Monday July 04, 2011
Anonymous: Quais são os principais erros cracionistas?
Os criacionistas são pródigos em cometer erros, insistir em equívocos e propagandear distorções no que se refere a biologia evolutiva e as ciências de modo mais geral. Talvez o principal erro seja não compreenderem (e no caso de alguns mais titulados e dissimulados, recusarem-se a aceitar) como funciona a investigação científica. As ciências não podem serem tuteladas pelas religiões, já que respostas prontas e reveladas e que não focam nos mecanismos, princípios, leis e relações causais inteligíveis e empiricamente dissecáveis não se prestam a construção de um corpo vivo e aberto de conhecimento através de métodos críticos aplicados de forma sistemática.
Esta independência das religiões e do pensamento teológico foi conquistadas a duras penas e a imensa maioria dos cientistas (e uma significante porção dos religiosos) aceita completamente esta situação como a mais condutiva a prática científica. O chamado naturalismo metodológico é portanto fundamental para fazer ciência. Por não compreenderem e/ou aceitarem tal pressuposto básico, os criacionistas simplesmente decidem o que é valido ou não pela compatibilidade com suas crenças religiosas prévias particulares, o que é incompatível com a investigação científica e mesmo com outras formas de investigação racional.
Especificamente sobre biologia, destaco 3 pontos principais:
Espalhar a ideia que a evolução é só uma teoria. Neste ponto eles erram duplamente. Primeiro, ao negarem a evolução enquanto fenômeno cientificamente bem estabelecido por múltiplas fontes de evidências advindas de diversas especialidades científicas que convergem de maneira elegante e tremendamente consistente. Segundo, erram ao confundir o uso mais coloquial do termo “teoria” - que seria equivalente a um palpite ou especulação - com o seu uso mais técnico nas ciências que refere-se a um amplo corpo de hipóteses, modelos, métodos e princípios muito bem corroborados por várias linhas de evidência que integram e explicam um grande número de fatos aparentemente díspares, como é o caso da teoria evolutiva.
Alegar que não há evidências para a macroevolução por que, afirmam eles, não existem fósseis de formas de transição. Para fazer isso, no entanto, precisam distorcer a definição de formas de transição, assumindo uma visão de mudança linear em que cadeias de ancestrais e descendentes envolvendo apenas as formas modernas dos organismos se sucedem no tempo, postulando quimeras absurdas e seres mal formados como aquilo que deveriam ser as tais formas tradicionais, o que possibilita a eles rejeitarem qualquer fóssil.
A evolução não procede através de uma série linear única de ancestrais e descendentes, mas através de um processo de ramificação seguida de divergência e adaptação às condições locais em que se encontram as populações de organismos, desta forma as novas estruturas, sistemas, órgãos e comportamentos surgem a partir de modificações de estruturas, órgãos e sistemas e comportamentos prévios em alguns ramos que geram mais ramos que herdam estas características e que produzem mais ramos e assim por diante. Mesmo levando-se em conta apenas os organismos atualmente viventes, podemos observar diversos exemplos de formas de transição. No caso dos tetrápodes, vemos os peixes pulmonados e o Celacanto, além dos demais peixes ósseos e cartilaginosos. Todos eles representam linhagens descendentes de ancestrais transicionais e apresentam várias características reveladoras da evolução dos apêndices locomotores. Ao incluirmos os fósseis o que ocorre é que passamos a ter acesso a linhagens extintas que apresentaram as características de interesse em estados diferentes, cada vez mais próximos aos ancestrais com os tetrápodes mais recentes.
Disseminar a falsidade que não seriam conhecidos mecanismos naturais que pudessem criar informação genética ou que não seria possível explicar o aumento de complexidade dos seres vivos pela evolução através de processos naturais, já que as mutações apenas destruiriam a informação existente. Um outro erro análogo e que muitas vezes se mistura com a questão da informação, configura-se em uma outra velha ladainha criacionista, “o argumento da segunda lei da termodinâmica”. Em relação a segunda lei para refutar tal disparate é necessário apenas notar que como sistemas abertos, os seres vivos, populações, comunidades, ecossistemas e biomas não estão fadados a degradação imediata pois recebem um aporte mais do que suficiente de energia do sol. A segunda lei não impede que ordem local e complexidade seja atingida as custas de transferência de energia e aumento da entropia do sistema como um todo,em última instância o universo. Em relação a informação as coisas são um pouco mais complicadas, pois o termo é empregado com diversos sentidos mais ou menos rigorosos. Felizmente nenhum deles é obstáculo para a evolução biológica. De ponto de vista mais simples, a aquisição de nova informação genética ou biológica está ligada a evolução de novas funcionalidades, estruturas, órgãos, sistemas e comportamentos. A matéria prima básica para esse tipo de evento evolutivo são as mutações, por mais que os criacionistas esperneiem e neguem. As mutações distribuem-se em um contínuo em relação ao seu impacto na sobrevivência e no sucesso reprodutivo dos organismos, indo das mais letais, ou reprodutivamente incapacitantes, às benéficas, passando pelas neutras ou efetivamente neutras. Porém esta correlação com o impacto sobre a aptidão dos organismos é algo que dependente basicamente do contexto, seja ele demográfico (tamanho da população efetiva, por exemplo), seja genômico-desenvolvimental (robustez das redes e vias bioquímicas e desenvolvimentais, redundância e degenerecência etc) ou ainda o contexto ecológico. Os argumentos sobre a improbabilidade da evolução de biomoléculas, como o “tornado em um fero velho e o boing 747” de Hoyle, também seguem uma linha similarmente falaciosa, ao ignorar os mecanismos evolutivos, a dinâmica populacional, o processo de separação e divergência das linhagens, mas mais especialmente o fato de não haverem alvos fixos e únicos, sendo os resultados atuais (as atuais biomoléculas) apenas uma entre muitas possibilidades funcionalmente equivalentes. Isso pode ser claramente visto ao nos atermos a variação intra e interespecíficas nas sequências dessas biomoléculas, além da existência de moléculas diferentes capazes de fazer o mesmo trabalho. Calcular a probabilidade do aparecimento de uma biomolécula, como uma sequência particular de proteína como a hemoglobina humana, é completamente irrelevante como argumento contra a evolução pois ignora a história, a dinâmica e a “mecânica” do processo evolutivo.
Além disso, mutações ocorrem em incrível variedade que vão desde trocas de um nucleotídeo por outro até grandes alterações cromossômicas. Alguns tipos de mutações como as duplicações e inserções são particularmente importantes pois são a base da criação de novos genes através de processos de neofuncionalização e subfuncionalização, além delas, e em geral operando juntamente com as duplicações, vale a pena destacar também, o embaralhamento de éxons, a domesticação de transposões e a fusão gênica. Alterações em seqüências não-codificadoras próximas aos elementos regulatórios dos genes, assim como a duplicação dos mesmos elementos, também podem deflagrar a evolução de novos circuitos genéticos, produzindo assim novos padrões de regulação gênica que se vantajosos tenderão a se espalhar pelas populações através das gerações.
Por fim, mesmo ao adotarmos definições mais rigorosas de informação, com as baseadas na teoria da informação de Shannon ou na versão algorítmica de Kolmogorov e Chaintin, mesmo assim não se chega a qualquer argumento que inviabilize a evolução. Este é outro grande erro. De fato, muitos pesquisadores têm desenvolvido versões da teorias da informação diretamente aplicáveis à evolução de biomoléculas e suas correlações com a função que tais moléculas desempenham nos organismos que as portam e a dinâmica populacional desse processo, muitos desses trabalhos tem aplicações práticas potenciais incríveis. Pesquisadores como Tom Schneider, Christoph Adami, Robert Penock, Charles Ofria, Jack Szostak e Robert Hazen têm ajudado a desenvolver o campo. Em resumo sistemas em que ocorrem mutações e que são capazes de replicação e que nos quais essa variação tem um impacto diferencial na reprodução, ou seja sofrem seleção natural, podem produzir o aumento do conteúdo informacional de um sistema e gerar novas funções, como um sistema de regulação gênico, como ilustrado pelos trabalhos de Schneider.
A revista de divulgação Scientific American publicou um ótimo artigo com 15 respostas aos criacionistas que é bastante ilustrativo, oferecendo respostas a vários outros erros cometidos por este movimento anticientífico (Rennie, 2002) e no evolucionismo.org pode ser encontrado um artigo do Eli Vieira, também excelente, “10 lições curtas para curar o criacionismo dos criacionistas”. Veja também os vídeos com os paleontólogos Neil Shubin e Donald Prothero e com o biólogo do desenvolvimento Sean Carrol, postados neste tumblr, além de outras respostas do “pergunte ao evolucionismo”. Navegue pela página de respostas e vc encontrará várias respostas sobre os temas aqui mencionados. Infelizmente nem todos os links diretos funcionam, mas todas as respostas são acessíveis através da página principal de respostas. Aconselho particularmente a reposta a questão “http://www.formspring.me/MatsPT/q/192918624040684860 - poderia dar a sua opinião sobre essa resposta? [postada no formspring evolucionismo] ” divida em parte I e parte II. Alguns artigos da rede ning evolucionismo.org como este, além dos que podem ser encontrados aqui, aqui, aqui , aqui, aqui e aqui, sobre origem da informação genética e da complexidade biológica são outras boas dicas. O biólogo PZ Myers do blog Pharyngula também responde a questão sobre a origem e aumento da informação genética em dois post [1, 2] de seu blog.
______________________________
Higgins, P., 2011. Uso e Abuso do registro fóssil: Definição dos Termos Parte I [traduzido por Rodrigo Véras, de Higgins, P., 2006. Use and Abuse of the Fossil Record: Defining Terms. Creation and Intelligent Design Watch, hosted by the Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal.] evolucionismo.org. Acessado em 27/05/2011.
Higgins, P., 2011. Uso e Abuso do registro fóssil: o caso do “Peixíbio” Parte II [traduzido por Rodrigo Véras, de Higgins, P., 2006. Use and Abuse of the Fossil Record: The Case of the ‘Fish-ibian’ Creation and Intelligent Design Watch, hosted by the Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal.] evolucionismo.org. Acessado em 27/05/2011.
Hazen RM, Griffin PL, Carothers JM, Szostak JW. Functional information and the emergence of biocomplexity. Proc Natl Acad Sci U S A. 2007 May 15;104 Suppl 1:8574-81. Epub 2007 May 9. PubMed PMID: 17494745; PubMed Central PMCID:PMC1876432
Hutter, Marcus (2007) Algorithmic information theory Scholarpedia, 2(3):2519.
Koonin EV. A non-adaptationist perspective on evolution of genomic complexity or the continued dethroning of man. Cell Cycle. 2004 Mar;3(3):280-5. Epub 2004 Mar 1. PubMed PMID: 14726650.
Lynch, Michael The Origins of Genome Architecture, 2007, Sinauer Associates, ISBN 9780878934843.
Musgrave, Ian [Last Update: December 21, 1998] Lies, Damned Lies, Statistics, and Probability of Abiogenesis Calculations The TalkOrigin Archive, acessado em 24/12/2010.
Musgrave, Ian, Baldwin, Rich and others [Posted: July 14, 2005] Information Theory and Creationism The TalkOrigin Archive, acessado em 24/12/2010.
Rennie J. 15 answers to creationist nonsense. Sci Am. 2002 Jul;287(1):78-85. PubMed PMID: 12085506.
Schneider TD. Claude Shannon: biologist. The founder of information theory used biology to formulate the channel capacity. IEEE Eng Med Biol Mag. 2006 Jan-Feb;25(1):30-3. PubMed PMID: 16485389; PubMed Central PMCID: PMC1538977.
Schneider TD. Evolution of biological information. Nucleic Acids Res. 2000 Jul 15;28(14):2794-9. PubMed PMID: 10908337; PubMed Central PMCID: PMC102656.
Stockwell, John [Last update: March 13, 2002] Borel’s Law and the Origin of Many Creationist Probability Assertions The TalkOrigin Archive, acessado em 24/12/2010.
Szostak JW. Functional information: Molecular messages. Nature. 2003 Jun 12;423(6941):689. PubMed PMID: 12802312
Abraços,
Rodrigo