Monday August 06, 2012
Anonymous: Qual a vantagem em ser difiodonte? O que essa vantagem teria a ver com uma oclusão perfeita?
Já respondi uma pergunta com temática semelhante a da sua primeira questão há algum tempinho, ainda na época do formspring. Elaborando um pouco mais aquela resposta, o que chamamos de ‘difiondontia’ é a condição típica compartilhada por nós, seres humanos, e demais mamíferos, e envolve a existência, durante o desenvolvimento ontogenético, de apenas duas dentições, diferente das múltiplas dentições de outros vertebrados e de dentes de crescimento contínuo, como ocorre em répteis. Porém, mesmo este padrão parece ter sido ainda mais reduzido em algumas linhagens de mamíferos (como na maioria dos roedores) que mostram extrema redução na renovação dentária. Nestes animais os dentes de leite, ou dentição decídua, desenvolvem-se apenas de forma muito rudimentar.
O que se acredita é que o ponto fundamental foi a evolução da diferenciação dos dentes e, portanto, da mandíbula que possibilitou aos mamíferos lidarem com sua dieta de maneira apropriada e mais eficiente, abrindo caminhos para novos modos de vida alimentares. Estes fatos sugerem que a difiodontia, e a redução do número de dentições de maneira geral, não seja ela o fator adaptativo propriamente dito e, portanto, a característica mais vantajosa inicialmente, mas algo que surge como resultado de um ‘trade-off’ evolutivo, ou seja, uma solução de compromisso frente às várias demandas ecológicas, desenvolvimentais e fisiológicas conflitantes que resultaram da evolução da diferenciação dental.
Isso ocorre por que o crescimento e o desenvolvimento craniomandibular, associado ao pequeno tamanho dos crânios juvenis, não permite a acomodação de um conjunto completo de dentes adultos nos maxilares (em nós seres humanos, por exemplo, os dentes de leite são em número de apenas 20), o que precisa esperar até que os ossos cranianos se desenvolvam no seu tamanho adulto. Porém, a redução completa não seria viável, pois, ainda assim, os dentes de leite são importantes como guia para o desenvolvimento e erupção dos dentes permanentes, além de conferirem capacidade de mastigação desde bem cedo no período pós natal. Caso não fosse assim, isso só seria possível quando o indivíduo já fosse adulto e ainda assim não haveria jamais desenvolvido de maneira apropriada a musculatura mandibular, tendo que começar do zero. Desta maneira, o padrão de redução das dentições, o que inclui a difiodontia, deve ter decorrido do fato da evolução de padrões de diferenciação e complexificação dentária não poderem ocorrer sem interferir demais com a manutenção do desenvolvimento craniomandibular e da conservação da habilidade de mastigação precoce, e por isso era necessário manter pelo menos uma dentição transitória.
Já a questão da oclusão perfeita é mais complicada, mas já posso adiantar que o que convencionamos chamar de ‘oclusão dental’ teve sua origem antes da origem dos mamíferos modernos, provavelmente com os primeiros tetrápodes terrestres. De fato, em um sentido mais amplo, deve ter surgido assim que evoluíram as mandíbulas e os dentes nos gnatostomados, ainda nos vertebrados aquáticos. Mas em um sentido mais restrito, de acordo com pesquisadores, a oclusão dentária, isto é, o processo pelo qual os dentes da mandíbula superior entram em contato com os do maxilar inferior, tem sua primeira aparição no registro fóssil entre os amniotas e seus parentes próximos, perto da fronteira entre o Permiano e o Carbonífero, algo em torno de 300 milhões de anos atrás. Acredita-se que esta inovação evolutiva tenha permitido um aumento dramático no nível de processamento oral de alimentos nestes tetrápodes, aumentando sua eficiência.
Também é sugerido que isso tenha evoluído originalmente em um contexto ecológico associado a herbivoria. Este cenário foi proposto por que os herbívoros podem aumentar a sua taxa de digestão ao reduzirem mecanicamente o tamanho das partículas das quais se alimentam através da trituração por via oral, o que faz com que os grupos de vertebrados terrestres com a maior capacidade de reduzir os alimentos vegetais duros por este mecanismo sejam também os mais abundantes e diversificados, como eram os dinossauros herbívoros ornitópodes, durante a era mesozoica, e como são hoje em dia os vários grupos de mamíferos perissodáctilos e artiodáctilos.
Como o processamento eficaz oral de alimentos com alto teor de fibras vegetais parece representar uma inovação evolutiva de altíssima significância funcional, a boa colusão dental pode ter sido um dos fatores que permitiu este feito. Estudos têm revelado que a aquisição da oclusão ocorreu de forma independente em mais de um grupo de vertebrados tetrápodes, possivelmente, marcando um dos primeiros passos para as profundas mudanças no padrão de interações tróficas em ecossistemas terrestres que ocorreriam posteriormente durante o mesozoico.
É preciso também lembrar que uma ‘boa oclusão’ parece ser menos importante em certos animais por causa de seus hábitos dietários, especialmente naqueles em que não há muita necessidade da diminuição do tamanho das partículas alimentares. Basta imaginar os animais que comem suas presas inteiras ou aqueles como tubarões que usam seus dentes mais para prender as presas e remover-lhes grandes nacos de carne que são engolidos quase sem mastigação e que muitas vezes são desconectados dos corpos das presas através de fortes movimentos da cabeça ou da rotação do corpo inteiro, como fazem os crocodilos e jacarés com o ‘giro da morte.’
Então, se compreendermos a oclusão dental neste contexto biomecânico e ecofisológico como um forma de fazer com que as superfícies dentais, dos dentes superiores e inferiores, entrem em contato umas com as outras e com os alimentos entre elas, de maneira que seja possível a maior trituração - e mais tarde com a evolução da carnivoría entre os tetrápodes, o melhor corte de tecido muscular animal - torna-se bem mais clara a vantagem conferida por uma disposição mandibular que permitisse um melhor encaixe e bom contato, nos ângulos mais apropriados, entre certos dentes para um tipo ou outro de dieta ou mesmo para funções específicas de captura de presas, dentro de estratégias alimentares mais complexas que acabariam por evoluir.
Portanto, no caso dos mamíferos, a evolução da difiodontia, provavelmente, foi seguida da evolução de outras modificações evolutivas que serviram de ajustes adicionais necessários em função da evolução da diferenciação dental e do papel precoce dos dentes decíduos tanto na alimentação, como no desenvolvimento dental posterior e no fortalecimento da musculatura mandibular. Contudo, o caso dos mamíferos provavelmente é, como já havia comentado, uma continuação de uma tendência evolutiva que começou com a evolução da oclusão per se em contextos ecológicos e bioenergéticos que tornaram a maior eficiência na mastigação importante para a sobrevivência e reprodução dos vertebrados tetrápodes terrestres mais primitivos (talvez associada a herbivoría) e que se deu em mais de uma linhagem.
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Literatura Recomendada:
Järvinen E, Välimäki K, Pummila M, Thesleff I, Jernvall J. The taming of the shrew milk teeth. Evol Dev. 2008 Jul-Aug;10(4):477-86. PubMed PMID: 18638324.
McCollum M, Sharpe PT. Evolution and development of teeth. J Anat. 2001 Jul-Aug;199(Pt 1-2):153-9. Review. PubMed PMID: 11523817; PubMed Central PMCID:PMC1594990.
Reisz RR. Origin of dental occlusion in tetrapods: signal for terrestrial vertebrate evolution? J Exp Zool B Mol Dev Evol. 2006 May 15;306(3):261-77.Review. PubMed PMID: 16683226.
Rybczynski N, Reisz RR. Earliest evidence for efficient oral processing in a terrestrial herbivore. Nature. 2001 Jun ;411(6838):684-7. PubMed PMID: 11395768.
Créditos das Figuras:
ALEX BARTEL/SCIENCE PHOTO LIBRARY
D. ROBERTS/SCIENCE PHOTO LIBRARY
PASCAL GOETGHELUCK/SCIENCE PHOTO LIBRARY
Grande abraços,
Rodrigo