Monday August 13, 2012
Anonymous: outra coisa a pouco tempo atrás saiu uma pesquisa dizendo que havia indício de cruzamento recente entre gorilas e humanos, já que havia traços de genes de gorilas em humanos além dos genes já em comum devido aos ancestrais. Isso procede ou é mais uma daquelas especulações pré-cientifico?
Me manda o link, por favor. Isso não faz sentido. Talvez seja apenas uma interpretação bem distorcida de alguns trabalhos recentes envolvendo os genomas dos grandes primatas.
O que ocorre é que é que de posse do rascunho do genoma do gorila (Gorila gorila), os pesquisadores puderam fazer algumas análises comparativas e constataram que apesar de em média nosso genoma ser, como esperado, mais semelhante ao dos chimpanzés e o deles ao nosso, existe uma parte do genoma dos gorilas, cerca de 30% dele, que é mais parecido com o nosso (e o nosso como o deles) do que ambas porções são das equivalentes nos genomas dos chimpanzés. Na realidade, algo assim já era esperado por causa do que os geneticistas evolutivos chamam de ‘triagem incompleta de linhagens’, um fenômeno que já havia sido previsto por causa da “teoria do coalescente” que foi proposta inicialmente na década de 80 por John Kingman e que é uma peça central em boa parte da investigação da origem de genes e alelos nas populações ao longo do tempo e sua distribuição através das filogenias. Veja por exemplo o comentário sobre as deturpações criacionistas deste achado que são expostas e criticadas no blog Pharyngula do biólogo PZ Myers.
Como explicam Richard A Gibbs e Jeffrey Rogers, em comentário ao artigo de Scally et al (2012) da Nature, que relatou as comparações em questão, a ‘triagem linhagem incompleta’ pode resultar neste padrão. De acordo com ambos os cientistas, uma espécie ancestral (mostrada em preto) se divide em duas linhagens genéticas descendentes (uma mostrada em verde e a outra em vermelho) e, logo depois, uma dessas linhagens descendentes divide-se novamente, dando origem a uma linhagem representada em vermelho e outra laranja. Obviamente, se espera que as linhagens representadas pelas cores vermelhos e laranja sejam geneticamente mais semelhantes uma a outra do que seriam em relação a linhagem verde. Porém, caso a espécie ancestral, mostrada em preto, contivesse um gene, em um dado locus (ou um conjunto deles), em heterozigose, isto é, com duas variantes de sequências alternativas, digamos A e B, o que aconteceria é que uma ou outra variante ou ambas poderiam ser transmitidas para as linhagens descendentes e, se com o tempo, uma das espécies descendentes perdesse uma das duas variantes daquele gene e a outra a outra variante faria com que, naquele locus (ou loci), uma das espécies irmãs mais recentes, mostraria-se para aquele gene (ou genes) mais semelhante a prima distante que acabou perdendo o mesmo alelo ou apenas ganhando o outro alelo do ancestral comum mais remoto, mas ainda assim seria muito mais próxima a sua linhagem irmã da qual divergiu a bem menos tempo. Assim, como mostra o esquema a esquerda e acima, extraído do artigo/comentário da Nature de Gibbs e Rogers, a ‘triagem incompleta de linhagens’ resultaria no padrão visto na figura A em que a espécie vermelha acabou sendo mais geneticamente semelhante à espécie verde (ambas possuem no locus os alelos AA) do que a espécie laranja (BB), mas apenas para este gene em particular.
Uma outra possibilidade envolve a miscigenação, mas não miscigenação recente como parece querer implicar a ‘reportagem’/ ‘post’/’comentário’ a qual vc parece se referir e isso tem que ficar bem claro. Neste caso, como mostrado através da figura ‘b’, ao lado da ‘a’ do mesmo esquema, o fluxo gênico poderia explicar o mesmo tipo de padrão. Isso ocorreria caso uma variante do gene recém-evoluído (por exemplo C) tivesse sido transferida de uma linhagem para outra através de intercruzamento que teria ocorrido após a separação evolutiva das duas linhagens mais novas, mas antes que estas linhagens tenham se isolado completamente, mesmo da linhagem prima mais distante. Isso poderia ocorrer caso os eventos de especiação que deram origem das linhagens vermelha e verde e o que deu origem as linhagens laranja e vermelha ocorressem próximos no tempo, quase como uma tricotomia, o que é possível, mas parece, de acordo com a maioria dos pesquisadores, improvável. Note bem que em nenhum dos dois casos há intercruzamento entre Gorilas e seres humanos que dirá em tempos modernos.
A questão principal é que as diferenças entre linhagens divergentes não surgem todas de uma vez só, mas vão ocorrendo na medida que duas populações vão se isolando e mutações vão ocorrendo, com a seleção natural e deriva genética tratando de fixar ou remover das populações as novas ou antigas formas dos seus genes. Como este é um processo estendido no tempo e as populações atuais de duas linhagens são, em geral, formadas por diferentes combinações dos genes existentes, em subpopulações ancestrais, que podem, inclusive, ter mantido certo fluxo gênico com a da outra linhagem por mais ou menos tempo, é esperado que uma das linhagens mantenha formas dos genes mais próximas a de um parente mais distante de ambas, por exemplo, refletindo intercâmbios gênicos com uma subpopulação ancestral já extinta que não teve seus genes chegando na população atual da outra linhagem, mas que também era descendente dela, pois cada rodada de perda e ganho de alelos é análogo a um processo de amostragem aleatória.
Na figura à direita, está mostrada uma filogenia da família dos grandes macacos sem cauda em que é podemos observar a especiação dos seres humanos (H), chimpanzés ©, gorilas (G) e orangotangos (O). As linhas horizontais indicam os tempos de especiação dentro da subfamília homininae e o tempo de divergência das sequências entre os seres humanos e orangotangos. As linhas no interior das linhagens em cinza ilustram um exemplo de ‘triagem incompleta de linhagens’ para um locus genético específico, neste caso (((C, G), H), S) em vez de (((H, C), G), O). Em baixo, na figura, são mostradas as médias das divergências das sequências de nucleotídeos entre humanos e outros grandes macacos sem cauda nas porções alinhadas dos seus genomas. Como explica PZ Myers, podemos tanto medir as distâncias genéticas médias entre as espécies (as percentagens mostradas na parte inferior da figura), como também podemos rastrear os genes individuais (as linha cinzas) que se dividiram em diferentes pontos de sua história, usando modelos de coalescência levando em conta estimativas de vários parâmetros populacionais que são aplicados retrospectivamente para inferir quando as cópias atuais divergiram originalmente dos genes ancestrais.
Então, eu diria que a conclusão que saiu neste site é ou apenas um erro produto da leitura do artigo original, e dos vários comentários que se seguiram, ou do total desconhecimento de biologia evolutiva moderna e dos modelos estatístico-matemáticos e dso métodos filogenéticos que lhes dão base.
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Literatura Recomendada:
Scally A, Dutheil JY, Hillier LW et al. (2012) Insights into hominid evolution from the gorilla genome sequence. Nature 483:169–175. doi:10.1038/nature10842
Dutheil JY, Ganapathy G, Hobolth A, Mailund T, Uyenoyama MK, Schierup MH (2009) Ancestral Population Genomics: The Coalescent Hidden Markov Model Approach. Genetics 183: 259–274. doi: 10.1534/genetics.109.103010
Gibbs, Richard A & Rogers, Jeffrey Genomics: Gorilla gorilla gorilla Nature 483, 164–165 (08 March 2012) doi:10.1038/483164a
Grande abraço,
Rodrigo