Mutações: A aleatoriedade em sua essência*
A evolução adaptativa e a seleção natural são os tópicos mais freqüentes nas discussões não técnicas sobre evolução biológica. Entretanto, é preciso sempre insistir que a seleção não é o único fator evolutivo. Este fato, muitas vezes deixado de lado, fica claro quando compreendemos que a evolução tem dois sentidos principais. Um deles mais básico - a mudança transgeracional das características hereditárias de uma população - e o outro mais geral - a origem da diversidade através da cladogênese, ou seja, a ramificação de linhagens evolutivas pelo processo de especiação. A grande contribuição de Darwin e Wallace não está apenas em enfatizar o primeiro processo, mas oferecer uma perspectiva nova em relação a origem de novas linhagens e propor um mecanismo que liga ambos aspectos da evolução.
O grande biólogo evolutivo e historiador da biologia, Ernest Mayr, chama de evolução variacional o modelo evolutivo de Darwin e Wallace, distinguindo-o de outras teorias transformacionistas ou transmutacionistas que existiam antes que os dois naturalistas propusessem seu modelo (Mayr, 2001). Possivelmente, juntamente com a idéia de seleção natural, esta foi a contribuição mais original de Darwin e Wallace.
A evolução se sustenta em dois pilares principais, a existência de variação hereditária e a reprodução diferencial dos indivíduos. Dois processos principais controlam o destino desta variação hereditária em populações biológicas: A deriva genética aleatória e a seleção natural. O primeiro processo está associado a “erros aleatórios de amostragem” populacional que ocorrem a cada ciclo reprodutivo, de geração para geração. O segundo é um processo essencialmente não-aleatório (i.e. direcional, ainda que contingente) que 'ajusta' a variação natural ao seu contexto ecológico-funcional e, em geral, aumenta a proporção daquelas características que tornam, ao longo das gerações, seus portadores mais propensos a sobreviver e a se reproduzir em uma dada população em um dado contexto ecológico. Entretanto, quando nos debruçamos sobre a própria origem da variação, sobre a qual atuam a seleção e a deriva, as coisas tornam-se um pouco mais complicadas.
A origem da variação biológica hereditária:
Atualmente, compreende-se que a variação hereditária é fruto de dois processos, a recombinação genética e a mutação. Sendo esta última a real fonte de inovação biológica. Na Enciclopédia de genética encontramos:
"Uma mutação é uma alteração hereditária na estrutura e composição do DNA. Dependendo da função do segmento de DNA alterado, o efeito de uma mutação pode variar de indetectável a causar grandes deformidades e até mesmo a morte. A mutação é um processo natural pelo qual a nova diversidade genética é produzida. No entanto, poluentes químicos e radiações podem aumentar as taxas de mutação e ter um sério efeito sobre a saúde."[Thompson Jr., J. N. & Woodruff, R. C., Mutation and mutagenesis in Ness, Bryan D. (Editor, Revised Edition) Knight, Jeffrey A. (Editor, First Edition) Encyclopedia of Genetics -Revised Edition 2004, by Salem Press, Inc. p. 561]
Existem, portanto, vários tipos de mutações que vão desde a substituição de um nucleotídeo por outro, passando por grandes alterações cromossômicas - como deleções, inversões, fusões e translocações de grandes fragmentos cromossômicos (veja figura a esquerda) - chegando a não disjunção de cromossomos inteiros durante o processo de formação de gametas, ou divisão do embrião. Porém, são as alterações do material genético que ocorrem na linhagem germinativa as mais importantes para a evolução.
O 'ABC', ou melhor, 'ATCG' das mutações:
Antes de entrarmos nos detalhes de alguns processos mutacionais, precisamos relembrar um pouco dos fundamentos da biologia molecular, especialmente como funciona o processo de replicação do DNA.
Os genes são, tradicionalmente, definidos como segmentos de moléculas de DNA, o ácido desoxirribonucleico, que codificam RNAs e polipeptídeos. O DNA, por sua vez, é um longo biopolímero formado por subunidades chamadas de nucleotídeos. Cada nucleotídeo é constituído por um açúcar, a desoxirribose, um grupo fosfato e uma de quatro bases nitrogenadas, A (adenina), C (citosina), G (guanina) ou T (timina). Estruturalmente o DNA está organizado como uma dupla hélice, formada por duas cadeias antiparalelas, complementares, que se auto-estabilizam através de ligações de hidrogênio entre os nucleotídeos de cada cadeia. Estas ligações seguem regras de pareamento específicas, em que as bases A pareiam com T; e C com G. Os pares A:T ligam-se através de duas ligações de hidrogênio e os pares de G:C, através de três ligações (Veja figura abaixo à direita). Como já mencionado, o tipo mais simples de mutação é a substituição de um nucleotídeo por outro. Estas mutações são também chamadas de mutações pontuais. Entretanto, existem outros tipos de mutações, incluindo deleções e inserções de pequenos ou grandes segmentos de DNA, podendo chegar a grandes fragmentos cromossômicos, envolvendo vários genes ao mesmo tempo. Estas mutações estão mais associadas à alterações nas proteínas motoras e do citoesqueleto; especialmente, as que formam e controlam os microtúbulos, responsáveis pela divisão celular.
Tipos de mutações pontuais:
Dizemos, normalmente, que as mutações são 'aleatórias' porque são fenômenos estocásticos, ou seja, de natureza probabilística, não querendo isto significar que todas as mutações são equiprováveis. Na realidade, certas regiões do genoma são mais propensas à mutações do que outras. Os chamados hotspost são um exemplo destas regiões.
Entretanto, apesar de não serem equiprováveis, as mutações são essencialmente fenômenos aleatórios, pelo menos, tão aleatórios como algo pode ser. Aleatoriedade, neste contexto, enfatiza a incerteza inerente ao processo. Ao analisarmos o tipo mais simples de mutação, as substituições - alterações que envolvem apenas um nucleotídeo responsáveis pelos SNPs (single nucleotides polymorphism) - veremos que a aleatoriedade está no cerne do fenômeno mutacional. Alguns dos principais tipos de mutações envolvendo um único nucleotídeo são ilustrados na figura abaixo.
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Direcionalidade na aleatoriedade?
Agentes mutagênicos tem afinidades químicas que os tornam mais propensos a induzir certos tipos de danos em certas regiões do genoma. Além disso, existem também diferenças nas probabilidades de certos tipos de mutações espontâneas.
Transições e Transversões:
As transições são mudanças reversíveis entre purinas, bases formadas por dois anéis (AG), ou entre pirimidinas, bases de um único anel (CT). Estas mutações envolvem, portanto, bases de estrutura muito mais similar. Transversões, por outro lado, são mudanças de uma purina para uma pirimidina ou vice-versa. Estas mutações envolvem a troca entre nucleotídeos estruturalmente bem mais diferentes, ou seja, de um anel por nucleotídeos de dois anéis. Porém, apesar de existir o dobro de transversões possíveis, em relação as transições, as transições são produzidas em maior frequência do que transversões, muito provavelmente, por causa dos mecanismos moleculares através dos quais eles são geradas. Além disso, em virtude das transições terem uma menor propensão em resultar em substituições de aminoácidos, acabam tendo uma probabilidade maior de persistir, sendo, portanto, mais frequentemente observadas em populações naturais (Carr, 2009).
Viés de mutação:
Além das tendenciosidades incluídas sob o rótulo 'Transição vs Transversão' existem outros tipos de vieses mutacionais. Por exemplo, mudanças de C:G → A:T são mais frequentes do que as mutações reversas de A:T → C:G. A existência deste tipo de viés na introdução de variação genética é considerado por alguns pesquisadores um fator de extrema importância para a evolução (Yampolsky & Stoltzfus, 2001; Stoltzfus, 2006). Estas tendenciosidades tornam-se ainda mais importantes quando investigam-se mutações maiores, envolvendo extensas regiões genômicas. Processos como impulso meiótico (meiotic drive), crossing over desigual e conversão gênica enviesada parecem ter preferência por alguns tipos de seqüências de nucleotídeos, refletindo os mecanismos de formação de cromossomos e a dinâmica do aparato enzimático de duplicação do DNA (pense por exemplo no "deslise da DNA polimerase").
DNA polymerase strand slippage
dagritche | Vídeo do MySpace
Alguns cientistas, como Gabriel Dover, sugerem que este conjunto de processos receba seu próprio nome, impulso genético, e seja considerado como outro fator evolutivo, em pé de igualdade com a seleção natural e deriva genética, já que estas tendenciosidades podem mesmo se contrapor a estes dois outros fatores (Dover, 2002). Por estes motivos compreender a origem das mutações, assim como os mecanismos que as produzem, torna-se muito importante no estudo da evolução.
Porém continuamos com a questão: Afinal, quais as causas das mutações?
Infelizmente não existe uma resposta absoluta para esta pergunta. Ao compreendermos os passos inicias, por trás das mutações, acabamos por perceber que talvez não possamos atribuir-lhes uma causa, pelo menos, em sentido tradicional. Esta estranha conclusão advém do fato de que processos quânticos estão no coração das mutações pontuais e de outros tipos de mutação. Causalidade não parece ser um parte das regras do 'mundo quântico'. A aleatoriedade neste nível parece ser irredutível e o princípio da incerteza de Heisenberg impede o conhecimento exato da posição e momento de um elétron ou de outras partículas elementares. Como diz Ruvinsky (2010):
" ... a descrição probabilística de tais fenômenos é a única opção disponível. Em termos filosóficos, pode ser interpretado como a geração de certeza a partir da aleatoriedade. Esse processo ocorre várias vezes por hora em cada ciclo celular e só a existência de sistemas de revisão e reparo robustos é que podem reduzir a quantidade de novas mutações".
O mais importante, entretanto, é que este fenômeno ocorre de forma independente das necessidades dos organismos que sofrem as mutações. Além disso, sua geração é um fenômeno extremamente complicado e variável. Cada tipo de mutação possui seus fatores determinantes. Sem mencionar que envolvem várias etapas distintas, já que todo o processo de divisão celular e replicação do DNA possui vários mecanismos de controle de erros e reparo. Inclusive, são alguns destes mecanismos que podem enviesar as mutações. A seguir vamos acompanhar alguns exemplos destes processos.
Transições ceto-enol e incerteza quântica:
A tautomerização é um processo em que uma mesma molécula pode apresentar-se em mais de uma forma. As transições tautoméricas entre as formas ceto de molécula e sua forma enol (e vice-versa) são um bom exemplo. Esta mesma mudança tautomérica ocorre em nucleotídeos que constituem as moléculas de DNA, de forma absolutamente espontânea, principalmente com o nucleotídeo (G)uanina.
O mecanismo de transição ceto-enol é bem compreendido e envolve o reposicionamento da ligação entre elétrons e o movimento de um próton. Assim as duas formas alternativas guanina diferenciam-se apenas na distribuição da densidade eletrônica e na posição de um único próton (Ruvinsky, 2010). Parece pouco, mas estas pequenas diferenças podem ter repercussões químicas importantes, cruciais para a compreensão de como algumas mutações ocorrem.
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O equilíbrio ceto-enol é geralmente tendencioso em favor da forma ceto. A forma ceto é mais regular e estável, enquanto, a forma enol é bem mais variável, sendo também mais rara. Até a construção dos primeiros modelos da dupla-hélice do DNA em 1951-1952, este fato não era conhecido. No entanto, assim que Watson e Crick concluíram o modelo de dupla hélice perceberam, imediatamente, uma possibilidade de que uma mudança tautoméricas poderia ser uma causa potencial de mutações (Ruvinsky, 2010). Como as transições tautoméricas são instantâneas e reversíveis, normalmente não afetam a estrutura da molécula de DNA. Claro, a menos que tais transições ocorram durante a replicação do DNA (Ruvinsky, 2010).
O sistemas de detecção e reparo de erros e seu papel nas novas mutações:
Ruvinsky (2010) comenta:
"A replicação do DNA é um processo único e absolutamente essencial. A vida, como nós a conhecemos, simplesmente, não é possível ele. A estrutura das duas cadeias complementares da molécula de DNA está na base do processo de replicação. Porém, este processo demanda uma
complexa maquinaria bioquímica, que emprega várias enzimas. A replicação depende de dois passos criticamente importantes. O primeiro é o desenrolamento da dupla hélice, que possibilita a síntese complementar; e o segundo é a síntese de nucleotídeos, com a cadeia de DNA servindo
como molde, com a síntese de novos nucleotídeos da cadeia crescente a partir dos nucleotídeos da fita molde, seguindo a regra de pareamento: A :T e G :C. A fidelidade da replicação do DNA é bastante alta, mesmo assim, erros são inevitáveis. Vários mecanismos de reparo e revisão
estão, constantemente, procurando (por) e/ou reparando os erros de replicação."
A forma enol é bem mais propensa ao mal pareamento (mispairing) do que a forma ceto, a mais comum. Isto quer dizer que a forma enol tem maior propensão a parear-se com um outro nucleotídeo que não seja seu par canônico. Como resultado um mal pareamento, como entre G.T, poderia acontecer (veja exemplos de mal pareamentos de formas tautoméricas enol e imino raras). Sendo assim, caso este mal pareamento escape do sistema de correção, reparo ou revisão, uma nova mutação irá ocorrer.
Nesta situação, existem três passos extremamente importantes para que uma mutação consolide-se. A primeira é uma mudança da guanina da forma ceto para a forma enol, possibilitando o malpareamento possibilidade com um nucleotídeo, diferente do canônico, na fita de DNA complementar recém sintetizada. Este primeiro passo é uma condição necessária mas não suficiente para a produção de mutação,já que a mesma mudança tautomérica ocorrida antes (ou após) a replicação do DNA não conduz a uma mutação em função da extrema velocidade da transição para enol e de volta para a forma ceto. O segundo passo é a síntese do DNA complementar durante a rodada de replicação em que a forma enol de guanina (G) pareia ('malpareia') com uma timina normal (T), provocando uma mudança, potencialmente, duradoura na molécula de DNA recém sintetizada, o que seria o passo suficiente para o processo de mutação. Ainda assim, os mecanismos de reparo podem desfazer a mudança em potencial. É nesta etapa que todas as mutações, relacionadas a replicação do DNA, são geradas. Porém, até a rodada seguinte de replicação, o malpareamento G:T ainda é vulnerável e, a rigor, não é uma mutação propriamente dita, mas sim uma pré-mutação, havendo alta probabilidade de correção caso o T seja substituído por C. No entanto, se tal correção não ocorrer, a situação muda completamente após a rodada seguinte de replicação. Esta é a terceira e última etapa do processo, quando o recém-surgido par de nucleotídeos A:T torna-se "legítimo", quimicamente indistinguível de qualquer outro par (Ruvinsky, 2010). Como mostra a figura abaixo, após a replicação uma das moléculas filhas de DNA carrega o par A:T ao invés do par parental G:C, ou seja, uma substituição ocorreu.
Nucleotídeos diferem em sua capacidade de sofrer mudanças tautoméricas. Por exemplo, a freqüência das mudanças tautoméricas na citosina, de sua forma ceto para sua forma enol, é consideravelmente inferior à da guanina e, portanto, a contribuição da citosina para as mutações espontâneas pontuais de G.C para A:T é insignificante. Cálculos de química quântica, estimando a freqüência das mudanças tautoméricas do par Watson-Crick padrão que causam malpareamento, foram feitos e mostram uma correspondência razoável com o taxa de mutação espontânea. Então, podemos concluir que a transformação de uma flutuação quântica em uma mutação é a essência deste processo (Ruvinsky, 2010).
Dimerização da Timina por radiação UV:
Além da tautomerização, existem muitas outra fontes de novas mutações. As mutações induzidas pela luz ultravioleta (UV) são um exemplo claro e muito bem estudado na fotobiologia e física médica.
A irradiação com luz UV (comprimentos de onda variando entre 400 nm até 1 nm) provoca o aparecimento de ligações químicas incomuns, entre timinas vizinhas na mesma fita de DNA. As estruturas T = T, caso não sejam revertidas ou reparadas, bloquearão a replicação do DNA, já que a enzima DNA polimerase não é capaz de reconhecer T=T. Como consequência, ocorrerá a parada da síntese ou a inserção arbitrária de um outro nucleótidos qualquer na fita de DNA crescente.
No entanto, como a radiação UV tem sido uma constante há bilhões de anos e os seres vivos evoluiram sistemas de reparo capazes de lidar com os danos produzidos por este tipo de radiação, o que reduz drasticamente o risco de novas mutações geradas pelo UV. A fotorreativação é a maneira mais eficaz de reverter a estrutura T = T para sua forma normal, quando a timinas vizinhas não estão quimicamente ligadas por ligações covalentes. Isso ocorre quando a fotoliase, uma enzima especial ativada por luz, liga-se ao dímero timina e o divide, revertendo o dano. Além disso, outro grupo de enzimas podem cortar todo o segmento danificado e substitui-lo por uma sequência correta, usando o segmento da fita não danificada como molde.
Os fótons são as partículas elementares responsáveis pelas interações eletromagnéticas e sua emissão segue as regras da MQ, portanto, sua aleatoriedade é intrínseca e inevitável. Os fótons UV atingem aleatoriamente nucleotídeos nas moléculas de DNA (nas bases nitrogenadas dos nucleotídeos que estão devidamente orientadas no momento da absorção de luz) iniciando fotolesões mutagênicas pontuais ultra-rápidas - por volta de 1 picosegundo.
As células bacterianas possuem um sistema de reparo especial, quando vários segmentos danificados pela radiação UV se acumulam ou quando ocorre o bloqueio da replicação, a chamada resposta SOS. Este sistema de reparo ativa DNAs polimerases de menor fidedignidade que 'ignoram” os segmentos danificados. Entretanto, esta falta de precisão pode gerar novas mutações (Ruvinsky, 2010). Então, o processo de fotolesão pode ser intensificado, ao ser acrescentada outra camada de aleatoriedade, através do recrutamento do sistema de reparo SOS que, de vez em quando, incorpora nucleotídeos errados na cadeias de DNA recém sintetizada, promovendo também adições e exclusões de nucleotídeos (Ruvinsky, 2010).
A importância dos sistemas de reparo não pode ser subestimada. Eles desempenham um papel fundamental no controle da intensidade do processo de mutação. Este fato pode ser ilustrado pelo xeroderma pigmentoso, uma doença genética autossômica recessiva, que acomete seres humanos. Os indivíduos portadores desta condição tem comprometida sua capacidade de reparar danos ao DNA causados pela luz UV, acabando por desenvolver precocemente numerosos cânceres de pele. Nossos genomas são constantemente bombardeados por mutações recém-surgidas que necessitam ser reparadas a cada ciclo de replicação celular.
Estas mutações são causadas por vários processos, além dos dois já discutidos; como depurinação, responsável por vários milhares de mutações por geração, ou desaminação, metilação, alquilação e oxidação que produzem muitas centenas de mutações a cada dia (veja para maiores detalhes o capítulo The Molecular Basis of Mutation do livro Modern Genetic Analysis). Sem os sistemas de reparo a vida complexa, como a conhecemos, provavelmente seria inviável. A alta eficiência dos sistemas de reparo e de replicação do DNA é realmente impressionante (Ruvinsky. 2010). Nucleotídeos erroneamente inseridos podem ser encontrados no DNA recém sintetizado, aproximadamente, a cada 109-1010bases. A questão, entretanto, é que, apesar da probabilidade de um evento mutacional por nucleotídeos, não ser realmente alta (até muito pelo contrário), ao levarmos em conta o número total de nucleotídeos ( ex: ~ 3 ×109 no genoma nuclear), podemos facilmente perceber que, aproximadamente, uma mutação nova deve ocorrer a cada nova replicação de uma única célula (Ruvinsky, 2010). .
Outras fontes de aleatoriedade:
Outro possível efeito quântico, que pode levar a mudanças tautoméricas, é o tunelamento de prótons. O tunelamento é outro daqueles efeitos da MQ (mecânica quântica), sem contrapartida no nosso dia a dia. Ele ocorre quando um próton se move através da barreira de energia, 'tunelando-a'. Graças ao princípio da incerteza, e a natureza probabilística da MQ, tanto a posição quanto a energia de uma partícula podem eventualmente ser suficientes para que esta vença um obstáculo qualquer. Infelizmente, várias tentativas recentes de verificar esta hipótese não foram capazes de detectar este possível mecanismo, continuando apenas como possibilidade teórica, ainda não descartada (Ruvinsky, 2010).
As mutações também podem ser promovidas ao nível 'supra-subatômico' (Ruvinsky, 2010 ). Flutuações térmicas ou, em outros termos, o movimento browniano, são também uma fonte potencial de substituições. A DNA polimerase, a enzima responsável pela replicação do DNA, por ser uma molécula de proteína muito grande, é constantemente sujeita à flutuações térmicas que podem interferir com a fidelidade da atividade de polimerase. Este fato pode levar, por sua vez, à substituição de um nucleotídeo por outro que não corresponde ao par correto,do outro nucleotídeo presente na fita molde.
O destino das mutações:
Quando uma mutação é finalmente incorporada na estrutura de uma molécula de DNA, como no caso da substituição de um par G:C por um par A:T, este é apenas o início do complexo processo de evolução. A aprtir daí o destino desta uma nova mutação será determinado fatores como a seleção natural e deriva genética aleatória, quando mais uma nova camada contingente e probabilística será adicionada a esta dinâmica.
Ruvinsky (2010 p. 33) conclui:
Cada e qualquer mutação é imprevisível. Perguntas como, quando ou por que a próximo mutação vai ocorrer não tem uma resposta e, assumindo uma natureza quântica, pelo menos algumas deles nunca terão. Como mencionado anteriormente, mais de sessenta anos atrás Schrödinger (1944), mesmo sem o conhecimento da estrutura do DNA e da natureza molecular de mutações, extraiu uma conclusão similar, de que as flutuações quânticas podem ser a causa de algumas mutações. Esta conclusão foi um de fato baseada em princípios gerais. Apesar dos fundadores da mecânica quântica claramente enfatizaram a universalidade das leis quânticas, até hoje a aplicação desses princípios para os organismos vivos não tem sido a tendência predominante. A diferença entre os eventos e processos subatômicos parece demasiado grande para a associação direta dos fenômenos quânticos e processos biológicos. Biólogos são geralmente preocupados com os problemas que poderiam ser resolvidos por métodos experimentais ou teóricos. No entanto, se assumirmos que os eventos quânticos levam à mutações, a incerteza e imprevisibilidade, nos processo biológico básicos, é inevitável.
A compreensão da importância dos eventos quânticos na gênese das mutações torna a incerteza e imprevisibilidade inerentes à vida. Limites à compreensão dos processos físicos mais fundamentais parecem se impor, ao mesmo tempo permitindo-nos construir uma ponte entre dois níveis, aparentemente, tão distantes da organização da matéria: o subatômico e o nível macroscópico dos seres vivos (Ruvinsky, 2010).
As descrições probabilísticas e estatísticas, em vários níveis (no nível sub-atômico, molecular, celular e populacional etc) tem sido a tônica das ciências modernas nas últimas décadas e, esta tendência, não parece dar sinais de esmorecimento A aleatoriedade não pode ser ignorada e encarada apenas como fruto de uma incapacidade (ignorância) prática momentânea, a ser remediada em um futuro próximo. As abordagens probabilísticas são inevitáveis já que os processos estocásticos são intrínsecos à natureza, e a vida não é diferente do resto do universo, pelo menos, neste aspecto.
Este artigo apenas toca, bem de leve, a superfície da questão sobre a origem das mutações, concentrando-se em algumas fontes de aleatoriedade que influenciam os processos biológicos, especialmente a evolução. Vivemos em uma época interessante na qual começamos a reinir, de forma bela e elegante (mesmo que muito 'ruidosa'), o 'micro e o macro'. Os próximos anos deverão continuar sendo estimulantes.
*Este artigo foi baseado principalmente no capítulo II "Quantum fluctuations, mutations, and “fixation” of "uncertainty" de Ruvinsky (2010)
Referências:
Dover, G. Molecular drive. Trends Genet. (2002) Nov;18(11):587-9. PubMed PMID: 12414190.
Mayr, Ernst (2009) O que e a evoluçao Editora: Rocco ISBN: 8532523803
Pray, L. (2008) DNA replication and causes of mutation. Nature Education 1(1)
Ruvinsky, Anatoly (2010) Genetics and Randomness CRC Press Taylor & Francis Group ISBN: 978-1-4200-7885-5
Stoltzfus, A.. Mutationism and the dual causation of evolutionary change. Evol Dev. (2006) May-Jun;8(3):304-17. Review. PubMed PMID: 16686641.
Thompson Jr., James N. & Woodruff , R. C., (2004) Mutation and mutagenesis in Ness, Bryan D. (editor, Revised Edition) Knight, Jeffrey A. (Editor, First Edition) Encyclopedia of Genetics -Revised Edition , Salem Press, Inc.
Yampolsky, L.Y, Stoltzfus, A. Bias in the introduction of variation as an orienting factor in evolution. Evol Dev. (2001) Mar-Apr;3(2):73-83. PubMed PMID:11341676.
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Livros recomendados:
Alberts, Bruce, Johnson, Alexander, Lewis, Julian, Raff, Martin, Roberts, Keith and Walter, Peter Molecular Biology of the Cell, 4th edition New York: Garland Science; 2002. ISBN: 0-8153-3218-1 ISBN: 0-8153-4072-9
Griffiths, Anthony JF, Gelbart, William M, Miller, Jeffrey H and C Lewontin, Richard Modern Genetic Analysis New York: W. H. Freeman; 1999. ISBN: 0-7167-3118-5
Lodish, Harvey; Berk, Arnold; Zipursky, S. Lawrence; Matsudaira, Paul; Baltimore, David; Darnell, James E. Molecular Cell Biology New York: W. H. Freeman & Co.; c1999 ISBN: 0-7167-3136-3
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O grande biólogo evolutivo e historiador da biologia, Ernest Mayr, chama de evolução variacional o modelo evolutivo de Darwin e Wallace, distinguindo-o de outras teorias transformacionistas ou transmutacionistas que existiam antes que os dois naturalistas propusessem seu modelo (Mayr, 2001). Possivelmente, juntamente com a idéia de seleção natural, esta foi a contribuição mais original de Darwin e Wallace.
A evolução se sustenta em dois pilares principais, a existência de variação hereditária e a reprodução diferencial dos indivíduos. Dois processos principais controlam o destino desta variação hereditária em populações biológicas: A deriva genética aleatória e a seleção natural. O primeiro processo está associado a “erros aleatórios de amostragem” populacional que ocorrem a cada ciclo reprodutivo, de geração para geração. O segundo é um processo essencialmente não-aleatório (i.e. direcional, ainda que contingente) que 'ajusta' a variação natural ao seu contexto ecológico-funcional e, em geral, aumenta a proporção daquelas características que tornam, ao longo das gerações, seus portadores mais propensos a sobreviver e a se reproduzir em uma dada população em um dado contexto ecológico. Entretanto, quando nos debruçamos sobre a própria origem da variação, sobre a qual atuam a seleção e a deriva, as coisas tornam-se um pouco mais complicadas.