Monday November 17, 2014
Anonymous: Como os genes desativados (pseudogenes) são evidências evolutivas? Ouvi falar que baleias, golfinhos, botos e cobras ainda possuem genes para fazer pernas, pássaros para fazer dentes, e nós humanos para fazer caudas, por exemplo, e ainda existem genes para fazer outras partes das quais muitas espécies não usam ou não possuem atualmente. Poderia explicar melhor isso?
Sobre pseudogenes, dê uma olhada nestas duas respostas sobre o assunto aqui e aqui. Pseudogenes são um tipo de ‘fóssil molecular’ e mostram que mesmo que certos organismos não possuam algumas características específicas presentes em outros organismo com os quais compartilham ancestrais comuns, ainda assim, existem sequências de DNA deterioradas, homólogas as que continuam ativas, nestes seus parentes, que, assim, corroboram a ancestralidade comum.
Já sobre o resto de sua pergunta, preciso fazer algumas correções em relação a certos pressupostos. Sim, em um certo sentido podemos dizer que animais como cetáceos e serpentes ainda possuem genes 'para fazer pernas’, bem como aves ainda possuíram genes para fazerem dentes etc. De fato, em alguns casos conseguimos mostrar que nos embriões de animais como golfinhos, primórdios de membros posteriores (pernas) que não existem nos adultos ainda surgem no embrião, para logo depois desaparecerem. Porém, isso não tem relação necessária com pseudogenes.
Para que isso fique claro, como eu explico em maior detalhe nos links já fornecidos, pseudogenes são basicamente genes (ou cópias extras de genes) que tornaram-se inativos, normalmente, porque suas sequências sofreram mutações que impedem que sejam expressos, seja por que não são mais transcritos (RNAs) ou porque seus transcritos dão origem a proteínas truncadas, que são, geralmente, rapidamente degradadas, não mais sendo capazes de exercerem suas funções originais. Estas sequências tendem, a partir do momento de sua inativação, a acumular cada vez mais mutações ao longo do tempo, o que permite estimar os tempos de divergência entre espécies de organismos diferentes, baseado nas diferenças entre os pseudogenes. Um dos exemplos mais claros de um pseudogene é o da sequência de DNA responsável pela síntese da vitamina C, que nós seres humanos ainda carregamos uma cópia, que, porém, é inativa. Este gene em outros mamíferos permite que eles sintetizam a vitamina C, mas a nossa cópia não consegue guiar a síntese da enzima necessária a este processo, o que faz com que tenhamos que obter esta vitamina por meio de nossa dieta. Contudo, embora hajam alguns exemplos de pseudogenes em aves que são equivalentes aos genes associados a produção de proteínas dentais em lagartos e crocodilianos como esmalte (ex: amelogenina, AMEL; ameloblastina, AMBN; enamelina, ENAM) e a dentina (dentina sialofosfoproteina, DSPP), na maioria dos casos em que há alterações morfológicas do tipo que você citou, os genes em questão (nestes organismos que apresentam grande modificação, perda ou simplificação de estruturas ancestrais) continuam a existir, sendo completamente funcionais. O que aconteceu foi que estes genes são ativados de maneira distinta, interagindo com outros genes, tendo funções diferentes durante o processo de desenvolvimento embriológico e crescimento dos organismos. É isso que permite, em certos contextos experimentais, induzir algumas estruturas 'atávicas’ ao manipularmos certas vias de desenvolvimento e as propriedades de certos tecidos. Isto é, nestes casos os cientistas não estão reativando pseudogenes, mas estão ’reconectando os circuitos genético-desenvolvimentais’ destes organismos de modo tentar reproduzir padrões de desenvolvimento análogos aos presentes nos ancestrais [Dê uma olhada no post “Genes adormecidos: da história da genética ao Jurassic Park”, principalmente, no meu comentário sobre esse post.].
Estes estudos mostram que mesmo que genes não tenham as mesmas funções no desenvolvimento dos organismos atuais, que tinham nos ancestrais e que ainda mantém em organismos aparentados, algumas das suas potencialidades ainda podem ser resgatas ao fazer com estes mesmos genes sejam expressos de maneira diferente e portanto fazendo com que seus produtos (RNAs e proteínas) interajam de maneira distinta, alterando o padrão de proliferação, movimento, adesividade e forma das células e, assim, das forças mecânicas e sinais químicos que emergem durante o desenvolvimento embriológico e crescimento de certos tecidos, órgãos e sistemas.
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Literatura Recomendada:
Thewissen, J. G. M., Cooper, Lisa Noelle, George, John C., Bajpai, Sunil From Land to Water: the Origin of Whales, Dolphins, and Porpoises Evolution: Education and Outreach June 2009, Volume 2, Issue 2, pp 272-288.
Adams, J. & Shaw, K. (2008) Atavism: embryology, development and evolution. Nature Education 1(1)
Chen, Y., et al. Conservation of early odontogenic signaling pathways in Aves. Proceedings of the National Academy of Sciences 97, 10044–10049 (2000) doi:10.1073/pnas.160245097
Harris, M. P., et al. The development of Archosaurian first-generation teeth in a chicken mutant. Current Biology 16, 371–377 (2006) doi:10.1016/j.cub.2005.12.047
Sire JY, Delgado S, Girondot M. The amelogenin story: origin and evolution. Eur J Oral Sci. 2006 May;114 Suppl 1:64-77; discussion 93-5, 379-80. PubMed PMID: 16674665.
Al-Hashimi N, Lafont AG, Delgado S, Kawasaki K, Sire JY. The enamelin genes in lizard, crocodile, and frog and the pseudogene in the chicken provide new insights on enamelin evolution in tetrapods. Mol Biol Evol. 2010 Sep;27(9):2078-94. Epub 2010 Apr 19. PubMed PMID: 20403965.
Grande abraço,
Rodrigo