Monday August 26, 2013
Anonymous: Oi, eu tenho a seguinte dúvida: se gêmeos univitelinos possuem cérebros biologicamente idênticos, por que eles desenvolvem mentes distintas? Obrigada. (Se não for da sua área, por favor, indique alguma bibliografia)
Esta não é a área de foco deste tumblr, mas posso responder a pergunta pois ela incorre em uma confusão comum que é a ideia do determinismo genético.
O primeiro ponto que deve ficar bem claro é que os cérebros de gêmeos univitelinos não são biologicamente idênticos. O que é idêntico entre gêmeos monozigóticos, por definição, é o genoma inicial da célula da qual se originaram, já que ambos surgem a partir do mesmo óvulo fecundado, ou seja, o zigoto. Este tipo de gêmeos são considerados virtualmente idênticos do ponto de vista genético, mas hoje sabemos que isso não é bem assim, afinal, durante o desenvolvimento dos embriões, podem ocorrer mutações somáticas e quanto mais cedo elas ocorrerem, durante o desenvolvimento, mais células dos organismos em formação as carregarão, ampliando as diferenças.
Os genes, e o genoma como um todo, não age de maneira determinística, não havendo uma relação simples, de um para um, entre os genes e qualquer fenótipo complexo, pois a formação deles sempre depende de um processo de intermediação que se dá através das interações que ocorrem entre o organismo e o ambiente, em seus mais diversos níveis, ao longo do seu ciclo de vida de cada indivíduo. Portanto, o desenvolvimento embriológico e pós-natal não é um mero desenrolar de instruções genéticas, mas um complexo processo de interação no qual vários fatores interagem de maneira complicada e variável. Esta variabilidade faz com que, mesmo que os genomas fossem exatamente iguais e não sofressem quaisquer mutações somáticas, durante o processo de desenvolvimento, pequenas variações ao nível molecular associadas a flutuações estocásticas em certas moléculas e nas taxas de algumas reações químicas que envolvem poucos componentes moleculares, sempre ocorrerão, provocando um certo nível de diferenciação entre os dois (ou mais) embriões em formação. Muitas destas variações se mostram na forma de diferenças no padrão de empacotamento e marcação química do DNA dos diferentes tecidos, ou seja, são diferenças epigenéticas.
Estas variações ocorrem desde o nível genético e bioquímico, como as variações aleatórias no padrão de marcação do DNA que já comentei, passando por diferenças estruturais ao nível celular e tecidual, até àquelas diferenças que podem ser observadas no organismo como um todo. O mais interessante é que certos sistemas, como o nosso cérebro e o resto de nosso sistema nervoso, parecem ser particularmente sensíveis a estas pequenas variações estocásticas e a outros tipos de mudanças. Isso ocorre por que uma parte significante da formação das conexões cerebrais dependente da própria atividade do organismo e do cérebro em formação, o que certamente variará de gêmeo para gêmeo, pois além das variações ao nível molecular e celular, o próprio ambiente intrauterino está longe de ser completamente homogêneo e, portanto, não resultando em interações idênticas para os dois (ou mais) gêmeos. Este constante processo de retroalimentação entre genes, organismo e ambiente, que acontece durante o desenvolvimento embrionário e o resto do ciclo de vida dos indivíduos, é o que permite que os organismos se auto-organizem, amplifiquem pequenas diferenças iniciais e adquiridas durante o processo de desenvolvimento, produzindo, assim, nossa individualidade.
Embora, muitas das diferenças iniciais na formação de cada um dos gêmeos possam ser por natureza estocásticas, especialmente no período pós-natal, as diferenças tornam-se mais sistemáticas, dependem mais e mais da interação com o ambiente físico, familiar e social, isto é, o aprendizado em sentido mais estrito passa entrar em jogo. Lembrando que o ‘ambiente’ aqui inclui o comportamento dos cuidadores (geralmente os pais e a família), ou seja, a forma pelos quais os indivíduos em desenvolvimento são tratados por outras pessoas mais intimas, e, normalmente, também inclui o outro(s) gêmeo(s). Estes fatores podem servir tanto para reforçar diferenças como para aumentar semelhanças que farão parte das próprias identidades dos indivíduos a medida que estes indivíduos crescerem e refletirem sobre si mesmo e como os outros e eles mesmo percebem a si mesmos.
Por causa disso tudo, os cérebros dos gêmeos serão diferentes, resultando em um funcionamento mental e uma identidade pessoal distinta para cada um dos indivíduos, por mais parecido que tenham sido as suas condições genéticas e embrionárias iniciais. Assim, as mentes destes indivíduos jamais serão as mesmas.
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Literatura Recomendada:
Griffiths AJF, Miller JH, Suzuki DT, et al. An Introduction to Genetic Analysis. 7th edition. New York: W. H. Freeman; 2000. Copyright © 2000, W. H. Freeman and Company.
Wong AH, Gottesman II, Petronis A (2005) Phenotypic differences in genetically identical organisms: The epigenetic perspective. Hum Mol Genet 14(Spec 1): R11–R18. doi: 10.1093/hmg/ddi116.
Mitchell KJ (2007) The Genetics of Brain Wiring: From Molecule to Mind. PLoS Biol 5(4): e113. doi:10.1371/journal.pbio.0050113
Fraga MF, Ballestar E, Paz MF, Ropero S, Setien F, Ballestar ML, Heine-Suñer D, Cigudosa JC, Urioste M, Benitez J, Boix-Chornet M, Sanchez-Aguilera A, Ling C, Carlsson E, Poulsen P, Vaag A, Stephan Z, Spector TD, Wu YZ, Plass C, Esteller M. Epigenetic differences arise during the lifetime of monozygotic twins. Proc Natl Acad Sci U S A. 2005 Jul 26;102(30):10604-9. Epub 2005 Jul 11. PubMed PMID:16009939; PubMed Central PMCID: PMC1174919.
Grande abraço,
Rodrigo