Monday July 16, 2012
Anonymous: Acerca da filogenia de invertebrados: Articulata ou Ecdysozoa?
Esta é uma questão melhor deixada para os sistematas e biólogos comparativos, mas a resolução da polêmica tem pendido nos últimos anos para a aceitação da divisão dos bilateria protostômios em dois grupos: Lophotrochozoa e Ecdysozoa, em detrimento do grupo Articulata.
Enquanto o chamado clado Panarthropoda parece ser bem consensual, portanto, muito pouco problemático entre os sistematas de invertebrados, pelo menos do ponto de vista de sua monofilía, ou seja, origem única, as afinidades deste clado com outros grupos de invertebrados ainda são alvo de intensos debates.
A polêmica surge por que, como Brusca & Brusca afirmam, existiriam várias novidades evolutivas compartilhadas (sinapomorfias) entre Panarthropoda e os anelídeos, bem como os Onicóforos e os Tardígrados, por exemplo. Entre elas encontram-se a forma particular que os seus gânglios nervosos centrais organizam-se formando um corpo ‘cogumelar’ anterior e gânglios segmentares, além claro do coração formado por um elongamento tubular de um vaso sanguíneo longitudinal, das quatro ou cinco faixas musculares longitudinais e dos padrões segmentação dupla iteradas de expressão do gene engrailed que ocorrem durante o começo da segmentação e da neurogênese em ambos os grupos. Mas, acima disso tudo isso, artrópodes e anelídeos assemelham-se muito na forma com que suas cavidades corporais e os tecidos a elas associados desenvolvem-se durante sua ontogenia, mesmo que estas estruturas tenham diferenças anatômicas nos exemplares adultos destes dois grupos.
Assim as cavidades celomáticas transitórias que surgem em artrópodes, onicóforos e tardígrados são vistas tradicionalmente como sendo derivadas das cavidades pares celomáticas segmentadas que teriam existido em um ancestral comum dos artrópodes e anelídeos, no que ficou conhecido como 'teoria articulata’ ou ’hipótese articulata’ que remonta a visão de George Cuvier, ainda no século XVIII, dos quatro planos básicos de organização dos corpos dos animais, Vertebrata, Articulata, Mullusca, e Radiata.
Um dos problemas com esta visão é que, enquanto os anelídeos desenvolvem-se por um processo de clivagem espiral, ou seja, o plano de divisão (clivagem) das células embrionária se dá em ângulos progressivos de 90 graus em relação ao eixo animal-vegetal das células, os artrópodes desenvolvem-se de maneira bem mais heterogênea, com certos grupos mostrando padrões de clivagem embrionária que se assemelham ao padrão espiral, mas com outros grupos exibindo padrões de clivagem radiais. Para contornar este dificuldade foi proposto que os artrópodes tivessem perdido o padrão de clivagem espiral clássico exibido pelo suposto ancestral comum com os anelídeos e mantido por estes últimos, mas os problemas não param por aí.
A polêmica persistiu mesmo com a cada vez maior utilização de dados moleculares nas filogenias, mas os avanços contínuos nas técnicas de sequenciamento de DNA e no desenvolvimento e implementação de algoritmos de análise filogenética, acabaram por dividir o clado Articulata. Primeiro por meio de estudos filogenéticos empregando as sequência de DNA das subunidades ribossomais 18S e 28S que começaram a indicar que os anelídeos e artrópodes haviam divergido muito antes do que se pensava originalmente, mas ainda assim as limitações das amostras e técnicas utilizadas, ainda tornavam esta conclusão controversa. Os estudos de Aguinaldo em 1997 foram pioneiros em usar estes dados moleculares pare identificar um agrupamento filogenético alternativo ao grupo Articulata.

Agrupamentos assim, como o proposto por Aguinaldo, já haviam sido propostos anteriormente por meio da análise de características morfológicas, por pesquisadores como Perrier, em 1897, e Seurat, em 1920, muito antes dos modernos métodos da biologia molecular, e mesmo da cladística e das técnicas de análise filogenéticas modernas, estivessem disponíveis. Esta ideia é conhecida como 'hipótese da ecdíse’ e o grupo proposto por Aguinaldo que dividia os protostômios ficou conhecido como Ecdysozoa que seria um grupo irmão de Lophotrochozoa, às vezes chamado de Spiralia por causa do padrão de clivagem espiral.Depois dos trabalhos preliminares com as sequências de DNAs ribossômicos, com o tempo e com a adição de mais e mais genes, aos conjuntos de dados analisados nos estudos filogenéticos, começou a ficar cada vez mais claro que os artrópodes pareciam ser mesmo geneticamente bem mais próximos aos nematoides, e a outros organismos que passam por mudas, do que aos anelídeos, estes últimos sendo mais relacionados aos moluscos. Atualmente esta ideia é considerada pela maioria dos sistematas como a mais plausível para explicar as relações entre os anelídeos, artrópodes, nematoides e moluscos.
Animais como insetos e camarões, diferentemente dos que possuem esqueletos externos mineralizados como nós, constrói seu esqueleto a partir de uma cutícula formada por três camadas de material orgânico que faz o papel de um esqueleto exterior, exoesqueleto, o que permite que ele seja mais fino e mais leve do que o de outros animais, dispensando fontes de minerais e as complexas articulações, como 'joelhos’ e 'cotovelos’, permitindo grande flexibilidade. Porém estes animais por estarem envoltos por seus 'esqueletos’ e não crescendo sobre e eles, acabam por passar por um processo em conhecido como ecdíse em que sua cutícula é descartada. Mas além dos artrópodes outros grupos de invertebrados passam pelo mesmo tipo de processo [Veja aqui]. E essa característica é compartilhada por todos Ecdysozoa, isto é, a cutícula é periodicamente 'trocada’ conforme o animal cresce. Além disso, os Ecdisozoários não possuem cílios locomotores e seus espermatozóides são em sua grande maioria amebóides. Particularmente interessante também é o fato dos sistemas de controle de muda serem baseados em hormônios como ecdisosteróides que podem ser encontrados nos artrópodes e em outros animais deste grupo, como os nematoides.
Ecdysozoa é portanto um clado (uma agrupamento filogenético) composto por oito filos que incluem os artrópodes, tardígrados e onicóforos, que compartilham a segmentação e os apêndices (os já mencionados Panarthropoda), e os nematóides, nematomorfos, priapulídeos, cinorrincos e loricíferos, que são vermes com uma probóscide anterior ou introvertida.
Este grupo acaba por conter a grande maioria de espécies animais existentes e exibe uma grande diversidade de planos corporais entre seus membros vivos e já extintos, como demonstrado pelos seus fósseis. Apesar do certo consenso que existe em torno deste grupo, uma minoria respeitável de cientistas têm contestado esta conclusão, alguns argumentado em função de abordagens taxonômicas mais tradicionais, como veremos adiante, enquanto outros contestaram a interpretação dos dados moleculares e ressaltam o fato que os estudos em escala genômica não dariam apoio para a divisão dos protostômios em Ecdysozoa e Lophotrochozoa/Spiralia, muitas vezes apoiando propostas alternativas como a de Coelomata e Articulata.
Contudo, várias análises dessas críticas, e dos estudos que lhes dariam base, mostram que eles padecem de limitações de amostragem taxonômica, fator que poderia agravar artefatos de reconstrução das árvores filogenéticas, especialmente, a chamada 'atração dos ramos longos’ (’Long Branch Atraction’ ou LBA), um fenômeno que ocorre em análises filogenéticas e em procedimentos de agrupamento, consequência da maneira como os algoritmos responsáveis por estas análises funcionam, unindo os nós mais semelhantes que são preferencialmente agrupados, excluindo e isolando os mais diferentes que acabam sendo erroneamente agrupados juntos formando nós com ramos mais longos. Isso tem por consequência para as análises filogenéticas fazer com que as linhagens que evoluem mais rapidamente acabarem sendo colocadas juntas e portanto inferidas como se estivessem estreitamente relacionadas, independentemente de isso ser verdade ou não.
Esses mesmos autores mostram que quando são empregados procedimentos para se evitarem tais artefatos, como a remoção de sítios que evoluem muito rápido, evidências convincentes para a realidade da divisão Ecdysozoa/Lophotrochozoa, são obtidas, evidenciando que clados como Coelomata são meros produtos artefatuais. Holton e Pisani, por exemplo, mostram que a seleção ótima dos grupos externos, que permitem enraizar as árvores filogenéticas, é um dos fatores chave para evitar LBA e conseguem identificar o uso de grupos externos inadequados como a razão mais profunda para os agrupamentos obtidos pelos críticos da divisão dos protostômios em Ecdysozoa e Lophotrochozoa/Spiralia.
As críticas que persistem são aquelas baseadas na análise de características embriológicas e morfológicas tradicionais. De acordo com Brusca & Brusca, por exemplo, o grande problema do clado Ecdysozoa é que as sinapoporfias, ou seja, aquelas várias inovações evolutivas compartilhadas por anelídeos e artrópodes passam a ser consideradas homoplasias, ou seja, devidas a evolução convergente independente de ambos os grupos, o que leva os autores do famoso compêndio sobre invertebrados a dizerem:
“É difícil imaginar a precisa a evolução da complexidade do desenvolvimento do teloblasto metamérico mediado por múltiplos genes.”
Nielsen propôs como solução, encarar Annelida como um grupo irmão de ecdysozoa dentro de Articulata, o que implicaria que a segmentação teria sido perdida em filos tais como Nematoda e Priapula, com o filo cinorrinca podendo exibir um forma de 'segmentação reduzida’, com músculos seriadamente dispostos e associados com anéis de cutícula.
O fato desses grupos terem se separado há muito tempo, em um passado remoto, e linhagens dentro de cada subgrupo terem ganho e perdido características torna a análise complicada e como persistem algumas discussões metodológicas importantes, ainda deveremos ver muitas discussões sobre a questão, mesmo com a existência do consenso crescente em relação a realidade dos Ecdysozoa.
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Literatura Recomendada:
Brusca, R. C.; Brusca, G. J. Invertebrados. 2ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2007.
Aguinaldo A.A, Turbeville J.M, Linford L.S, Rivera M.C, Garey J.R, Raff R.A, Lake J.A 1997 Evidence for a clade of nematodes, arthropods and other moulting animals. Nature. 387, 489–493. doi:10.1038/387489a0.
Telford MJ, Bourlat SJ, Economou A, Papillon D, Rota-Stabelli O. The evolution of the Ecdysozoa. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2008 Apr 27;363(1496):1529-37. Review. PubMed PMID: 18192181; PubMed Central PMCID: PMC2614232.
Campbell LI, Rota-Stabelli O, Edgecombe GD, Marchioro T, Longhorn SJ, Telford MJ, Philippe H, Rebecchi L, Peterson KJ, Pisani D. MicroRNAs and phylogenomics resolve the relationships of Tardigrada and suggest that velvet worms are the sister group of Arthropoda. Proc Natl Acad Sci U S A. 2011 Sep 20;108(38):15920-4. Epub 2011 Sep 6. PubMed PMID: 21896763; PubMed Central PMCID: PMC3179045.
Holton TA, Pisani D. Deep genomic-scale analyses of the metazoa reject Coelomata: evidence from single- and multigene families analyzed under a supertree and supermatrix paradigm. Genome Biol Evol. 2010 Jul 12;2:310-24. PubMed PMID: 20624736; PubMed Central PMCID: PMC2997542.
Zrzavý Ecdysozoa versus Articulata: clades, artifacts, prejudices. Journal of Zoological Systematics and Evolutionary Research, 39: 159–163, 2001 doi: 10.1046/j.1439-0469.2001.00168.x
Giribet G. Molecules, development and fossils in the study of metazoan evolution; Articulata versus Ecdysozoa revisited. Zoology (Jena). 2003;106 4):303-26. PubMed PMID: 16351916.
Giribet G. Assembling the lophotrochozoan (=spiralian) tree of life. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2008 Apr 27;363(1496):1513-22. Review. PubMed PMID: 18192183; PubMed Central PMCID: PMC2614230.
Edgecombe GD, Giribet G, Dunn CW, Hejnol A, Kristensen RM, Neves RC, Rouse GW, Worsaae K, Sørensen MV. (2011) Higher-level metazoan relationships: recent progress and remaining questions.Org Divers Evol, Volume 11, Number 2, 151-172.
Créditos das Figuras:
DR GEORGE BECCALONI/SCIENCE PHOTO LIBRARY
HEITI PAVES/SCIENCE PHOTO LIBRARY
DR MORLEY READ/SCIENCE PHOTO LIBRARY
DAVID SCHARF/SCIENCE PHOTO LIBRARY
Articulata Hypothesis graph: Fonte: wikicommons Data: 14 de maio de 2010; Autor:Jdempersmier (talk)
Grande abraço,
Rodrigo