês.
Neste trabalho é apresentada uma análise de vários equívocos inerentes ao conceito de CI, além de discutir a maneira pela qual os defensores do Criacionismo do Design Inteligente (CDI) têm convenientemente transformado a CI em um alvo em constante movimento. Como os próprios autores deixam bem claro em seu abstract:
Uma análise dessas estratégias retóricas nos ajuda a entender por que a CI tem ganho destaque em movimentos como o CDI, e por que, apesar da sua completa falta de méritos científicos, chegou mesmo a convencer algumas pessoas cultas da morte iminente da teoria evolutiva (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Os críticos de Behe de forma unânime concordaram que ele não havia conseguido demonstrar a evidência de "design inteligente" na natureza. Porém, as críticas são bastante diversas, com alguns biólogos afirmando que os sistemas biológicos, por vezes, realmente apresentam a CI, como Behe a define, mas negando que isso representasse um problema para a teoria da evolução (por exemplo, Orr, 1997; Shanks e Joplin 1999, Miller 2000 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010). Por outro lado, outros afirmam que Behe nunca demonstrou a existência de casos que realmente pudessem ser considerados exemplos genuínos de CI na natureza (veja por exemplo, Pigliucci 2002; Forrest e Gross, 2007 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010); outros, como Robert Pennock (1999, p. 64-272), concordam que Behe não demonstrou a existência de sistemas com CI, mas, ao mesmo tempo, concede a possível existência deste tipo de sistemas biológicos com CI, argumentando que, de qualquer maneira, a existência destes não ameaçaria a teoria evolutiva.
Esta aparente contradição, como bem explicam Boudry, Blancke e Braeckman (2010), é originária da esquiva definição de Behe que permite a ele pular de uma proposição coerente , porém trivial, para uma bem mais audaciosa, mas que ele (nem ninguém) não foi capaz de demonstrar e que se limita a um argumento de ignorância e, após inúmera críticas, acaba por se tornar um mero argumento de incredulidade pessoal.
Boudry, Blancke e Braeckman (2010) argumentam que são, na realidade, estes tipos de equívocos, em sua definição, que permitem a Behe e seus companheiros do CDI, transformar a CI em um alvo móvel, protegendo-a contra críticas, mas, ao mesmo tempo, os impossibilitando de transformarem-na em uma teoria ou programa de pesquisa coerente devido às suas próprias inconsistências, tão úteis do ponto de vista retórico.
Um dos pontos mais interessantes apontados no artigo de Boudry, Blancke e Braeckman (2010), mas já denunciado por outros antes deles (veja Forrest e Gross, 2007, p. 302), é que o conceito de CI tem um longo pedigree que pode ser traçado até outra geração de criacionistas. Nas décadas de 1970 e 1980, os criacionistas da Terra jovem usaram termos semelhantes para descrever sistemas biológicos, que eram alegadamente obstáculos à teoria da evolução. Em 1974, Henry Morris, fundador do Institute for Creation Research e pai do movimento da "ciência" da criação, argumentou em seu influente livro Criacionismo Científico que:
"O problema é simplesmente que em um sistema complexo, em que muitos componentes funcionam conjuntamente, e em que cada componente é exclusivamente necessário para o bom funcionamento do todo, este jamais poderia surgir por processos aleatórios " (Morris, 1974, p. 59 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Ariel Roth, outro criacionista, afirmou em 1980 que:
"Criação e vários outros pontos de vista podem ser apoiados por dados científicos que revelam que a origem espontânea dos complexos sistemas bioquímicos integrados, mesmo dos organismos mais simples são, na melhor das hipóteses, um evento dos mais improváveis "(Roth 1980, p. 83 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Fica claro, ao ler estas citações, que Behe, simplesmente, adaptou essas noções, já bem disseminadas entre os criacionistas, para seus próprios fins e as transformou em um “novo” cavalo de batalha para o então emergente criacionismo do Design Inteligente. A definição de CI presente no livro “a Caixa Preta de Darwin” é a seguinte:
"Por irredutivelmente complexo, quero dizer um sistema único composto de várias peças bem-ajustadas interagentes que contribuem para a função básica, onde a remoção de qualquer uma das partes faz com que o sistema deixe de funcionar efetivamente. Um sistema irredutivelmente complexo não pode ser produzido diretamente (isto é, melhorar continuamente a função inicial, continuando a funcionar pelo mesmo mecanismo) por modificações suaves e sucessivas de um sistema precursor, porque qualquer precursor de um sistema irredutivelmente complexo, no qual está faltando uma parte, é, por definição, não funcional. Um sistema biológico irredutivelmente complexo, se há uma coisa dessas, seria um poderoso desafio à evolução darwiniana" (Behe, 2006, p. 39 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Boudry, Blancke e Braeckman (2010) mostram que neste trecho escondem-se, na realidade, duas definições que podem ser disjuntas. A primeira delas envolve sistemas que presentemente estão estruturados de uma tal forma que a perda de alguma de suas “bem-ajustadas peças” provoca a desintegração funcional do sistema. Muitos críticos lembraram que este tipo de sistema, de fato, é uma clara mostra de péssimo design, pelo menos para os padrões humanos, já que não deixam espaço para sistemas back-up e outras salva-guardas, algo que poderia depor contra a competência ou mesmo as habilidades do suposto designer; ou, pelo menos, implicaria em um bizarro senso de humor por parte do mesmo. No entanto, esta organização contingente de muitos sistemas biomoleculares parece perfeitamente plausível em um sistema que evoluiu de uma forma muito mais semelhante ao um processo de bricolagem (veja, por exemplo, Jacob, 1977).
Contudo, a questão chave aqui é que esta primeira parte da definição não é entrave algum para os mecanismos conhecidos da biologia evolutiva. A função atual do sistema, bem como a atual interdependência entre as partes, não reflete necessariamente seu processo de origem evolutiva. O estudo comparativo e a análise de vários cenários teóricos é que podem nos ajudar a compreender como isso é possível. Aliás, o já citado biólogo Allen Orr lembra - no mesmo artigo no Boston Review, ao comentar o livro de Behe - que H.J. Muller, em 1918, já havia reconhecido a questão e proposto uma solução:
"Gostaria de poder reivindicar o crédito para este modelo darwiniano de complexidade irredutível, mas eu estou receoso que eu tenha perdido a primazia por pelos oitenta anos. Este cenário foi sugerido pelo geneticista H.J. Muller em 1918 e apresentado em maiores detalhes em 1939. De fato, Muller dá razões para pensar que os genes que primeiramente melhoram a função, rotineiramente, tornam-se partes essenciais de uma via. Assim, a evolução gradual dos sistemas irredutivelmente complexos não é só possível, como é esperada. Para aqueles que não são biólogos, deixe-me garantir a vocês que eu não ter desenterrei as elocubrações meia-boca de algum amador obscuro. Muller, Prêmio Nobel em 1946, foi um gigante na evolução e na genética" (Allen Orr, 1997).
Mais recentemente Douglas Theobald (2007) ofereceu um modelo, baseado na idéia de Müller, que mostra em grande detalhe como isso pode se dar. Em resumo:
"Com o erro de Behe agora em mãos, temos imediatamente a seguinte solução embaraçosamente fácil para o enigma "irredutível" de Behe. Apenas dois passos básicos são necessários para evoluir gradualmente um sistema irredutivelmente complexo a partir de um precursor em funcionamento:
1. Adicione uma parte.
2. Torne-a necessária.
É muito simples. Após estas duas etapas, a remoção da parte vai destruir a função, mas o sistema foi produzido diretamente e, gradualmente, a partir de um simples precursor funcional. E isso é exatamente o que Behe alega ser impossível. "[Theobald, 2007]
Outra possibilidade havia sido discutida por Cains-Smith e envolvia a evolução de sistemas CI (sentido fraco) a partir de sistemas com um arcabouço prévio, subsequentemente removido/perdido ao longo da evolução do sistema biológico em questão. Como explicam os autores do artigo:
"Assim, a complexidade redundante pode, eventualmente, gerar CI (sob a interpretação fraca). Mais recentemente, o bioquímico e biólogo molecular AG Cairns-Smith propôs a analogia do "andaime" na construção de um arco para explicar a evolução dos sistemas de CI que estão de acordo com Behe (Cairns-Smith, 1986; ver também Orr, 1997; Pennock 2000) . Um arco de pedra clássico tem CI no sentido fraco, porque a estrutura entrará em colapso assim que se remova a pedra fundamental ou uma das outras pedras. O apoio do andaime é necessário na construção de um arco de pedra, mas uma vez que o arco é concluído, o andaime pode ser removido com segurança. Em uma sentido similar, uma estrutura bioquímica pode ter funcionado como um andaime na evolução de um sistema com CI antes de se tornar dispensável e desaparecer. Isto é, "antes da multitude de componentes da bioquímica atual pudessem apoiar-se, uns nos outros, tiveram que se apoiar em algo mais" (Cairns-Smith 1986, p. 61 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Thomas D. Schneider, em uma simulação do processo de evolução de seqüencias de ligação ao DNA, utilizando a plataforma Ev e uma métrica de aquisição de informação baseada na teoria de Shannon, conseguiu mostrar que este processo é completamente factível ao se utilizar mutações e seleção natural (Schneider, 2000).
Na realidade, no ano de 2000, dois cientistas publicaram no Journal of Theoretical Biology um artigo em que analisavam caminhos diretos e indiretos para evolução Darwiniana de sistemas com CI, “interpretação fraca”, e apresentaram quatro vias principais (Thornhill and Ussery, 2000):
Evolução direta serial Darwiniana.
Evolução direta paralela Darwiniana.
Eliminação da redundância funcional.
Adoção de uma função diferente.
Portanto, a alegação de que estruturas biológicas possuam CI, em seu sentido fraco, é algo absolutamente trivial e que não oferece desafio algum à biologia evolutiva moderna (nem à antiga, diga-se de passagem), refletindo apenas uma brutal falta de imaginação de Behe e companhia.
Porém, a segunda parte da definição oferece uma possibilidade que, se demostrada como verdadeira, seria bastante mais complicada para a evolução biológica:
"Um sistema irredutivelmente complexo não pode ser produzido diretamente (isto é, melhorar continuamente a função inicial, continuando a funcionar pelo mesmo mecanismo) por modificações suaves e sucessivas de um sistema precursor, porque qualquer precursor de um sistema irredutivelmente complexo no qual está faltando uma parte é, por definição, não funcional. Um sistema biológico irredutivelmente complexo, se há uma coisa dessas, seria um poderoso desafio à evolução darwiniana" (Behe, 2006, p. 39 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Um sistema como este seria, por princípio, “não-evoluível”. Desta forma, caso algo assim se confirmasse, sua existência constituiria, de fato, um desafio e tanto à biologia evolutiva. Claro, isso aconteceria apenas caso todas as alternativas e possibilidades naturalistas pudessem ser descartadas. Neste caso, estabelecer a quem caberia este ônus de investigação é crucial , mas isso é algo que os adeptos do CDI sempre procuram se evadir, agindo como se fossem os biólogos evolutivos que devessem provar a não-existência desses sistemas com CI, senso forte.
Contudo, sistemas que possuem a CI, em seu sentido fraco, são completamente 'evoluíveis' - se não mantendo exatamente a mesma função, podem sê-lo através de mudanças e co-optações de estruturas para outras funções. Segundo Boudry, Blancke e Braeckman (2010) é esta ambiguidade que permite a Behe rejeitar as refutações e críticas dos cientistas e filósofos e fingir que seu argumento tem algum fundamento, além do trivialmente verdadeiro e desinteressante:
" Behe tem dado um golpe conceitual semelhante ao lidar com as objeções do biólogo molecular Kenneth Miller (2000). Miller admite que alguns sistemas biológicos são CI como Behe os define (versão fraca), mas objeta às conclusões anti-evolucionistas que Behe deriva da CI. Como contra-exemplo da afirmação de Behe, Miller oferece uma reconstrução plausível da história evolutiva do aparelho auditivo, em cinco partes, em mamíferos, que ele alega preencher a definição de CI. Miller demonstra que as partes individuais do aparelho auditivo- martelo, bigorna e estribo, evoluíram a partir da porção posterior da mandíbula dos répteis. É importante notar que, antes de migrarem para o ouvido médio e serem adaptadas para as suas novas finalidades, essas estruturas eram de fato perfeitamente funcionais. Portanto, Miller conclui que a afirmação de Behe (2006, p. 39) de que "qualquer precursor de um sistema irredutivelmente complexo em que está faltando alguma parte é, por definição, não-funcional" é completamente errada. Miller desafia a CI forte e demonstra o ponto crucial de que a "necessidade interconectada [da parte final do sistema funcional] não significa que o sistema não poderia ter evoluído a partir de uma versão mais simples" (2000, p. 139) [Boudry, Blancke, Braeckman, 2010].
Behe quando confrontado com estas críticas, volta para a definição trivial (fraca) e acusa Miller de criar suas próprias definições e, portanto, argumentar contra um espantalho. Porém, a menos que Behe demonstre uma ligação obrigatória entre CI fraca e a CI forte, ou seja, de que a CI implica em não existirem intermediários evolutivos funcionais, os argumentos de Behe são apenas demonstrações de sua incredulidade pessoal, tornando a CI conceitualmente muda.
"Aqui, novamente, o equívoco está na definição de Behe e não na crítica de [Kenneth] Miller. Tendo em conta que Behe trata a CI como se fosse um obstáculo intransponível para a evolução, o que já fica claro a partir do próprio palavreado esclhido para o termo "irredutível", o crítico naturalmente confronta afirmação de Behe de "não-funcionalidade", apontando para as diferentes funções executadas pelos precursores evolutivos dos sistemas com CI, que podem ou não ter contido certas partes presentes no sistema atual (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Afinal, se levarmos em conta que os sistemas biológicos podem adaptar-se, ao longo do curso da evolução, para outra função que não aquela para a qual foram inicialmente selecionados - por exemplo, ao serem integrados como parte de um novo sistema na execução de uma função diferente [processo conhecido como exaptação] – então a alegação de Behe de não-funcionalidade torna-se ou trivial (versão fraca) ou claramente errada (versão forte)" (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
As ambiguidades presentes na proposta inicial de Behe levaram outra figura do movimento dos CDI, William Dembski, a propor uma “correção” para a definição de CI. Em seu livro “No Free Lunch (de 2002), Dembski afirma acreditar que o conceito de CI é "recuperável" (2002:280 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010) e propõe a seguinte definição:
"Definição CIfinal- Um sistema executando uma determinada função básica é irredutivelmente complexo se inclui um conjunto bem-ajustado de peças, mutuamente interagindo, de tal forma que cada parte do conjunto é indispensável para a manutenção básica do sistema e, portanto, da função original. O conjunto dessas peças indispensáveis é conhecido como o núcleo irredutível do sistema (Dembski 2002, p. 285, grifo no original apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Assim, Dembski argumenta, a CI de um sistema é uma simples questão empírica:
Individualmente, nocauteando cada proteína que constitui um sistema bioquímico, determinar-se-á se a função é perdida. Se for, estamos lidando com um sistema irredutivelmente complexo" (Dembski 1999, p. 148 apudBoudry, Blancke, Braeckman, 2010).
O "ajuste" do conceito de CI, oferecido por Dembski, não é mais do que uma reiteração da interpretação fraca, restringindo a definição para a função básica do sistema original. Porém, ao reparar a ambigüidade conceitual presente na versão de Behe, Dembski acaba por tirar toda a possível força do argumento. A CI, concebida desta maneira, é "perfeitamente coerente com vias indiretas e tortuosas, andaimes, e exaptações típicas das explicações biológicas tradicionais" (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010). Boudry, Blancke e Braeckman (2010) sabiamente comentam:
"Assim por que todo o barulho? O colapso da CI nas mãos de Dembski demonstra que a ambiguidade conceitual que ele estava tentando salvar realmente foi muito conveniente para Behe" (Boudry, Blancke, Braeckman , 2010).
As respostas dos defensores do CDI às criticas e demonstrações conceituais de que a CI pode ser alcançada por processos evolutivos (veja Dunkelberg, 2003; Pallen & Matzke, 2006), envolvem simplesmente "reinterpretar" a CI e descartar os exemplos oferecidos.
"A primeira estratégia para este fim consiste em inverter o ônus da prova, da plausibilidade evolutiva para a verdadeira história evolutiva e, assim, protestar que as linhas gerais de uma explicação evolutiva plausível não são nada mais do que um wishful thinking Darwiniano e especulações" (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
A questão, entretanto, é que a CI é constantemente alardeada como um argumento de princípio que excluiria a possibilidade de explicações evolutivas para a origem de um dado sistema, mas tão logo ela é desafiada e um cenário é oferecido, absolutamente consistente com a boa e velha biologia evolutiva, o CDI passa a exigir não só um cenário plausível e evidências mais gerais, mas detalhes cada vez mais extremos, às vezes, afirmando que estava falando de caminhos evolutivos reais desde o tempo todo.
O pior é que quando os teóricos do CDI são confrontados com uma evidência tangível da história evolutiva real (Schneider, 2000, Lenski, Ofria et al., 2003, Adami, 2006, Bridgham, Carroll, Thornton, 2006) estes recorrem a uma segunda estratégia, mudando as alegações de design para as peças restantes do quebra-cabeça evolutivo, como se o problema "real" sempre estivesse por lá.
Por exemplo, Kenneth Miller (2004 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010) demonstrou muito bem a semelhança estrutural entre um dos componentes do flagelo e um sistema-secretor tipo III de toxinas bacterianas:
" Ele foi convincente ao argumentar que o primeiro é um precursor evolutivo muito plausível deste último, que foi cooptado pela evolução para realizar uma nova função (ver também Pallen e Matzke 2006). Em resposta a esta demonstração embaraçosa, Behe (2001, pp 689-690) simplesmente voltou sua atenção para a complexidade do sistema recém-descoberto, enquanto ao mesmo tempo, insistindo teimosamente que o conjunto destes precursores no sistema flagelo ainda é impossível sem a ajuda de um Designer" (Behe, 2004, p. 359 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
"À luz destes subterfúgios, pode-se perguntar se há alguma quantidade de evidências genéticas comparativas, ou de qualquer nível da reconstrução evolutiva, que faria Behe e seus aliados abandonar suas reivindicações de design. Por causa do desleixo do crédito da CI probabilística, o que não é baseado em uma quantificação séria de probabilidades, os teóricos do CDI podem continuar a elevar o nível de prova, até um ponto onde o conceito de CI é levantado fora do domínio empírico completamente (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010)".
Quando pressionado é, exatamente, esta a estratégia de Behe, pois para ele apenas uma descrição completa, quantitativa e totalmente detalhada do que realmente aconteceu, ao longo das eras , seria capaz de convencê-lo de que os sistemas com CI teriam sua origem através da evolução biológica por mecanismos naturais (veja Behe, 2007 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010). Em seu depoimento no julgamento de Dover, Behe admitiu:
"Não só eu precisaria de uma análise mutação por mutação, passo-a-passo, como eu também gostaria de ver as informações pertinentes, tais como qual é o tamanho da população do organismo, em quem estas mutações estão ocorrendo, qual é o valor seletivo para a mutação , se existem efeitos deletérios da mutação, e muitas outras questões desse tipo." (2005, p. 19 apud Boudry, Blancke, Braeckman, 2010)
Todo o ônus é atirado nos biólogos evolutivos e nada precisa ser oferecido como contrapartida para evidenciar o suposto Designer por parte dos defensores do CDI. Como deixam bem claro Boudry, Blancke & Braeckman (2010), tal exigência é simplesmente absurda, e nunca poderia ser cumprida em qualquer outro domínio científico.
John Calano (2004) faz o seguinte comentário em relação a esta atitude de Behe:
"Para ser honesto, eu suspeito que o grau de pormenor que Behe demanda exigiria uma combinação de laboratório de bioquímica de ponta e uma máquina do tempo. De que outra maneira a ciência poderia recuperar totalmente, por exemplo, cada passo na evolução do flagelo bacteriano, que teve lugar bilhões de anos atrás?"
A despeito das incríveis demandas de Behe - que exigem um nível tão elevado de evidências para a evolução biológica de sistemas, que ele afirma serem possuidores de CI - o próprio Behe parece completamente indisposto a trazer para o concreto sua hipótese sobre o Designer, em qualquer nível que seja. De fato, Behe insiste que os motivos e caráter do designer são, simplesmente, inescrutáveis, portanto, não nos dando nenhuma pista quanto ao seu modus operandi e nem nos oferecendo pistas de como detectá-lo de forma independente (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010):
"Quanto ao pedido de Behe para o conhecimento completo e detalhado sobre a história evolutiva, Pigliucci (2002, p. 240) alertou os biólogos para não serem superconfiantes ao aceitar os desafios criacionistas, e não confundir reconstruções parciais e cenários plausíveis com uma compreensão completa do desenvolvimento evolutivo. De fato, os teóricos evolucionistas são aconselhados a explicar por que o ônus da prova no qual insistem os criacionistas é um absurdo, e apontar que o conhecimento científico nunca será completo a este respeito" (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
Em franco contraste com a atitude de Behe, os cientistas podem citar, como exemplos de linhas investigativas, experimentos como os conduzidos pelo o grupo de Joseph W. Thornton - com a reconstrução filogenética e expressão in vitro, através da tecnologia do DNA recombinante, de estados ancestrais de receptores de glicocórticoides - que mostram um nível de detalhamento que Behe e os defensores do CDI jamais conseguiriam alcançar (Bridgham, Carroll, Thornton, 2006; Adami, 2006). Na falta de uma máquina do tempo, esta combinação de estratégias experimentais e de métodos de análise filogenética cumpre muitíssimo bem seu papel. Esta é a chamada "síntese funcional", como é bem explicado no resumo de um artigo de Thornton (Dean and Thornton, 2007):
Uma síntese emergente da biologia evolutiva com a biologia molecular experimental está fornecendo inferências muito mais forte e profundas, sobre a dinâmica e os mecanismos da evolução do que era possível no passado. A nova abordagem combina análise estatística das sequências de genes com experimentos de manipulação molecular para revelar como as mutações antigas alteraram os processos bioquímicos e produziram novos fenótipos. Esta síntese funcional montou o palco para grandes avanços em nossa compreensão de questões fundamentais da biologia evolutiva. Aqui nós descrevemos esta abordagem emergente, evidenciando importantes novos insights tornados possíveis e sugerindo caminhos futuros para o campo.
Para Boudry, Blancke e Braeckman (2010), contudo, o que é realmente desonesto na postura de Behe é que este desafio absurdo, em que o ônus é desviado para os cientistas e não aceito pela teoria alternativa rival, é que a demanda de um relato evolutivo completo e passo-a-passo dos sistemas de CI não está escrita desde o início, mas é uma revisão tardia de sua pretensão inicial, com base em ambiguidades na sua definição de CI.
"Em A Caixa Preta de Darwin, Behe nos deixa com a impressão de que o alegação da não-evolutividade da CI é, em princípio, fácil de contestar, mas quando seus críticos assumem o desafio, como vimos na discussão com Pennock e Miller, Behe simplesmente desvia e foge como um coelho acuado. Assim, o que resta do argumento de Behe resume-se ao mesmo velho "argumento da incredulidade pessoal" (Dawkins 1991, p. 38), que está muito longe do "critério objetivo" para o Design que os teóricos do CDI haviam prometido" (Boudry, Blancke, Braeckman, 2010).
A análise proposta por Boudry, Blancke e Braeckman (2010) é bastante rica e de fácil assimilação. Este artigo fornece uma perspectiva muito valiosa que nos permite lidar melhor com os ataques criacionistas e sua caixa de ferramentas retóricas. Os tópicos levantados evidenciam alguns exemplos de como o discurso anticientífico se utiliza das equivocações e ambuiguidades e desvia o foco das questões pertinentes sempre que necesssário, invertendo o ônus e se mantendo constantemente em movimento. Além disso, complementam outro trabalho de dois destes mesmos autores sobre estratégias de impermeabilização epistêmica utilizadas por movimentos pseudocientíficos (Boudry and Braeckman, 2010). Portanto, leiam e aproveitem o artigo.
_____________________________________________________________________
Referências:
Boudry, M., Blancke, S., & Braeckman, J. (2010). Irreducible Incoherence and Intelligent Design: A Look into the Conceptual Toolbox of a Pseudoscience The Quarterly Review of Biology, 85 (4), 473-482 DOI: 10.1086/656904; que pode ser encontrado em http://sites.google.com/site/maartenboudry/irreducible-incoherence
Referências adicionais:
Adami C. Evolution. Reducible complexity. Science. 2006 Apr 7;312( 5770):61-3. PubMed PMID: 16601180.
Behe, Michael (1997) A caixa preta de Darwin: O desafio da bioquímica à teoria da evolução Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor ISBN: 978-85-7110-412-9.
Bridgham JT, Carroll SM, Thornton JW. Evolution of hormone-receptor complexity by molecular exploitation. Science. 2006 Apr 7;312(5770):97-101. PubMed PMID: 16601189.
Boudry, M, and Braeckman, J. (2010). Immunizing strategies & epistemic defense mechanisms. Philosophia, 10.1007/s11406-010-9254-9.
Catalano, John [editado] [Text updated: October 16, 2001; Links updated: January 25, 2004] Publish or Perish: Some Published works on Biochemical Evolution The talkorigin Archives.
Dean AM, Thornton JW. Mechanistic approaches to the study of evolution: the functional synthesis. Nature Reviews Genetics 8:675-688, 2007.
Dunkelberg P (2003). Irreducible complexity demystified. Talk Reason
Forrest BC and Gross PR (2007) Creationism's Trojan horse : the wedge of intelligent design (Updated). Oxford, Oxford university press
Jacob F. Evolution and tinkering. Science. 1977 Jun 10;196(4295):1161-6. PubMed PMID: 860134.
Lenski RE, Ofria C, et al. (2003) The evolutionary origin of complex features. [Article]. Nature 423(6936):139-144
Miller KR (2000) Finding Darwin's God : a scientist's search for common ground between God and evolution. New York (N.Y.), HarperCollins
Miller KR (2004) The flagellum unspun. The Collapse of "Irreducible Complexity". In W. Dembski and M. Ruse (Eds.), Debating design: from Darwin to DNA (pp 81-98)
Orr AH (1997) Darwin vs. Intelligent Design (again): The latest attack on evolution Is cleverly argued, biologically informed—and wrong. BRev 22(6)
Pallen MJ and Matzke NJ (2006) From The Origin of Species to the origin of bacterial flagella. Nature Reviews Microbiology 4(10):784-790
Pennock RT (1999) Tower of Babel : the evidence against the new creationism. Cambridge (Mass.), MIT press
Pennock RT (2000) Lions, Tigers and APES, Oh My! Creationism vs. Evolution in Kansas. Paper presented at the AAAS Dialogue on Science, Ethics and Religio
Perakh M (2002). A free lunch in a mousetrap Retrieved January 7, 2010
Schneider TD. Evolution of biological information. Nucleic Acids Res. 2000 Jul 15;28(14):2794-9. PubMed PMID: 10908337; PubMed Central PMCID: PMC102656.
Theobald, Douglas (Last Update: July 18, 2007) The Mullerian Two-Step: Add a part, make it necessary or, Why Behe's "Irreducible Complexity" is silly Version 1.1
Thornhill RH, Ussery DW. A classification of possible routes of Darwinian evolution. J Theor Biol. 2000 Mar 21;203(2):111-6. PubMed PMID: 10704296.
Young M and Edis T (2006) Why intelligent design fails : a scientific critique of the new creationism. New Brunswick, N.J., Rutgers University Press
Veja também os links disponibilizados em:
Irreducible Complexity and Michael Behe Do Biochemical Machines Show Intelligent Design? Talkorigin Archives
Créditos das figuras:
SCIENCE PHOTO LIBRARY:
STEVE GSCHMEISSNER / SCIENCE PHOTO LIBRARY
EYE OF SCIENCE / SCIENCE PHOTO LIBRARY
BSIP, GILLES / SCIENCE PHOTO LIBRARY
RAMON ANDRADE 3DCIENCIA / SCIENCE PHOTO LIBRARY
DAVID PARKER / SCIENCE PHOTO LIBRARY
Wikicommons:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lapki.jpg(Autor:Jerry mouse)