Monday January 23, 2012
Anonymous: Por que só os humanos desenvolveram a capacidade de pensar, a inteligencia, não agindo apenas por instintos como os demais seres?
Aquilo que normalmente nós entendemos por ‘inteligência’ não é uma prerrogativa unicamente de nossa espécie humana, estando presente em outros animais, especialmente em mamíferos e em aves. Estudos em psicologia comparativa e etologia mostram isso claramente e entre as habilidades cognitivas exibidas por estes seres encontram-se várias formas de aprendizado social e por tentativa e erro. Além do mais, alguns destes outros organismos apresentarem a habilidade de solucionar problemas inusitados e que dependem até da confecção e uso de ferramentas.
A inteligência, portanto, permite extrapolar não só a partir da própria experiência pregressa do indivíduo, mas também da experiência dos outros ou mesmo a partir de experiências análogas e até mesmo a partir do fato de podermos ‘simular’ experiências ainda não vivenciadas e antecipar seus possíveis desfechos, ou seja, a imaginação. Isso tudo resulta em maior flexibilidade de comportamento e, portanto, em maior capacidade de resolver problemas e, desta forma, de se ajustar a mudanças do meio ambiente ao mesmo tempo que cria novos problemas que demandam novas soluções que servem como retroalimentação no processo de cognição. Estes processos levam, a médio prazo, a evolução da cultura e, a longo prazo, a evolução dos sistemas neurocognitivos por trás da cognição, emoção e cultura.
Nossa inteligência está associada a grande capacidade e flexibilidade cerebral, atenção, memória, além da destreza motora e da própria complexidade sociocultural em que estamos inseridos. Em conjunto, esses fatores permitem que nossa espécie exiba um alto nível de pensamento abstrato e simbólico, além da possibilidade de poder compartilhar estas habilidades e faculdades com nossos semelhantes de maneira muito efetiva. Algumas dessas habilidades, como já havia dito e não custa reforçar, estão também presentes (em maior ou menor grau) em outros animais, particularmente, em primatas, cetáceos e, talvez, em certas aves como corvídeos e psitacídeos, como eu havia dito, o que os torna seres inteligentes. Até cefalópodes, como polvos e sibas, também exibem certos comportamentos que sugerem inteligência; e mesmo animais menos “cerebrados” também apresentam indícios desta faculdade. Desta maneira, nós seres humanos, somos apenas um entre vários grupos de animais que exibem habilidades cognitivas dignas de nota.
Portanto parece existir uma certa continuidade em termo de ‘inteligência’ e isso fica ainda mais claro quando acrescentamos as diversas espécies de homininos extintos, especialmente do gênero Homo e que, de acordo com o registro fóssil e arqueológico, possuíam também grande capacidade cerebral e certo refinamento tecnocultural.
De fato, em relação ao nosso cérebro alguns estudos sugerem que não existe nenhuma grande diferença que possa ser elencada de forma clara e óbvia como o fator que nos diferencie dos outros grandes primatas, mas sim uma série de diferenças sutis, especialmente, no padrão microscópio de conectividade das células nervosas e no número de células em algumas regiões. Isso indica que somos somente versões alteradas e, de certa maneira, refinadas de um padrão primata básico ancestral. Por outro lado, não podemos nos esquecer que cérebros são órgãos metabolicamente caros e mesmo estas pequenas inovações e rearranjos podem depender de várias mutações oportunistas associadas a pressões seletivas contingentes bem específicas e a mudanças estocásticas imprevisíveis. Talvez por isso não vejamos por aí tantos animais tão inteligentes quando nós e os que evoluíram um nível similar de inteligência eram nossos primos mais próximos (hoje extintos) que já herdaram parte dessas ‘inovações’ de um mesmo ancestral nosso, não tendo, portanto, que começar do zero. Por causa disso, embora a convergência evolutiva possa explicar o aparecimento desta faculdade em diferentes grupos, mesmo que de forma mais modesta que a nossa, ainda assim, a inteligência concentra-se em certas linhagens que já possuem um certo nível dela por já terem herdado um aparato neurobiológico mínimo de um ancestral comum.
Então, aquilo que genericamente chamamos de inteligência é, por assim dizer, um produto da evolução biológica (que, em nós, parece ter se desenvolvido mais que em outras linhagens) que acrescenta uma nova camada de complexidade ao processo de interação dos seres vivos com seu meio. Esta nova camada reflete-se, especialmente, no aumento do papel do ensino e do aprendizado que estão na base da cultura que, por sua vez, passa a interferir com a evolução biológica ao determinar novas formas de pressão socioculturais que vão além das pressões ecológicas mais comuns com as organismos vivos normalmente deparam-se ao longo de sua existência. Este feedback entre biologia e cultura não é único de nossa espécie, mas em nós parece ter tomado maior dimensão.
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Literatura Recomendada:
Roth G, Dicke U. Evolution of the brain and intelligence. Trends Cogn Sci. 2005 May;9(5):250-7. Review. PubMed PMID: 15866152.
Dicke U, Roth G. 2008. Animal Intelligence and the Evolution of the Human Mind. Scientific American Mind, August 31.
Veja também o verbete Animal Cognition na wikipedia.
Grande abraço,
Rodrigo
Créditos das figuras:
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MAURO FERMARIELLO/SCIENCE PHOTO LIBRARY