Monday March 05, 2012
<a href="https://h4wrt.tumblr.com/" style="text-decoration:underline;">h4wrt</a>: Um vlogueiro questiona o desenvolvimento de linguagem no processo evolutivo (são dois vídeos): migre[PONTO]me[BARRA]89Mgz e migre[PONTO]me[BARRA]89Mgs - Gostaria que comentasse sobre, e dissesse qual o papel do desenvolvimento de linguagem na evolução humana. Obrigado.
Eu, por enquanto, só consegui assistir o primeiro vídeo e já foi bastante cansativo pois ele praticamente não avança nas questões por ele abordadas. Infelizmente apesar dele parecer genuinamente interessado e compreender, bem por alto, o que é a evolução - ainda que prefira a formulação mais reducionista desenvolvida por autores como Dawkins - o autor do vídeo, ao mesmo tempo, não conhece praticamente nada da moderna biologia evolutiva.
Assistindo ao vídeo fica-se com a impressão que só existe Darwin e Dawkins, que só teria contribuído com a ideia de memes, e isso seria tudo que há sobre a Teoria Evolutiva (TE). Não parece que o autor do vídeo esteja consciente do fato de que muitas de suas dúvidas já fazerem parte da biologia evolutiva e de outras abordagens inspiradas nela, como as desenvolvidas pela Psicologia Evolutiva, Ecologia Comportamental Humana, Antropologia Evolutiva, Sociobiologia. Além de algumas delas serem parte das ciências cognitivas da religião que têm um foco bem particular naquilo que ele considera o fator de maior impacto em nossa história e sociedade.
Não sei por meio de que material o autor do vídeo estudou biologia evolutiva, mas não entendo como ele conseguiu fazer isso e não se deparou com as discussões sobre teoria dos jogos evolutiva e dinâmica evolutiva aplicada aos estudos sobre a evolução da cooperação e do altruísmo [veja aqui, por exemplo], informações que já esclareceriam muitas das dúvidas mal formuladas e os equívocos conceituais que ele possui.
Outra questão que me deixou muito frustrado é o fato dele caracterizar a Teoria Evolutiva como se esta estivesse apenas preocupada com a competição entre indivíduos. O que acontece é que mesmo que eu aceitasse uma caracterização mais simplista da TE, em que a seleção natural é o único fator relevante, ainda assim, eu não poderia esquecer que, além da competição direta entre indivíduos, existem uma miríade de outros tipos de interações ecológicas como a predação, o parasitismo e as diversas formas de simbiose que definem as pressões de seleção. De fato, a cooperação entre indivíduos da mesma espécie e de espécies diferentes, há muito tempo, é uma das principais avenidas de pesquisas da moderna biologia evolutiva e não só no que diz respeito aos animais não-humanos e aos seres humanos.
O estudo da origem da multicelularidade e das relações ecológicas como o mutualismo e comensalismo enfocam essas questões de maneira muito mais geral do que a mera questão do altruísmo e cooperação entre seres humanos, por exemplo. A própria teoria da endossimbiose é um exemplo de como a biologia evolutiva moderna preocupa-se com este tipo de questão e as incorporou há muito tempo.
É verdade que é possível, metaforicamente, considerar todos estes tipos de interação ecológicas que citei (e outras mais) como se fossem, de uma forma ou de outra, tipos de “competição”. Isto é, tratá-las como se fossem competições entre organismos de espécies diferentes, entre níveis de agregados de organismos, entre os indivíduos com sigo mesmos etc. Estas interpretações podem, em certos casos, até serem legitimadas através de algumas abordagens de modelagem, como as que consideram que grupos (‘demes’) de indivíduos que se envolvem em interações competitivas diretas com outros grupos, resultando em maior duração e “reprodução” diferencial desses grupos em relação a outros, o que faz parte de uma extensão da teoria de Darwin a outros níveis. Porém, caso adotada sem maiores cuidados esta perspectiva pode simplesmente trivializar a questão, tirando todo apelo explicativo do conceito de competição.
Na realidade, o biólogo David Sloan Wilson em seu livro Darwin’ s Cathedral, discute papel da seleção de grupo (e os efeitos da competição entre comunidades humanas) como explicação para a origem e manutenção das religiões, o que mais uma vez mostra como o autor do vídeo desconhece o estado de arte da biologia evolutiva moderna. Fica claro com isso, que o vlogueiro em questão também não conhece as discussões que contrastam seleção individual (e outras mecanismo como altruísmo recíproco) e seleção de parentesco com a seleção de grupo, em suas várias versões, e muito menos as pesquisas e discussões mais amplas sobre seleção (e triagem) de espécies e seleção da clados.
Aliás, o tópico “evolução da religião” (a despeito da discussão sobre os níveis de seleção) é muito amplo e tem sido estudado por pesquisadores de áreas como antropologia cognitiva e ciências cognitivas da religião que são muito bem informados pela biologia evolutiva moderna. Neste campo, os principais debates envolvem determinar se a religião surge como produto direto da evolução por seleção natural ouse ela se originou como subproduto da evolução a partir de características inicialmente selecionadas para outras funções não-religiosas, mas que predispuseram os seres humanos à religiosidade. Basta ver o trabalho de pessoas como Pascal Boyer, Justin Barrett, Ilka Pyysiäinen, Bruce Hood e outros que têm se dedicado a estudar a problemática específica da origem e manutenção das religiões e de nossas predisposições cognitivas que estariam por trás delas.
É particularmente frustrante quando ele insiste que as pessoas não compreendem a TE e atribui isso a suposta densidade da obra de Darwin, ignorando tanto que existe uma extensa comunidade de cientistas que desenvolveram a TE muito além do imaginado por Darwin e Wallace, como o fato de existirem livros-texto (e de divulgação), de primeira, sobre biologia evolutiva.
Realmente fica muito estranho quando ele insiste que as pessoas não compreendem o que é a TE quando isso é fato apenas para os leigos já que os biólogos evolutivos e demais pesquisadores que estudam áreas correlatas, como antropologia, psicologia evolutiva, psicologia comparativa, evolução cultural etc, conhecem muito bem a TE e a tem testado, modificado e expandido faz mais de 150 anos. O mais triste é que ele compreende a TE apenas muito superficialmente, mas não tem muita consciência disso e faz um vídeo enorme e cansativo para esclarecer as pessoas sobre a TE e acaba vociferando muitos mais equívocos do que esclarecimentos.
Vamos agora a algumas questões específicas que precisam ser melhor explicadas. O autor comete um erro ao definir a TE como “ação e resposta”. Embora as mudanças do meio sejam importantes, elas não são necessárias para evolução. Isso acontece por que a evolução, mesmo a adaptativa, depende do contexto ecológico-demográfico das populações que é algo tremendamente dinâmico. Assim, caso ocorra uma mudança do meio ambiente, uma forma mutante de um gene, já existente na população, que passe a ser favorecida, deverá se expandir pela população através das gerações. Isso pode ocorrer, por exemplo, por que este alelo confere alguma característica que aumenta a capacidade de sobrevivência (e especialmente o sucesso reprodutivo) de seu portador frente aos portadores dos demais genótipos (inclusive o que era anteriormente mais bem sucedido) naquele novo meio ambiente.
Porém, é perfeitamente possível que sem que haja qualquer mudança ambiental um novo alelo mutante traga alguma característica vantajosa aos seus portadores naquele mesmo velho ambiente, desviando assim a composição genética da população e aumentando, ao longo das gerações, a frequência do alelo novo naquela população, naquele mesmo ambiente. Mas mais do que isso, não podemos nos esquecer que o ‘sucesso’ de um alelo qualquer, especialmente em pequenas populações, pode ser fruto do acaso decorrente da amostragem aleatória de alelos durante o processo de formação de gametas e de fecundação ou mesmo devido a flutuações casuais nas taxas de sobrevivência e reprodução que não possam ser atribuídas a qualquer pressão seletiva. A evolução, portanto, pode ocorrer por processos estocásticos como a deriva genética aleatória e isso não é capturado pela conceituação dele que deixa uma parte extremamente importante do processo evolutivo de fora.
O autor aponta corretamente os problemas de certas analogias, mas durante o próprio vídeo ele mesmo sucumbe a elas. Por exemplo, quando falamos que a seleção natural é um agente do processo evolutivo é bem comum que isso seja interpretado de maneira mais literal do que deveria. A seleção natural passa, na cabeça de muita gente, a ganhar contornos intencionais que podem ser facilmente atrelados a evolução como um todo, mas como o autor do vídeo, lembra não há qualquer agente cognoscitivo por trás da evolução, pelo menos como ela é cientificamente abordada. A reprodução diferencial, as mutações e a hereditariedade ocorrem como resultado de processos naturais e a seleção natural, que é um dos fatores que define a reprodução diferencial, acontece como efeito das interações entre indivíduos uns com os outros e com o seu meio biótico e abiótico de acordo com o contexto ecológico e demográfico particular.
O problema é que após alguns minutos, depois esclarecer que a evolução não é guiada neste sentido pessoal, o próprio autor cai vítima da personificação da mesma ao afirmar que “do ponto de vista da evolução” não deveríamos fazer mais do que sobreviver e reproduzir, e que para tanto seria suficiente um comportamento caçador e coletor, tornando, na mente do autor, problemática toda a evolução cognitiva especialmente de faculdades abstratas e da capacidade de representação simbólica. O problema com essa perspectiva é que ela acaba por colocar a evolução como um programador rígido que possui certos objetivos e não desvia de seus métodos, quando de fato a evolução é apenas um processo de mudança das características herdáveis de uma população e de divergência entre populações e linhagens pelo acumulo de mudanças fortuitas e pela especialização ecológica dessas linhagens.
Desta maneira, caso haja hereditariedade, variação herdável e sucesso reprodutivo diferencial haverá evolução e se esse sucesso reprodutivo diferencial estiver vinculado, de maneira casual e sistemática, a certas variações herdáveis em um dado contexto de interações ecológicas, então, teremos a seleção natural. Além desses prerrequisitos, não importa muito o que ocorra e como ocorra. Não há, portanto, qualquer impedimento para que os seres vivos evoluam faculdades e habilidades extras que não tenham sido desde o início resultado da seleção natural e que não criem novas dimensões de interação. Afinal, se fosse assim, nosso planeta seria apenas povoado por sistemas auto-replicantes muito simples, talvez no máximo, ligeiramente além daquilo que seria minimamente necessário para que não sofressem uma catástrofe por acumulo de erros. Não haveria ‘necessidade evolutiva’ de seres multicelulares, por exemplo, e nem de ecossistema complexos e muito menos de nós etc. Essa limitação do autor advém provavelmente dessa compreensão muito rasa da biologia evolutiva e da falta de atenção para o seu caráter contexto-dependente e histórico.
Como Stephen Jay Gould enfatizou, isso pode simplesmente acontecer por que, em qualquer sistema complexo natural que tenha evoluído de forma contingente e oportunística, o número de subprodutos funcionais e detalhes estruturais secundários de qualquer estrutura mas complicada, será, provavelmente, muito maior do que o número de funções que tenham originalmente contribuído para a fixação da característica em um primeiro momento, mas são essas novas características que podem trazer novas funcionalidades que podem, assim, tornarem-se úteis em novo um dado contexto. Desta maneira, pequenas variações nessas estruturas passarão a ser vantajosas iniciando um processo de cooptação funcional por seleção natural.
O único impedimento grande para o aparecimento dessas ‘sequelas’, como Gould a elas se referia algumas vezes - ou “spandrels” como ficaram mais conhecidas, após o artigo de 79 em coautoria com Richard Lewontin - é que elas não tragam grande impacto negativo na sobrevivência e reprodução de seus portadores. O resto é uma questão probabilística associada as populações biológicas, sua composição genômica e as características previamente exibidas por aquela população e a forma como elas de originam durante o desenvolvimento ontogenético dos indivíduos.
Um mesmo tipo de adaptação pode ser alcançada por vários caminhos diferentes, alguns mais prováveis outros menos, mas mais importante do que isso, é em desses caminhos (às vezes mesmo os menos prováveis) podem abrir novas oportunidades ecológicas que ‘arrastarão’ a evolução das linhagens descendentes da linhagem que originalmente evoluiu a nova características de uma dada maneira específica. Aí teremos uma grande radiação adaptativa e um novo modo de vida terá se originado. A evolução, ao ocorrer, produz novos contextos para a evolução futura estabelecendo novas pressões ecológicas e abrindo novas possibilidades de que questões envolvendo sucesso reprodutivo e sobrevivência sejam “resolvidas” de diferentes maneiras pelas populações de organismos.
Falando agora especificamente da mente humana, existem duas perspectivas muito claras nos estudos de evolução cognitiva. A primeira, que é a adotada pelos Psicólogos Evolutivos senso estrito, encara nossas diversas faculdades cognitivas como sendo massivamente modulares e tendo, por isso, se originado como produtos diretos da evolução por seleção natural e por seleção sexual em função de contextos socioculturais e ecológicos bem específicos nos quais viviam nossos ancestrais no pleistoceno. A segunda é compartilhada por um grupo mais heterogêneo de cientistas e filósofos que são bem críticos a abordagem da primeira. Esta segunda pode ser chamada de psicologia evolutiva senso amplo. Esta abordagem menos estruturada é caracterizada por ser bem mais pluralista e é formada por pesquisadores que encaram a mente moderna como um produto tanto de pressões diretas que fizeram com que certas faculdades fossem mais vantajosas, mas em geral envolvendo certos aspectos mais gerais do cérebro; como também derivada de efeitos indiretos de outras pressões em outras características biológicas, além de processos não-adaptativos.
Além disso, existe uma ênfase por parte de muitos pesquisadores, mais inclinados a este segundo tipo abordagem, na evolução cultural que ocorreria de maneira concomitante a evolução biológica, com as característica mais gerais evoluindo de maneira mais influenciada por fatores biológicos diretos e os detalhes específicos evoluindo mais pelos contextos culturais mais específicos através de mudanças por meio de aprendizado social e imitação, porém, com um feedback contínuo entre os dois domínios.
Nesta abordagem, características como a flexibilidade comportamental e aprendizado social recebem o maior foco de atenção, bem como o tipo de mudanças biológicas que podem ter sustentado tais características, como, por exemplo, a plasticidade neural.
Para ficar mais claro, me arrisco com um exemplo hipotético sobre evolução cognitiva humana:
Podemos facilmente pensar que uma maior eficiência no rastreamento de presas - associada a uma maior capacidade de aprender e lembrar de técnicas e locais de (forrageio) caça e coleta - pode ter sido uma das pressões ecológicas iniciais que favoreçam o aumento da inteligência. Esta característica, entretanto, pode ser alcançada de várias formas. Por exemplo:
Pode ocorrer por meio do desenvolvimento das faculdades mentais em separado, o que demandaria que a modularidade de nossa arquitetura mental se refletisse também em uma modularidade dos genes que as codificariam, através de múltiplas pressões socioecológicas diferentes;
Pode acontecer, de maneira diferente, através do aumento geral da conectividade de vastas áreas cerebrais associado a um maior período de plasticidade neural e de aprendizado social, ligado provavelmente a um nascimento mais prematuro que seria tolerado por causa de um forte vínculo emocional já existente entre mães e filhos, mas também pais e irmãos e até de uma família mais estendida, como é comum em certos primatas.
Os dois tipos de modificações teriam consequências secundárias distintas - muitas delas neutras e, algumas, até ligeiramente negativas (caso fossem muito negativas provavelmente nem se fixariam claro), mas que no computo geral seriam compensadas pelas vantagens trazidas. Mas o ponto principal aqui é que essas diferentes consequências secundárias poderiam no futuro, mesmo que imediatamente tivessem o mesmo resultado prático (leia-se levarem ao maior sucesso reprodutivo dos indivíduos que as apresentasse), enviesar a evolução de novas características. Na medida que novas pressões ecológicas especialmente de natureza sócio-emocional surgissem, elas poderiam tornar alguns “caminhos’ evolutivos mais prováveis e outros menos. Esta é mais uma camada de variabilidade e de contingência história que permeia a evolução e que não é fruto apenas da natureza aleatória das mutações, tornando a ideia da evolução por meio da seleção natural como um algoritmo determinista e com resultados sempre previsíveis bastante inadequada a não ser em problemas muito específicos e de curto prazo, o que não parece ser compreendido pelo autor do vídeo que tem uma ideia muito simplista do que é a evolução e, como resultado, do que é a moderna TE.
Continuando com a hipótese: Uma vez que ocorresse esse aumento na capacidade de raciocínio e memória - independentemente da forma específica como ela tenha ocorrido, i.e. “aumento e plasticidade geral por alterações em genes que controlam a proliferação celular cerebral genética vs aumento e plasticidade de módulos específicos codificados de modo mais ou menos independente por circuitos genéticos diferentes” - essas características poderiam ter um afeito positivo na habilidade de reconhecimento de indivíduos por causa das particularidades não-diretamente selecionadas da forma com essas características evoluíram e se desenvolvem nos indivíduos ao longo de sua ontogenia. Mas estas novas facetas de características anteriores, poderiam colaborar com o monitoramento social, por exemplo, por terem como consequência secundária uma maior empatia e, em função dela, conferirem uma melhor habilidade na predição do comportamento alheio (‘teoria da mente’) e dos vínculos emocionais, facilitando não só a antecipação de pensamentos dos outros como das resposta emocionais desses mesmos indivíduos frente a certas situações, algo que por si só se constituiria em um novo e mais complexo contexto de interações socioculturais e afetivas que, por sua vez, definiriam novas pressões seletivas de natureza socioafetiva.
Estas novas pressões, por sua vez, poderiam tornar as capacidades de abstração e o domínio de raciocínio simbólico - surgidas como subprodutos da complexificação mental em decorrência de outras pressões e da forma particular como elas se deram - agora, muito úteis, pois o número de indivíduos envolvidos nas relações e nas interações sociais e a quantidade de cenários possíveis que deveriam ser analisados passaram a ser muito grandes e, desta maneira, algum tipo de faculdade de representação abstrata e manipulação de símbolos tornar-se-ia crucial, o que passaria a impulsionar modificações incrementais destas faculdade e que começariam a ser a tônica da evolução cognitiva por seleção natural. Os trabalhos do antropólogo Terrence Deacon são bastante pertinentes, especialmente o livro com o sugestivo título The Simbolic Species de 1997 em que a evolução do cérebro e da linguagem humana são tratados de uma perspectiva co-evolutiva, bem como os trabalhos de Robert Boyd e Peter J. Richeson sobre coevolução genes/cultura e os sobre construção de nicho de Kevin Laland e seus vários colaboradores, além da ampla literatura sobre Psicologia Evolutiva amplo e estrito senso.
Este cenário hipotético, baseado em algumas evidências, modelos, hipóteses e especulações da literatura científica, mostra como os processos de mutação e deriva genética interagem com seleção natural e como a própria seleção dependente do contexto que pode variar em função de vários detalhes, realimentando nos outros fatores evolutivos. Ao mesmo tempo espero que tenha ficado claro que o ambiente não é um parâmetro estático, uma espécie de pano de fundo constante, mas, sim, que ele tanto afeta como é afetado pela evolução. Isso torna a evolução de longo prazo muito difícil de ser predita, algo que não pode ser perdido de vista. Além do que, o ambiente, no caso da evolução de animais como os mamíferos e especialmente os primatas, não diz respeito apenas a competição dos indivíduos por recursos, parceiros e espaço no contexto do forrageio imediato, mas envolve também os detalhes socioafetivos e culturais que emergem durante a evolução comportamental dos animais que passa a gerar suas próprias pressões que definem quem tem maior ou menor chance de reproduzir-se. O sucesso reprodutivo em espécies como a nossa depende em muito da forma como nos relacionamos uns com os outros, o que envolve a nossa cultura e nossas emoções, e dos problemas que nós próprios criamos a medida que interagimos.
Talvez um dos maiores problemas com o autor do vídeo são as fontes que ele teve acesso que me pareceram ser muito restritas e primárias. Por exemplo, muitas das questões que discuti podem ser ofuscadas quando se pressupõem que a evolução é um mero processo de competição entre genes/indivíduos que disputam entre si por fazerem mais cópias de si mesmos, o que é obviamente uma metáfora útil e poderosa, mas cujas limitações têm sido apontadas, desde que foram propostas por Dawkins nos anos 70, e que precisam ser levadas em conta.
O maior problema é que esta metáfora - e a dicotomia entre “replicadores” e “veículos” - pode obscurecer o papel das interações entre organismos e seus fenótipos per se em seu contexto ecológico e demográfico que é onde a ‘ação evolutiva’ realmente ocorre. Mesmo assim, isto é, mesmo dentro dessa abordagem mais reducionista e simplificada, existe um enorme histórico de modelagem e discussões sobre as questões que o autor do vídeo mostra-se em dúvida e perplexo, dando a entender que elas jamais foram tratadas dentro da teoria da evolução, como eu já havia comentado. Por isso, o que me parece é que falta ao rapaz realmente estudar evolução, além de genética, é claro. O que deveria ser feito lendo fontes modernas sobre o assunto para que ele não continue com uma visão tão limitada e equivocada sobre o assunto.
____________________________________________
Literatura Recomendada:
Boyd,R and Richerson, P Not By Genes Alone: How Culture Transformed Human Evolution. Chicago: University of Chicago Press. 2005.
Boyer, P. 2001. Religion Explained: Evolutionary Origins of Religious Thought. New York: Basic Books, 403.
Deacon Terrence The Symbolic Species: The Co-evolution of Language and the Brain. New York: W.W. Norton & Company. 1997.
Futuyma, D.J. Biologia Evolutiva. Funpec. Ribeirão Preto 3ª ed, 2009 , 830 p.
Freeman, S. & Herron, J.C. 2009. Análise Evolutiva. 4 ed. Artmed, Porto Alegre. 831 p.
Gould, Stephen Jay and Lewontin, Richard C.“The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm: A Critique of the Adaptationist Programme” Proc. Roy. Soc. London B 205 (1979) pp. 581-598
Hood, Bruce M. Supersentido (2010) ed Novo Conceito ISBN: 978-85-63219-05-3.
Lewin, R. Evolução humana. São Paulo: Atheneu, 1999.
Lewin, R., Foley, R.A., Principles of Human Evolution, 2nd Ed., Blackwell Science Ltd, 2004.
Mayr, E. O Que é a Evolução (tradução:Ronaldo di Biasi) editora Rocco
Pyysiäinen, I, Hauser M. The origins of religion: evolved adaptation or by-product? Trends Cogn Sci. 2010 Mar;14(3):104-9. Epub 2010 Feb 9. PubMed PMID:20149715.
Ridley, M. Evolução. Porto Alegre: Artmed, 3ª ed., 2006, 752p
Wilson, David Sloan Darwin’s Cathedral: Evolution, Religion, and the Nature of Society, Chicago: University of Chicago Press, 2002, 232 pp
Wood, Bernard Human Evolution: A Very Short Introduction. Oxford University Press, Oxford & New York, 2005, 131 pp
Grande abraço,
Rodrigo
P.S. Em outra ocasião tentarei assistir o segundo vídeo e caso haja lago diferente que valha a menção, volto a abordar aqui no tumblr.