Monday August 20, 2012
Anonymous: Como os primeiros humanos (H. Sapiens) saíram da áfrica? Eles crusaram o Saara? como? Por que rota? Uma vez eu vi num documentário que há hipóteses de uma possível travessia do estreito de ormus num período de marés baixas. Isso procede?
Atualmente existe um razoável consenso de que os humanos anatomicamente modernos teriam se originado por volta de 200 000 anos atrás na África e mais tarde, entre 125 000 e 60 000, expandido-se para fora do continente africano e daí substituído boa parte das populações Eurasiáticas de outras espécies do gênero Homo, como Neandertais, Denisovanos (para os quais existem evidências de certa miscigenação e introgressão) e até mais espécies mais antigas como o Homo erectus, com uma possívelabsorção dessas espécies em nosso pool gênico por cruzamentos. Apesar do certo consenso para a origem das populações modernas através de ondas migratórias originadas do leste da África relativamente recentes, existem vários modelos que divergem no tocante a isso ter se dado através de um um único evento migratório ou através de vários desses movimentos.
Duas são as rotas consideradas para a saída de populações humanas modernas da África em direção ao resto do mundo. A primeira em que as populações migrantes teriam deixado a África pelo vale do Nilo em direção ao oriente médio, onde atualmente está localizado Israel (Qafzeh), e a segunda seria pelo estreito de Bab-el-Mandeb, através do mar vermelho (em uma época em que o nível do mar era bem mais baixo e teria facilitado muito a migração) até a penisula Arábica, onde hoje seriam os emirados árabes.
Existem evidências que estas rotas teriam sido ambas seguidas respectivamente a 125 000 anos e 120-100 mil anos já que artefatos e ferramentas localizadas nestas regiões fora da áfrica são muito semelhantes aos associados a populações de seres humanos anatomicamente modernos africanas, mesmo que não hajam restos fossilizados dos contrutores e usuários dessas ferramentas. Porém, estas migrações parecem não ter vingado já que várias linhas de evidências genéticas indicam que as populações humanas modernas são derivadas de um subconjunto africano que de lá saiu a bem menos tempo.
Os estudos usando principalmente os padrões de distribuição de variantes do DNA mitocondrial e do cromossomo Y (que, respectivamente, refletem ‘matri’ e 'patrilinhagens’) sugerem que estas correntes migratórias anteriores não deixaram descendentes nos dias de hoje e tenham sido becos sem saída. Alguns associam esta fato a um gigantesco evento de redução populacional que pode ter extinto boa parte dos seres humanos anatomicamente modernos, talvez decorrente da catástrofe Toba que é estimada ter ocorrido a cerca de 74000 anos atrás, mas isso ainda é um tanto controverso.
Vários estudos sugerem que a primeira dessas levas de migração que foi realmente bem sucedida para fora da África - i. e. que deixou descendentes nos dias de hoje e que, portanto, contribuiu para as populações mundiais de seres humanos modernos – deve ter ocorrido por volta de 60 mil anos atrás, data esta sugerida pela presença de certos marcadores genéticos em populações modernas que na realidade constituem-se em um subgrupo daqueles encontrados na África hoje.
O haplogrupo L3 que existe em populações do leste da África é são mais próximas as variantes de populações não-africanas do que com a de outras populações africanas que contem os haplógrupos L1 e L2, já que os haplogrupos M e N e suas variantes parecem realmente derivados de L3. Portanto, as populações não-africanas possuíram haplogrupos todos derivados de apenas um único haplogrupo mitocondrial de todos presentes na África. Como o haplogrupo L3 parece ter se originado por volta de 84000 a 104000 anos atrás, e por que análises das sequências completas de 369 indivíduos africanos com este haplogrupo indicam que a data máxima de expansão desta variante estaria por volta de mais ou menos 70 mil anos – parece que a possibilidade de que migrações bem sucedidas antes de 74 000 anos atrás, isto é a época do evento Toba, foi excluída. As próprias similaridade entre os haplogrupos M e N (que são raros entre os Africanos, tendo portanto provavelmente se originado logo antes ou logo depois do começo das migrações também indicam a continuação da expansão após a saída da África também tenha ocorrido em função da melhora das condições ambientais e climáticas, como ocorreu após alguns milênios da super-erupção.
Assim, as migrações para fora da África ocorridas a partir do leste e da região central da África, por volta de 60-35 mil anos atrás, teriam sido seguidas por migrações maiores posteriores em períodos imediatamente subsequentes ao término das glaciações quando houve a melhora das condições climáticas, seguindo um padrão semelhante do movimento migratório original para fora da África. Uma delas teria se dado através do mar vermelho e ao longo da região costeira da Índia e estaria associada a origem e a expansão do haplogrupo M; e uma outra que envolveria uma população migrante com o haplogrupo N, cujos membros teriam seguido o rio Nilo, a partir do leste da África, movendo-se em direção ao norte e cruzando para a Ásia através do Sinai, tendo este segundo grupo ramificado-se e se expandido em diversas direções, com algumas populações derivadas dessa leva indo para a Europa e outras indo na direção da Ásia. Esta ideia explicaria por que o haplogrupo N é predominante na Europa enquanto o grupo M é ausente neste continente. O problema é que as supostas evidências da 'rota costeira’ teriam sido destruídas pela elevação dos níveis dos mares que ocorreu durante o holoceno. Contudo, essa não é a única explicação possível para a distribuição geográfica dos haplogrupos derivados de L3, pois caso um pequena população Europeia fundadora que originalmente possuisse tanto os haplogrupos M e N tivesse perdido o grupo M por meio da deriva genética em função de um efeito gargalo de garrafa, que é redução populacional drástica, um padrão semelhante seria esperado.
Mais recentemente a “rota costeira”, pelo litoral sul da Arábia, ganhou algumas novas evidência genéticas em seu favor. Para ajudar a lançar luz nesta questão, um grupo de pesquisadores analisaram três haplogrupos comuns no Oeste da Eurásia, N1, N2 e X, e que são derivados do grupo N e que coalescem por volta de 60 mil anos atrás. As amostras foram obtidas de 85 indivíduos do sudoeste da Ásia que carregam esses haplogrupos e que haviam tido os genomas mitocondriais completamente sequenciados, e foram comparadas com outras amostras de um banco de dados de 300 indivíudos Europeus. De acordo com o estudo, os resultados mostram que esses haplogrupos menores têm uma 'distribuição de relíquia’, o que sugere uma ascendência antiga dentro da Península Arábica, com disseminação deles a partir da região do Golfo de Oasis em direção ao Oriente próximo e à Europa durante o período pluvial entte 55-24 mil anos atrás. Assim, este padrão sugeriria que está região da Arábia foi de fato a primeira parada, servindo como ponta de lance da grande expansão dos seres humanos modernos para o resto do mundo.
Existe bastante material sobre o tema, mas tudo que encontrei está em inglês, como os vários verbetes da wiki, aqui e aqui e aqui e em sites especializados em divulgação, como aqui e aqui. Além dos links mencionados, existe uma interessante animação no site da Fundação Bradshaw (’Journey of Mankind: The peopling of the world’) que é bastante ilustrativa do processo de migração para fora da África e seus reveses baseado no livro ”Out of Africa’s Eden:the peopling of the world“ de 2003 do geneticista Stephen Oppenheimer que tem algumas divergências do que apresentei aqui, mas concorda na maior parte.
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Literatura Recomendada:
Maca-Meyer N, González AM, Larruga JM, Flores C, Cabrera VM. Major genomic mitochondrial lineages delineate early human expansions. BMC Genet. 2001;2:13. Epub 2001 Aug 13. PubMed PMID: 11553319; PubMed Central PMCID: PMC55343.[Link]
Soares P, Alshamali F, Pereira JB, Fernandes V, Silva NM, Afonso C, Costa MD, Musilová E, Macaulay V, Richards MB, Cerny V, Pereira L. The Expansion of mtDNA Haplogroup L3 within and out of Africa. Mol Biol Evol. 2012 Mar;29(3):915-27. Epub 2011 Nov 16. PubMed PMID: 22096215. [Abstract]
Fernandes V, Alshamali F, Alves M, Costa MD, Pereira JB, Silva NM, Cherni L, Harich N, Cerny V, Soares P, Richards MB, Pereira L. The Arabian cradle: mitochondrial relicts of the first steps along the southern route out of Africa.Am J Hum Genet. 2012 Feb 10;90(2):347-55. Epub 2012 Jan 26. PubMed PMID: 22284828; PubMed Central PMCID: PMC3276663. [Abstract]
Balter M (January 2011). "Was North Africa the launch pad for modern human migrations?”. Science 331 (6013): 20–3. doi:10.1126/science.331.6013.20. PMID 21212332.[Abstract]
Grande abraço,
Rodrigo