Inteligente o quê?
Em um 1809 nem tão distante assim, o reverendo William Paley publica a sua teologia natural, repisando um argumento antigo em nossa cultura: as belas e adaptadas formas da natureza são belas e adaptadas demais para terem surgido por mero acaso, então, algum arquiteto inteligente deve estar por trás de tudo. Idade por si só não torna um argumento ruim, tanto que hoje, após dois séculos de construção e consolidação das teorias evolutivas, estamos nós aqui às voltas com essa mesmíssima questão.
A notícia: a respeitada instituição científica norte-americana Smithsonian vai abrir um de seus auditórios para a apresentação do vídeo “Planeta Privilegiado”,após uma contribuição do Discovery Institute (que produziu o vídeo) de U$16.000 para os cofres da entidade. O conteúdo do vídeo: a tese de Paley em versão moderna e high-tech, apelidada de “teoria do design inteligente”. Contribuições para uma instituição científica são sempre bem-vindas, mas não teríamos aqui um caso clássico de venda de alma? Há quem considere a tese de um arquiteto divino uma alternativa científica, com todos os méritos. Não é. Eu admito que esse é um assunto delicado, pois esbarra nas crenças religiosas de muita gente, mas é preciso separar o joio do trigo, e nisso eu tenho a grande maioria das religiões ao meu lado. Toda visão de mundo pode e deve ser respeitada, assim como, do mesmo modo, deveríamos respeitar as fronteiras entre os domínios de atividade humana. Para uma explciação ser considerada científica, é necessário que passe por certos procedimentos de validação, e o argumento da incredulidade pessoal (aquele que diz “isso é tão improvável que precisa ter uma causa milagrosa”) certamente não é um deles. Acontece que essa é justamente a proposta do design inteligente, um nome que chega a ser irônico para designar tanta preguiça intelectual.
Quem acha que esse é um quiprocó exclusivo de nossos vizinhos ianques pode estar perigosamente enganado. Nós, brasileiros, desfrutamos uma relativa imunidade ao equivocado debate entre religião e ciência - alimentado nos EUA pelas piores razões políticas - mas a tese do design inteligente ganha alguns adeptos pelo mundo levantando bandeiras bem mais honrosas: a liberdade da expressão e a igualdade de direitos. Nessa perspectiva, que mal pode haver em ensinar o design inteligente em nossas escolas e universidades, em pé de igualdade com “outras teorias”? Antes que o seu político local corra para apoiar a iniciativa, é bom lembrá-lo que essa é apenas mais uma maneira do conservadorismo insinuar-se pelas portas dos fundos da educação científica. E isso não é só desastroso: é burro.
Publicado no jornal O Tempo, 13 de junho de 2005