Como se encaixam as estruturas intermediárias no processo evolutivo?
P: Como se encaixam as estruturas intermediárias no processo evolutivo? Como um ser sem asas torna-se um ser alado, se meia asa não tem utilidade alguma? E como estruturas não-determinantes para a sobrevivência sofrem deriva genética (se este for o termo correto)?
Vamos por partes. Primeiro respondendo as suas primeiras duas questões: “Como se encaixam as estruturas intermediárias no processo evolutivo? Como um ser sem asas torna-se um ser alado, se meia asa não tem utilidade alguma?”, começando pela segunda:
Quem disse que ‘meia asa’ não tem utilidade alguma? :) 'Meia asa’ pode sim ser melhor que 'asa nenhuma’, principalmente, dependendo do se entende por 'meia asa’, lembrando que tal termo é claramente um termo vago e impreciso. Um outro esclarecimento importante que deve ser feito é o de que expressões como 'estruturas intermediárias’ não significam que estas estruturas (sejam elas moléculas, redes metabólicas, tecidos, órgãos, sistemas, apêndices, etc) sejam de alguma forma absoluta incompletas, mal formadas ou não funcionais em qualquer sentido biológico importante. Não, este é um erro comum e frequentemente incorrido pelos criacionistas.
Expressões como esta querem dizer simplesmente que certas estruturas biológicas exibem níveis intermediários de derivação (dos seus estados de caráter) entre as formas mais ancestrais e as das formas mais derivadas exibidas pelos exemplares de outros grupos de organismos aparentados entre si. Assim um pulmão de um peixe pulmonar não é um pulmão incompleto ainda que possamos admitir que seja mais simples (estruturalmente) que um pulmão de um vertebrado tetrápode terrestre, já que ambos são completamente funcionais e permitem a sobrevivência de seus portadores, mesmo que em circunstâncias ecológico-fisiológicas distintas. Porém isso não é tudo, pois as estruturas em estados intermediários de derivação podem mesmo ser mais complexas e mais eficientes (em algum aspecto específico, como em seu desempenho bioquímico, biofísico, fisiológico, biomecânico etc) do que as equivalentes dos outros grupos que delas se originaram.
A diferença entre estruturas (ou melhor dizendo, dos estados de caráter das estruturas) entre primitivas e derivadas, só estabelece quem teria vindo primeiro (as primitivas ou ancestrais, no caso) e as que teriam vindo depois, tendo se originado (derivado) a partir de modificação do estado das estruturas mais antigas (dando origem as derivadas), seja por acréscimo de partes, modificação das relações entre elas ou mesmo fusão e perda das mesmas. Para uma melhor compreensão destas questões e da terminologia eu aconselho os ótimos posts da Ester de Oliveira no evolucionismo.org [“Filogenia Mastigada 1: Princípios de Filogenia e conceitos básicos”, “Filogenia Mastigada 2: Polarização de Séries de Transformações e o conceito de Homoplasia”, “Filogenia Mastigada 3. Grupos Monofiléticos e Merofiléticos e a filosofia por detrás da Filogenia” e “Filogenia Mastigada 4 : Interpretando uma árvore filogenética – parte ½”] e os dois posts traduzidos sobre o mesmo tema ”Uso e Abuso do registro fóssil: Definição dos Termos Parte I” e “Uso e Abuso do registro fóssil: o caso do “Peixíbio” - Parte II” de autoria da paleontóloga Penny Higgins.
Portanto, quando você emprega um termo como 'meia asa’ deve ficar claro que isso não deve significar que você espera uma asa moderna pela metade, por exemplo, pois neste caso isso não faz qualquer sentido de uma perspectiva biológica moderna. O que poderíamos pensar fazendo uma interpretação mais caridosa da expressão é que 'meia asa’ significaria uma estrutura com algumas das características possuídas pelos membros dianteiros das aves modernas, ou seja, suas asas (como penas, por exemplo. Veja também sobre evolução das penas “Penas: marcas indeléveis da evolução das aves” e “Penas, para que te quero?”) mas sem outras (como a capacidade de sustentar voo propulsionado), sendo desta maneira, encarada como uma característica intermediária ou de transição.
Então, perceba que uma vez entendido este simples fato, torna-se perfeitamente possível compreender que, embora a 'estrutura intermediária’ não fosse ela mesma capaz de desempenhar a função de seus equivalentes modernos, ela não era necessariamente destituída de função e portanto não podemos dizer que ela não servia para nada. Compreende? Esta é uma confusão habitual que parece ser ativamente procurada pelos criacionistas, ou seja, usar definições que não fazem muito sentido e claramente não refletem o que os biólogos evolutivos (e sistematas e biólogos comparativos, de modo mais específico) investigam e tentar imputá-las aos biólogos para fazer parecer que os conceitos não fazem sentido, quando são as versões e interpretações criacionistas deles que não fazem. Cuidado com esta armadilha.
Por exemplo, mesmo se 'meia asa’ não servir exatamente para o voo propulsionado, pode ser completamente adequada para estabilizar e reduzir a velocidade de descida após saltos de lugares mais atos ou mesmo para o voo planado, podendo também ser eficiente na manutenção do equilíbrio na subida de planos inclinados [veja ““Ladeira acima e morro abaixo”: Pistas para a evolução do vôo nas aves”, “Dinossauros 'agachados’ e o voo das aves”] ou no ataque e imobilização de presas que se debatem embaixo do animal 'semi-alado’ [veja ’estabilização por batidas’, veja aqui também] , sem mencionar que pode ter papel nos rituais de côrte. Muitas destas outras funções ainda estão presentes nas asas modernas e é nelas que os biólogos evolutivos vão buscar insights para compreender como as asas e o voo evoluíram, tendo como base os estudos filogenéticos comparativos e a análise funcional (por exemplo, cinemática, biomecânica e aerodinâmica) das aves modernas e dos fósseis de organismos extintos a elas aparentados. Veja também estes links, aqui, aqui e aqui sobre a evolução do voo nos vertebrados que, por sinal, ocorreu em pelo menos três linhagens de maneira independente envolvendo o recrutamento de diferentes dedos dos membros dianteiros na formação das asas e em dois deles envolvendo a evolução de membranas e em outra penas como parte do sistema de suporte aerodinâmico, mostrando como caminhos diferentes existem.
O caso da evolução do voo é bastante interessante, pois a evolução de estruturas adaptadas ao voo propulsionado ocorreu, pelo menos, três vezes de maneira independente entre os vertebrados: nos pterossauros, nas aves e nos morcegos. Em todos os casos, o voo teve origem a partir da modificação dos membros dianteiros, mas de maneira distinta, com os morcegos e os pterossauros evoluindo membranas e as aves penas e em cada caso com a cooptação de dedos diferentes na formação das asas.
[Ao lado uma asa de morcego genérica (hum= úmero, u= ulna, r= radio, c= carpo, ca= calcar, I-V= dedos numerados. Adaptado de Padian (1985) citado e retirado deste site.]
[Ao lado uma asa genérica de aves (hum= úmero, u= ulna, r= radio, c= carpo, mc= metacarpo, I-III= dedos numerados, . Adaptado de Padian (1985) citado e retirado deste site.]
[Uma asa de genérica de pterossauro (hum= úmero, u= ulna, r= radio, mc= metacarpo, pt= pteroide, c= carpo, I-IV= dedos numerados. Adaptado de Padian (1985) citado e retirado deste site.]
Observe este cenário proposto por Kurochkin e Bogdanovich (2008) [e citado aqui] para dar conta da evolução das penas que deu origem a evolução da 'penas penáceas’ e ao voo propulsionado, ilustrando o modelo arbóreo. Em dois I e II podemos ver que originalmente as penas (bem simples similares as plumas e penugens) eram provavelmente importantes para a termorregulação e talvez para a exibição e côrte; em III, com adoção de um estilo de vida mais arbóreo, as penas do corpo podem ter fornecido ancestrais das aves uma melhor sustentação aerodinâmica durante saltos entre os ramos; já em IV e V, as penas penáceas simples sobre os membros anteriores podem ter permitido uma queda mais controlada, funcionando como um paraquedas; subsequentemente, em VI, a modificação e aumento do tamanho das penas penáceas cujas barbas simétricas poderiam ter gerado maior sustentação e, assim, permitido o voo planado. Em VII, com a evolução de penas assimétricas o voo planado pode ter se tornado mais eficiente aumentando a manobrabilidade dos animais; e, por fim, com a evolução de musculatura mais robusta, em VIII, teria o voo propulsionado evoluído.
Outra possibilidade é o “modelo cursorial” que propõem que o voo evoluiu a partir de dinossauros terópodes predadores que corriam atrás de suas presas [veja aqui, por exemplo] e ilustrado na figura abaixo retirada de Burges e Chiappe.
Ambos os modelos ('arbóreo’ e 'cursorial’) tem seus problemas, mas como já indicado existem outras evidências que apontam para outras propriedades das batidas de asas que podem ter tido um papel mais fundamental no inicio da evolução do voo planado e/ou propulsionado que teriam servido de intermediárias neste processo, como o fato de que, nas primeiras fases de desenvolvimento pós-natal, algumas aves conseguirem correr e subir por superfícies inclinadas empregando um determinado padrão de batimento de asas para gerar mais tração em suas patas traseiras. Este é um exemplo claro do para que 'meia ave’ ou 'meia batida’ serviria, quando interpretamos tais expressões de uma maneira mais precisa e biologicamente informada.
Portanto, em nenhum momento as fases ou estágio intermediários e as estruturas correspondentes foram não-funcionais, apenas desempenhavam funções distintas, algumas delas ainda presentes, especialmente nas primeiras fases de desenvolvimento ontogenético das aves.
O mesmo raciocínio serve para outros órgãos complexos, como os olhos, sobre os quais encontramos exemplos variados mesmo dentro de um grupo de animais modernos como é o cado dos moluscos gastrópodes, grupo no qual podemos observar desde animais com simples superfícies sensíveis à luz até animais com olhos complexos com lentes, além de olhos formados por cavidades com aberturas mais largas e outros com cavidades e aberturas mais estreitas etc [Veja esta resp
osta, por exemplo]. Cada um deste tipos de olhos atende perfeitamente as necessidades dos seus portadores e portanto é completamente funcional ainda que sirvam para funções relacionadas, mas distintas que vão desde a simples detecção de luz e sombras até a formação de imagens precisas.
O equívoco está em postular que as funções e configurações atuais das estruturas sejam as únicas possíveis. Este é um princípio importante no estudo moderno da evolução: a função corrente de uma estrutura não é necessariamente a função original que a fez (na verdade, a estrutura que lhe deu origem) tornar-se vantajosa aos seus portadores e, assim, influenciar no seu sucesso reprodutivo ampliando sua proporção na população ao longo das gerações. O mesmo equívoco pode ser observado no conceito de complexidade irredutível que confunde a função de um sistema biomolecular (bem configuração e interdependência dos componentes) complexo com sua origem evolutiva. Veja mais sobre esta questão neste post “Incoerência irredutível”.
[A figura ao lado foi retira de Kutschera U, Niklas KJ. 2004 que por sua vez a haviam criado a partir de Salvini-Plawen e Mayr, 1977; e Nilsson e Pelger 1994]
Ao longo da história evolutiva de uma estrutura, além do fato dela poder tomar caminhos distintos em diferentes grupos derivados do grupo ancestral, sua função precisa pode mudar, muitas vezes sendo a estrutura oportunisticamente cooptada para uma nova função que pode tanto continuar mais ou menos similar, como no caso dos olhos (proporcionar orientação do animal em relação a estímulos luminosos), como também, algumas vezes, pode alterar-se bastante, como as evidências científicas apontam ter sido o caso das penas da aves, que originalmente estavam associadas a regulação térmica em dinossauros terópodes não-avianos, mas que, ao longo da evolução da aves, acabou sendo cooptada para a sustentação do voo planado e, mais tarde, para o voo por batimento ativo das asas.
Em relação a sua última pergunta, “E como estruturas não-determinantes para a sobrevivência sofrem deriva genética (se este for o termo correto)?”, não sei se entendi bem qual seria sua dúvida.
A princípio, no caso de estruturas que como vc diz seria 'não-determinantes’ para a sobrevivência dos organismos, seu destino evolutivo depende basicamente do acaso, já que a posse ou ausência delas por parte de um individuo não influenciaria diretamente suas chances de sobreviver e procriar, por definição. Neste caso, sim, o destino destas estruturas pode depender da deriva genética aleatória [veja aqui também] dos alelos (variantes de um gene) que estão associadas a produção da característica em questão.
A deriva genética aleatória ocorre por que as taxas de sobrevivência e reprodução dos organismos muitas vezes variam ao acaso, ou seja, não dependem diretamente da seleção natural, isto é, não são determinadas pelo efeito direto que a característica fenotípica em questão (que varie entre os indivíduos em uma população) supostamente conferiria aos seus portadores em termos vantagens ecológicas em detrimento dos não portadores. Se as características não influenciam no desempenho ecológico - por exemplo, predar mais eficientemente, obter mais parceiros, colocar mais ovos, cuidar melhor de sua ninhada, evitar doenças etc – sua permanência, disseminação, ou perda nas populações ao longo das gerações será definida pelo acaso, dependendo principalmente da sua frequência inicial e do tamanho da população que são os principais fatores que influenciam a deriva genética.
Como eu disse, normalmente este tipo de fenômeno ocorre quando as características que diferem de um indivíduo para o outro não causam diferenças no sucesso reprodutivo (mesmo que sejam funcionais, entenda bem), sendo neste sentido equivalentes, ou 'seletivamente neutras’. Porém, mesmo que algumas destas características variantes confiram certas vantagens em relação as outras, dado o tamanho da população e dependendo do tamanho das vantagens conferidas, ainda assim, existe a chance de mesmo os indivíduos menos adaptados (no sentido do desempenho esperado a partir da posse de uma dada variante fenotiípica) ao acaso terem um maior sucesso reprodutivo. Neste caso precisamos diferenciar o sucesso reprodutivo esperado em virtude da posse de alguma característica, ou seja, sua adaptatividade (que veem da sua adequação ecológico-funcional ou seja do ajuste entre o organismo e seu meio), do sucesso reprodutivo de fato que observamos que pode tanto se dar pelo acaso como pelo efeito da seleção. Entendemos isso melhor se nos dermos conta que mesmo clones, geneticamente idênticos, podem variar em relação ao seu sucesso reprodutivo, mesmo que seus genótipos sejam virtualmente idênticos e seus fenótipos completamente equivalentes. De maneira semelhante, mesmo aqueles indivíduos cujos fenótipo lhes confeririam vantagens óbvias e grandes em relação aos demais indivíduos da população podem, eventualmente, sucumbir por fatores não relacionados as suas características vantajosas, o que será tanto mais comum quanto menor for a frequência do fenótipo (e do genótipo associado), o tamanho da população e a vantagem relativa que ele (o fenótipo específico) confere aos seus portadores.
Então, estas flutuações ao acaso nas taxas de sobrevivência e reprodução dos organismos, em geral, têm pouco impacto em populações grandes (embora tenham sempre algum impacto pois toda população é finita e flutua de tamanho a longo prazo), mas podem ser muito importantes em populações menores, especialmente as submetidas ao efeito fundador e a gargalos de garrafa que envolvem reduções nos tamanhos das populações. Isso é assim por nestes casos em que as populações são pequenas, de uma geração para outra, pode ser alterada a representatividade dos diferentes fenótipos e genótipos, de maneira análoga aos chamados erros aleatórios de amostragem em estatística que acontecem quando amostras muitos pequenas são retiradas de uma população. Então, se temos uma população de 1000 indivíduos com uma proporção de 950:50 (1:19) entre dois tipos de indivíduos, A e B, seria muito improvável, caso tomássemos uma amostra de 100 indivíduos encontrarmos uma proporção muito diferente de 1:19, muito menos algo como 19:1. Mas o mesmo já não seria tão estranho se nossa amostra fosse de apenas 20 indivíduos. Na realidade, mesmo sendo ainda pequena, haveria uma probabilidade nada desprezível de obtermos a proporção contrária, ou seja, de 1:20, invertendo completamente as expectativas, sendo, nesta caso, esta nova amostra completamente não representativa da população original.
No caso de estruturas 'não determinantes para a sobrevivência’ - ou seja, cuja posse ou não (ou variação) nelas não causasse diferenças sistemáticas no sucesso reprodutivo esperado de seus portadores - sua permanência na população, perda ou fixação ocorrerá ou em função da deriva genética ou, secundariamente, pelo efeito carona ou por causa das vantagens ou desvantagens de estruturas a elas genético-desenvolvimentalmente correlacionas.
No caso do “efeito carona” (ou “genetic draft” ou “'arrasto’ genético”), o que acontece é que os alelos associados as características 'não-determinantes da sobrevivência’, encontram-se em proximidade física nos mesmos cromossomos (por exemplo) as dos locus dos alelos de uma característica vantajosa que rapidamente se expande pela população por efeito da seleção natural. Quando isso ocorre, muitos alelos neutros (ou até mesmo ligeiramente desvantajosos), cujos locus encontram-se muitos próximos aos locus dos alelos vantajosos são também arrastados e expandem-se em proporção, diminuindo a variabilidade nestas regiões. Neste segundo caso, embora possamos dizer que os organismos foram selecionados e portanto os genes das características 'não determinantes’ também o foram, o processo de seleção não ocorreu por causa destas características 'não determinantes’ em si, mas foi uma decorrência dos efeitos de outra característica cujos alelos encontravam-se em locus próximos aos dos alelos das outras características não-determinantes. Elas como o nome do efeito diz, simplesmente pegaram carona em outra característica. Esta ligação entre os dois conjuntos de alelos pode ser quebradas pelo efeito da recombinação, sendo maior esta possibilidade de quebra de ligação quanto maior for a distância física entre os loci dos dois tipos de alelos nos cromossomos. Então, tanto no caso da deriva genética como no caso do efeito carona, em ambas as situações, as características ’não-determinantes para a sobrevivência’ dos indivíduos expandiram-se na população em virtude do acaso, por meio de processos estocásticos, um bem direto e o outro indireto - este ultimo secundariamente a um processo direcional, a seleção natural. Neste sentido, as características expandiram-se na população por processos não adaptativos.
Por fim, existe, como eu havia mencionado, uma terceira possibilidade também não adaptativa de que características 'não determinantes’ sejam fixadas (isto é, atinjam 100% de frequência) em uma população e tornem-se a norma. Neste último caso, a característica 'não-determinante’ está ligada diretamente a uma característica determinante à sobrevivência do indivíduo e que portanto pode ser selecionada. Diferentemente do caso do efeito carona, esta ligação não é simplesmente contingente e em geral não pode ser quebrada facilmente, como no caso do efeito carona que pode ser desfeito por meio da recombinação. Neste caso, as duas estruturas podem ser produzidas pelo mesmos alelos através da chamada pleiotropia, sendo por exemplo a característica 'não determinante’ um subproduto do desenvolvimento ontogenético da característica selecionada, o que pode ocorrer por causa da dinâmica (e das restrições físicas e químicas) dos processos de interação entre células, tecidos e sistemas.
Neste contexto as estruturas 'não-determinantes’ seriam exemplo daquilo que Richard Lewontin e Stephen jay Gould chamaram de ’spandrels’ que são características que surgem como subprodutos 'arquiteturais’ - isto é, dos processos e mecanismos genético-desenvolvimentais de [auto]construção dos organismos -, ou sequelas, de outras características. Este tipo de fenômeno é tanto mais esperado quanto mais complexa e cheia de partes e subpartes for uma estrutura, pois maior será a chance de que algumas destas partes (ou dos processos que as geram) terem efeitos adicionais. Este fenômeno é particularmente importante por que serve como uma fonte de novas estruturas que podem, eventualmente, mostrarem-se úteis e, aí sim, passarem elas mesmas a serem adaptativas, sendo mais modificadas por meio da seleção natural para a nova função, caso passe a haver variações que sujam nelas que tenham um impacto causal na sobrevivência e reprodução diferencial dos seus portadores.
Portanto, quando compreendemos que as funções correntes de um organismo (e o arranjo atual das estruturas que as subjazem) não refletem necessariamente suas origens evolutivas fica mais fácil de compreender como novas funções e características podem surgir a partir de outras e de mudanças originalmente não importantes, mas que com o tempo passam a ser essenciais.
Veja o exemplo recente de um estudo da evolução de redes metabólicas de bactérias Escherichia coli executado por Andreas Wagner e Aditya Barve [“Além da seleção natural II: Complexidade e novas funções por caminhos alternativos” e veja também este outro post sobre a importância de processos não-adaptativos, “Fatores não adaptativos e a evolução da regulação gênica em procariontes”]. Neste estudo, ao simular a evolução de redes metabólicas para o uso de um substrato específico, os pesquisadores puderam verificar que surgiram, como subprodutos das modificações nestas redes, capacidades novas de metabolizar outros substratos, o que poderia gerar novas utilidades que aí sim poderiam passar a guiar o processo de seleção natural. Esta é a base do processo de ’exaptação’, termo criado por Gould e Elizabeth Vrba que descreve o processo no qual uma nova função pode emergir a partir de uma propriedade ou característica secundária (incidental não-adaptativa) de uma outra característica ou pela cooptação de uma característica adaptativa para outra função, mudando a natureza e direção das pressões seletivas.
Note bem que neste caso, como as mutações continuam sempre ocorrendo, o processo de seleção natural age principalmente mantendo a função principal original (seleção estabilizadora e purificadora), muitas vezes com a seleção positiva servindo apenas para remendar eventuais problemas que podem, por exemplo, acontecerem por efeitos como a deriva genética e o efeito carona [Veja mais sobre isso nestes dois posts “Além da seleção natural ou a importância da evolução neutra” e “O preço da complexidade”] ao fixarem mutações ligeiramente desvantajosas. Como estes remendos dependem de outras mutações aleatórias não a qualquer garantia que a rede metabólica irá manter seu padrão de interação original, já que a própria seleção natural só depende do efeito do fenótipo geral (no caso da rede como um todo, sobre a performance metabólica dos indivíduos) e não de seus detalhes moleculares, a menos que eles causem diferenças apreciáveis na aptidão dos indivíduos. Portanto, tudo que puder variar, provavelmente, irá variar.
O mesmo vale para proteínas, complexos proteicos, propriedades das células, tecidos, órgãos, sistemas etc. Assim é praticamente inevitável que, ao longo do tempo, sob a interação de mutações, deriva genética (e outros efeitos estocásticos), vários regimes de seleção etc, surjam novos padrões, interações e estruturas que, eventualmente, podem mostrar-se úteis para uma nova atividade, aí sim, caso que pequenas variações neles sejam mais vantajosas para os indivíduos que as portam, passarem a ter um maior sucesso na reprodução (em virtude desta nova característica) do que outros.
Infelizmente, esta simples constatação pode não ser percebida se, ao invés de darmos atenção aos dados comparativos e fósseis (encarando-os em a partir de uma perspectiva filogenética), simplesmente, nos detivermos nas funções atuais (mais óbvias) e nos padrões atuais de organização das estruturas, postulando que estas são as únicas possíveis e qualquer coisa diferente disso não é aceitável. Boa parte da objeção à evolução e à moderna teoria evolutiva vem deste tipo de postura que nega as evidências e distorce os conceitos, modelos e hipóteses evolutivas, atacando caricaturas delas.
Espero que eu tenha conseguido sanar algumas de suas dúvidas. Caso contrário, não acanhe-se e por favor volte a perguntar.
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Literatura Recomendada:
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Hutchinson, John R. Biomechanics: Early birds surmount steep slopes Nature 426, 777-778 (18 December 2003) doi:10.1038/426777a
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Gould, Stephen Jay and Lewontin, Richard C. “The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm: A Critique of the Adaptationist Programme” Proc. Roy. Soc. London B 205 (1979) pp. 581-598
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Zimmer, Carl The Surprising Origins of Life’s Complexity Quanta Magazine, July 16, 2013. [Zimmer, Carl The Surprising Origins of Life’s Complexity Scientific American, July 16, 2013]
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Barve, Aditya, Wagner, Andreas A latent capacity for evolutionary innovation through exaptation in metabolic systems. Nature, 2013; DOI: 10.1038/nature12301.
Grande abraço,
Rodrigo