Monday November 24, 2014
Anonymous: a explosão cambriana deixou a teoria de darwin imcompleta?
Sinto muito, mas sua pergunta é meio vaga. Não sei exatamente o que você tem em mente ao dizer “a teoria de Darwin”. Você pode estar se referindo a algo bem amplo, como ao fenômeno da ancestralidade comum por descendência com modificação e a toda biologia evolutiva moderna, ou a algo bem mais restrito e delimitado historicamente, como pode referi-se a versão original da teoria da evolução por seleção natural, proposta por Darwin e Wallace em uma época que, nem ao menos, havia uma boa teoria hereditária e, na qual, muito menos, compreendíamos suas bases moleculares. Além deste problema, posso dizer sem exagero que toda teoria científica é incompleta e é por isso que os cientistas tentam corrigi-las, aprimorá-las ou desenvolver versões ou mesmo novas teorias mais abrangentes e precisas. Não foi diferente com a teoria evolutiva desde que Darwin e Wallace publicaram suas ideias. É por isso que podemos falar de ’Darwinismo’, ’Neo-Darwinismo’, ’teoria sintética da evolução’ e (é por causa disso também que alguns pesquisadores já falam em uma) ‘teoria sintética ampliada da evolução’ - embora esta ideia ainda seja bastante controvertida. Estas possibilidades é que levam a empregar a expressão 'teoria evolutiva moderna’ para descrever o presente estado de desenvolvimento do corpo teórico, empírico, matemático-estatístico e metodológico da biologia evolutiva.
Ainda tentando te dar uma resposta, precisamos lembrar que, na época de Darwin, os fósseis mais antigos realmente datavam do período cambriano, mas nas décadas (e séculos) que se seguiram a proposição de sua teoria, fizemos novas descobertas e o registro fóssil foi estendido para mais de 3 bilhões de anos. Mesmo o registro fóssil dos animais foi estendido para o período pré-cambriano, como mostram as biotas de Ediacara [Veja aqui para maiores detalhes]. Isso sem esquecer que o registro fóssil do próprio período cambriano foi muito incrementado pelas descobertas de Lagerstätte, como o folhelho de Burgess, no Canadá, e o de Maotianshan, na China. Nossa compreensão da geologia, especialmente da geoquímica e geofísica, bem como da genética do desenvolvimento (em conjunto com o desenvolvimento e avanço nos métodos de inferência filogenética, das estratégias de modelagem computacional e da análise estatística dos dados de diversidade e disparidade morfológica) nos permitiram compreender muito melhor este fenômeno e testar hipóteses quantitativas sobre o mesmo. Tendo em mente estas considerações, historicamente falando, é possível afirmar que a chamada 'explosão cambriana’ constituía um desafio maior para a teoria de Darwin e Wallace, em sua formulação original, do que este evento é para a moderna biologia evolutiva, embora ainda que haja muito a descobrir e explicar sobre este evento. Neste sentido bem restrito talvez faça algum sentido e dizer que ’a explosão cambriana deixou a teoria de darwin imcompleta’, além do fato trivial de que toda teoria científica não seja completa.
Respondida sua pergunta, gostaria também de enfatizar alguns pontos importantes. Infelizmente existe muita confusão e exagero sobre este episódio que os pesquisadores convencionaram chamar de 'explosão cambriana’, mas que muitos preferem referir-se como 'radiação cambriana’. Para começar, ele não marca a origem dos seres vivos, como alguns parecem pensar, e nem ao menos refere-se a origem dos animais. Este evento diz respeito ao aparecimento, no registro fóssil, de vários grupos de animais com simetria bilateral, principalmente, aqueles 'esqueletizados’, ou seja, com partes duras, isto é, mais mineralizadas, como conchas, exoesqueletos quitinosos, endosqueletos colagenosos etc. Além disso, outros grupos de animais surgiram bem antes e outros surgiram depois da 'explosão’.
Outro ponto importante é que a dita 'explosão cambriana’ também não aconteceu de maneira instantânea (Longe disso!!), com seu auge devendo ter levado uns 20 milhões de anos, o que é rápido apenas em termos geológicos, considerando-se que nosso planeta tem cerca de 4,5 bilhões de anos. Além disso, os vestígios iniciais da 'explosão’ podem ser rastreados ao período imediatamente anterior ao cambriano, como a fauna ’small shelly’ (Tomotiana) deixa bem claro. Estas considerações mostram que a 'explosão cambriana’ nem ao menos pode ser vista como marcando o momento da origem dos grupos de animais que aparecem pela primeira vez no registro fóssil. Para compreendermos isso melhor precisamos lembrar que a primeira vez que um organismo aparece no registro fóssil dificilmente é coincidente com sua real origem. Isso é assim porque a fossilização é um evento raro e depende de uma série de fatores que contribuem para a preservação daquele organismo. Portanto, normalmente o primeiro registro marca o período em que aquele grupo alcançou uma maior população e/ou que as condições geológicas e ambientais tornaram-se mais propícias a fossilização. Como normalmente novas espécies surgem a partir de subpopulações pequenas e periféricas, a chance de que elas sejam amostradas por este processo de fossilização é bem menor nesta fase do que seria quando a espécie atingisse uma população bem maior ou uma distribuição geográfica mais ampla.
Por fim, corroborando o mencionado até agora, todas as análises filogenéticas mostram claramente que os grupos que aparecem no registro fóssil neste período devem ter originado-se dezenas (ou mesmo mais de um centena) de milhões de anos antes. Portanto, essa 'explosão’ (ou 'a bomba que detonou’) pode ter tido um 'pavio’ de tamanho razoável e que 'queimou’ mais ou menos lentamente, sendo este um dos principais pontos de divergência entre os cientistas que estudam a 'explosão cambriana’.
Para saber mais sobre a explosão cambriana indico os artigos do evolucionismo.org sobre o assunto: “A Explosão Cambriana: Uma introdução”, “De volta ao cambriano: Dividindo o evento”, “O 'pavio filogenético’ e a 'explosão cambriana’ não se fundem.”, “A explosão cambriana. Parte II: Rápida, mas nem tanto assim!”, “Uma janela para Ediacara”, “É a evolução genética previsível? Parte I”.
Grande abraço,
Rodrigo